Dilma fala, mas o quebra-pau nas ruas continua
Por que eu digo “não” 1
Poderia começar cantarolando um antigo hit: “Não vou mudar/ esse caso não tem solução…”. Não, meus caros, mesmo reconhecendo, e já escrevi aqui, que existem reivindicações justas e honestas nas manifestações de rua; mesmo reconhecendo que expressões de descontentamento são próprias do regime democrático; mesmo reconhecendo que, hoje, o PT se transformou num dos alvos principais dos protestos, apesar de tudo isso, eu continuo rejeitando a forma como milhares expressam o seu repúdio “a tudo o que está aí”. Não posso fazer nada a respeito. Eu sou eu e minhas circunstâncias, para citar um dos pensadores que me são caros, Ortega Y Gasset, autor do que, para mim, é um clássico: “A Rebelião das Massas”.
Não posso, contra tudo aquilo que penso, assentir com práticas que, se generalizadas e tornadas um norte politico, ético e moral, conduziriam o país a um mal maior do que aquele que se propuseram a combater. Ainda que tais procedimentos possam atingir em cheio figuras e partidos que execro, essa seria uma batalha sem princípios — e é contra os meus princípios adotar os métodos daqueles a quem combato. Eu não cultivo a humildade socrática e jamais diria “só sei que nada sei”. Prefiro o que poderia ser, talvez, uma divisa aristotélica: SÓ NÃO SEI O QUE NÃO SEI. O fato de eu, como toda gente — incluindo governo e oposição —, não saber direito o que está em curso nem qual será a forma do futuro não implica que eu deva esquecer o que sei. Entenderam?
O fato de ignorarmos as causas exatas de um determinado fenômeno não pode nos levar a nos colocar diante deles como uma tábula rasa, de sorte a nos deixar conduzir pelo puro empirismo. O fato é que sei algumas coisas. Sei, por exemplo, que não existe política fora da política. Sei, por exemplo, que não existe saída civilizada fora da representação democrática. Sei, por exemplo, que a imposição coletiva de descontentamentos individuais ou de grupos nem protege o individualismo nem cria coletividades mais tolerantes. Sei, por exemplo, que os oportunistas sempre se beneficiam da depredação dos valores institucionais. Só não sei o que não sei. Mas sei o que sei.
Seria tolo ignorar o que aprendi até aqui e me deixar arrastar pela voragem das ruas contra as minhas convicções. E entendo, sim, por que muita gente boa se entusiasma. Sim, meus caros, eu sou tão conservador, mas tão conservador, que acredito que Dilma tem de ser derrubada segundo métodos… conservadores! Ou por outra: tem de ser vencida nas urnas segundo valores que são de outra natureza. Os que estão em curso não me servem.
Os que estão aí têm certo cherio de petismo sem PT; de petismo pós-moderno; de um petismo que se espalhou nas redes sociais — ainda que muita gente, e é certo que são milhões, execrem o PT. MAS ATENÇÃO! Nem para tirar os petistas do poder eu aceitaria flertar com categorias que considero pré-políticas, inaptas, ineptas e inapetentes para a vida em sociedade. Não aceitaria porque eu também sei aonde essas coisas vão dar.
Eu, que desconfio de coletivos e coletivismos; que repudio os aiatolás que se arvoram em juízes do pensamento alheio; que sou um fanático da distinção entre as esferas pública e privada da vida, eu não posso — e não vou — dar piscadelas àqueles que acreditam que podem impor aos outros a sua vontade; que a rua, qualquer rua, pode ser apropriada como espaço de reivindicação de maiorias ou minorias que pretendem falar em nome da causa geral. Na verdade, uma das razões por que me oponho ao PT, aos ditos movimentos sociais (que nada mais são do que minorias que acreditam no valor universal de causas no mais das vezes particulares) e aos coletivos disso e daquilo que têm a ambição de atuar como polícias do pensamento é justamente seu caráter autoritário, impositivo, fascistoide.
No Globo Repórter de sexta-feira, por exemplo, um rapaz do movimento “Juntos”, tratado como um neoiluminista, falava da importância da sociedade mobilizada. Era o exemplo do “jovem”. O Globo Repórter só não informou — e não o fez porque não quis, já que segredo não é — que o “Juntos” é uma cria do PSOL. Luciana Genro é a dona do domínio da turma na Internet. Já contei isso aqui. O rapaz que aparecia ali, mestrando em sociologia, poetizando sobre um futuro generoso, é membro de uma legenda que tem na sua plataforma, entre outras delicadezas, a expropriação também de terras produtivas para a reforma agrária — eles defendem um limite para a propriedade rural, mesmo aquela sobre a qual não há nenhuma evidência de irregularidade.
É princípio! Ele diz: “Isso [pessoas nas ruas] deixa feliz; nós vamos ser um país melhor, mais democrático; nós vamos ter mais possibilidade de tomar nas nossas mãos o nosso futuro quanto mais pessoas puderem ir às ruas (…)”.
É verdade! O PSOL disputa eleições. Se e quando tiver votos, que aplique o seu programa. Dividindo o comando do DCE da USP, por exemplo, o partido desse notável tribuno da plebe deu um golpe continuísta porque corria o risco de perder. Nas greves da universidade, o PSOL costuma impor a sua vontade por intermédio de suas minorias truculentas. Mas lá estava ele sendo tratado como uma personagem dessa nova aurora — e, pior, como se não tivesse partido.
Não, meus caros leitores, minhas caras leitoras! Isso não me encanta. Ainda — e é verdade — que as esquerdas tenham perdido o protagonismo do movimento que está nas ruas; ainda que o “Juntos” e o “Movimento Passe Livre” tenham sido engolidos por outra agenda — que eles, de fato, repudiam —, os métodos referendam uma forma de fazer política que não aprovo.
E eu não tenho o menor receio de ser contra a maiorias. Nunca tive. Este blog bateu sucessivos recordes de visitas nesta semana porque diz o que pensa, não o que pensam. Pesquisa Datafolha, segundo a Folha deste domingo, aponta que 66% dos paulistanos acham que manifestações de rua devem continuar; 34% acham que não. Que elas continuem, aprovo. Que tomem qualquer via pública, quando der na cabeça das lideranças, aí não.
Nesse caso, estou com os 34%. À diferença do pensador do Globo Repórter, eu acho que o mundo será melhor quanto mais pudermos, cada um de nós, cuidar de nossa própria vida e da vida da nossa família. “Então não existem demandas públicas, Reinaldo?” Existem! Por isso existe a praça. Segundo o Datafolha, 78% dos paulistanos apoiam a ocupação da Paulista. É? Pois eu estou com os 28%, então. Não posso negar o que sei. E EU SEI QUE NEM MESMO AS MAIORIAS TÊM O DIREITO DE CASSAR O DIREITO CONSTITUCIONAL DE IR E VIR. Nem o rapaz do PSOL nem um outro que odeie o PT pode obrigar terceiros a aderir à pauta do PSOL ou a odiar o PT, entenderam?
E se todos aqueles que tiveram algo a dizer ou alguma demanda a apresentar ao estado decidirem fazer o mesmo? Qual é o limite? Quem esses juízes do espaço público acatam como juiz? “Ah, mas o direito de se expressar e se reunir também está na Carta!” Eu sei e apanhei bastante para conquistá-lo. Reitero: a praça está à disposição. Por mim, o Vale do Anhangabaú, por exemplo, pode ficar reservado só para manifestações.
Aí eu vou lá levar o meu cartaz. Erguerei um contra a corrupção, contra a PEC 37, contra o eventual esforço de transformar o julgamento do mensalão num pastelão, contra a inércia do Congresso, contra a incompetência no gerenciamento da saúde, contra a morte da Baleia (a cadela de “Vidas Secas”), contra comida japonesa, contra o Bolero de Ravel, contra a vírgula entre sujeito e predicado, contra o risco de que as orações subordinadas sejam extintas em nossa imprensa… Eu tenho demandas imensas.
Mas não me peçam…
Mas não me peçam para aplaudir, porque não vou, uma onda que professa seu ódio à política sob o pretexto de que pretende melhorá-la. Vocês sabem o que penso sobre o PT, o PSTU, o PSOL… Acima, expresso a minha contrariedade por um programa jornalístico da Globo ter omitido a origem de um movimento, atribuindo-lhe tinturas apartidárias que são falsas. Sou pela clareza. Defendo o meu direito de demonstrar que são partidos obscurantistas, que, na prática, querem mesmo é ditadura. Mas não me encanta, de modo nenhum!, esse ataque generalizado à política como morada exclusiva da falta de ética e da ladroagem. Exclusiva não é. Mas isso também não resolve, é claro. Basta que seja para merecer um protesto. Mas, então, que se melhore a política, ora!
Nos protestos havidos em Brasília, havia muita gente gritando contra Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, por exemplo. O arquivo está à disposição para que se saiba o que penso dele e o que já escrevi sobre ele. Mas é de uma estupidez sem-par chamar de pacífica uma manifestação que toma o teto do Congresso, com cartazes convertidos em tochas. Eu não seria eu se não escrevesse tudo. E, então, vou escrever tudo: se o diabo me obrigasse a escolher entre a democracia que temos, com Renan Calheiros lá, sendo quem é, e os que acreditam que podem sapatear sobre o teto do Parlamento, eu teria de escolher Renan.
O motivo é muito simples: no sistema que temos, eu, ao menos, posso escrever o que penso sobre o presidente do Senado… Escrevi contra as manifestações e recebi centenas de ameaças de morte e espancamento. “A culpa não é dos milhares que se manifestam!” Nem eu estou dizendo que seja. Mas é preciso, sim, cuidar dos sentimentos que a gente mobiliza quando faz determinadas reivindicações.
O ódio à política — e, não há como negar, há uma parte da imprensa encantada com isso (vou escrever a respeito; lembrem-se de que esta é apenas a primeira parte deste texto) — nos conduz a formas pré-políticas de resolução de conflitos: ou à guerra de todos contra todos ou à má política. Em seu péssimo pronunciamento, a presidente Dilma anunciou a disposição de levar para o Palácio do Planalto os tais movimentos sociais. Como serão usados? Serão tratados como supostos representantes do povo, numa espécie de “by pass” no Congresso? Com que legitimidade? Eu não quero uma democracia tutelada por conselhos populares, formados por pessoas que outorgam a si mesmas o poder da representação.
Já escrevi 10.200 toques e estou muito longe de acabar este post. Por isso ele vai em partes — autônomas, sim, mas formam um conjunto. É claro que essa voz das ruas, ora justa, ora destrambelhada, mas sempre equivocada nos métodos, tem uma origem (por óbvio, mais remota) e se fez mais audível em razão de causas recentes. Ela questiona, sim, o modelo petista de governo, mas de uma maneira que entendo distinta do que se tem dito por aí. O baixo crescimento ou a inflação, por exemplo, são absolutamente insuficientes para explicar esse mal-estar.
Encerro dando uma pista do que virá na parte 2. Anotem aí: dez anos de ataque sistemático à ordem constituída por meio da depredação de instituições e valores — Congresso, Judiciário, imprensa, Polícia, Forças Armadas — não poderiam resultar numa coisa muito boa. Mais: a “sociedade de consumo” do modelo petista tem outras demandas, além de uma TV de tela plana, especialmente aquelas ligados ao serviço público. Os canais do partido, em sua fase burocrática, foram obstruídos por pelegos, pela “burguesia do capital alheio”, como chamo. Vejo esta patética UNE tentando se meter no meio da criançada que está na rua, e seus representantes me parecem pterodáctilos renascidos no século 21.
A UNE não existe. Foi privatizada por Lula, que a comprou com dinheiro público. Nesses anos, a oposição poderia ter sido um bom canal de expressão das contraditas — e tudo dentro da ordem democrática —, mas também ela silenciou com medo da suposta unanimidade e foi demonizada pelo demiurgo, cujo governo montou, por intermédio do subjornalismoo de aluguel, uma verdadeira máquina criminosa de difamação das pessoas que ousam divergir e da própria imprensa — que foi, com as exceções de praxe, frequentemente servil ao suposto milagre petista.
O país parecia morto ou anestesiado. Na dúvida, bastava chamar João Santana. Dilma chamou de novo. E se produziu nesta sexta um discurso pífio na TV. No dia seguinte, lá estavam as massas na rua, de novo, quebrando tudo.
23 de junho de 2013
Reinaldo Azevedo, Veja
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