A partir dos últimos três ou quatro anos, passei a refletir sobre as voltas que cumpro em torno ao sol. Talvez nem todo leitor tenha percebido, mas a cada ano de existência completamos uma órbita em torno à nossa fonte de luz. A vida pode parecer curta, mas o percurso não é pequeno.
São 930 milhões de quilômetros. Se você se acha sedentário, tire esta idéia da cabeça.
Estamos viajando a 29,8 km por segundo, o que dá 107 mil por hora. Não é pouco para quem se julga imóvel.
Há mais de sessenta voltas atrás, eu não acreditava nisto. Nem mesmo na redondeza da terra. As professoras tentavam em vão explicar-me a coisa, mas minha lógica era inabalável. Pegue uma laranja, professora. Ponha uma forminguinha sobre a casca. Em determinado momento, a formiga vai ficar de patas para cima. Ora, eu não estou de pernas para cima. Nem tenho notícias de que alguém no planeta viva assim. Nem poderia viver. Se a formiga consegue prender-se à laranja, isto é uma habilidade que não temos. Caíriamos no espaço.
Levou algum tempo para cair a ficha. Acho que só me convenci mesmo da esfericidade da terra quando vi as primeiras fotos tiradas por satélites. Tive tios que morreram sem acreditar que o homem havia chegado à lua. “Não pode - dizia tio Ângelo -, o céu é dos passarinhos. Sem falar que olho a lua todas as noites e nunca vi ninguém chegar lá”. Convicção é convicção. Ciência é outra coisa.
Daqueles dias para cá, já ciente da redondez da terra, fiz não poucos trajetos sobre sua crosta. Verdade que ainda hoje me parece plana. Mas deixa pra lá. É só tomar mais de uma garrafa de vinho e ela volta a girar sobre si mesma. Juro que até já senti, nessas ocasiões, o deslocamento dos continentes. Dizem que a Europa está se aproximando da África. Haja guardas nas fronteiras, quando os blocos se encontrarem.
Voltemos ao resfolegar do planetinha em torno ao sol. As primeiras quarenta voltas foram praticamente sem solavancos. Verdade que aos 30 lembrei-me que nessa idade Napoleão já havia conquistado o Egito e eu sequer organizara meus exércitos. Mas foi um desalento fugaz. Consolei-me lembrando a mim mesmo que meus propósitos não eram os mesmos do corso.
Foi na exata 40ª volta que senti uma desconfortável sensação de não-retorno. Celebrava com amigos da América Latina meu aniversário, em uma aconchegante bodega da Plaza Mayor, em Madri, quando me senti de repente adulto. Exercera jornalismo e magistério, estava gozando uma bolsa no Instituto de Cooperación Iberoamericana e lembrei-me que a festa acabara. Estava desempregado e não via luz ao fim do túnel. Até então, trabalho para mim fora lazer. E o lazer havia acabado.
Voltei ao Brasil e vim trabalhar em São Paulo. O girar em torno à terra continuou sem maiores turbulências, pelo menos até a 56ª volta, quando minha companheira de viagens orbitais caiu da nave. Não foi solavanco. Foi trombada mesmo. Daquelas das quais acordamos tontos, sem saber muito bem como ocorreu o acidente. Mas infelizmente acordamos. Melhor seria continuar dormindo. A nave no entanto continua sua trajetória sempre a mesma.
Os transtornos de percurso começaram nos últimos afélios e periélios. Ao completar a 62ª volta – já contei – fui premiado com um carcinoma de garganta. Como presente de Natal. De palato, mais precisamente. Olho por todos os lados e só vejo câncer matando os meus. Levou minha mulher, mais uma amiga querida, mais vários companheiros de bar. Sem falar nos que tentou levar, mas não levou. Sou um deles. Para dar uma idéia de como a peste me cerca, do pequeno grupo de sete amigos do qual participava em meus dias de Paris, cinco foram acometidos pela doença. Dois partiram, entre eles minha Baixinha.
Coisas da vida. Ou da longevidade, como dizem os médicos. Se antes havia menos mortes por câncer, é porque as pessoas viviam menos. O que nos leva à paradoxal idéia de celebrar cada câncer, como atestado de longa vida. Claro que melhor seria se fosse curta. Mas a medicina infelizmente está encontrando formas de prolongar a vida dos pestilentos.
Natal seguinte, mais um câncer. Estes tumores me afetaram o paladar, meu melhor instrumento de viagem. Desconfio que o bom deus dos cristãos é meu fiel leitor. Deve ter lido todas minhas crônicas para saber qual castigo ser-me-ia mais duro. Ele gosta de viagens, é? Pois vou vetar-lhe o melhor da viagem.
Mesmo assim, continuei viajando. Se já não sentia o odor de um Camembert, me restavam os vinhos e demais alcoóis que o engenho e a humana sede criaram. Aí mesmo é que o Cara se irritou. Natal passado, para celebrar seu nascimento, brindou-me com mais dois tumores.
Lembrei-me de meus dias de guri. Estava de férias no campo, na casa de meus pais. Foi quando, lendo a Bíblia, percebi de repente que aquele deus era um embuste. Nos dias de tempestade, para assustar meus parentes, montava em pêlo e esbarrava o cavalo frente às casas. A cada raio, batia no peito e berrava: manda outro, gran Hijo de Puta. Minhas primas se persignavam, cobriam espelhos e escondiam facas de pontas. Parece que o senhor dos raios não esqueceu do herege.
Não havia ainda me recuperado do segundo câncer, mas fui tentado por mais um giro pela calota do planeta, questão de ver uma aurora boreal. Fiz uma viagem insana, a tentação foi maior que a prudência. Estava à espera de uma biópsia e considerei que câncer sempre pode esperar trinta dias. Esperou. Me aguardava na volta. Ah, a aurora não deu o ar de sua graça. Mas curti noites profundas em Tromsø, no Círculo Polar Ártico.
Esta 67ª está sendo aziaga. Fiz uma cirurgia brutal que me roubou a voz. Vou recuperá-la, mas não será a minha mesma e boa antiga voz. Quando soube o que me esperava, confidenciei a meus mais próximos: melhor morrer. Nessas ocasiões chega sempre a turma do deixa-disso. “Bobagem, a vida continua. Há coisas piores”. Claro que há coisas piores. Mas há também as melhores, ora bolas. Para um ateu, descansar é sempre mais desejável que lutar cada hora contra o desconforto.
Mas assim não quiseram os médicos, nem mesmo meus amigos. Cheguei a perguntar a uma enfermeira: não se consegue uma eutanasiazinha? Nem pensar. Nem subornando? Nem subornando.
Então tá! Não esperava sobreviver à minha companheira de nave e cá estou, dez voltas depois. Quantas me restam? Espero que não muitas. Viagens siderais acabam cansando. Seja como for, fiquei comovido com as felicitações hoje recebidas.
Gracias, paisanos! Só um segredinho: não foi hoje que completei a 67ª. Este é o dia de registro do nascimento. Lá no campo, para não perder uma cavalgada ao cartório, que ficava a algumas léguas de distância, os pais sempre esperavam alguns meses para ver se a cria vingava. Nasci no 02 de abril. Três meses depois, como continuava “vivito y coleando”, fui registrado. No mais, como decía Fierro,
Vamos, suerte, vamos juntos
dende que juntos nacimos,
y ya que juntos vivimos
sin podernos dividir,
yo abriré con mi cuchillo
el camino pa seguir.
02 de julho de 2013
janer cristaldo
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