"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 8 de março de 2012

OS ÁRABES, COMO ERAM VISTOS HÁ CINQUENTA ANOS

"Outrora gentis e acomodáveis, a remota civilização dos árabes vem sendo arrebatada hoje pelos ventos revigorantes da mudança. Uma fértil espécie de desordem está substituindo os velhos e definidos padrões de vida". Essas palavras que parecem contemporâneas foram publicadas em 1962, em um atraente livro, de 160 páginas, repleto de fotografias, intitulado The Arab World (O Mundo Árabe).
Os editores da revista Life produziram "The Arab World".

A edição ostenta três virtudes que valem a pena serem revistas cuidadosamente, meio século depois. Primeiro, os editores da revista Life, a então destacada revista semanal americana, produziram-na, implicando valor cultural. Segundo, o alto funcionário reformado do Departamento de Estado, George V. Allen, autor da introdução, apontou as credenciais de establishment do livro. Terceiro, Desmond Stewart (1924-1981), aclamado jornalista britânico, historiador e escritor, escreveu o texto.

O Mundo Árabe representa de forma enfática um artefato de outra era, embora não enaltecendo por completo o objeto de seu artigo, Stewart apresenta uma abordagem paternalista, benigna e romântica que deixaria engasgado até os maiores escritores eufemísticos de hoje. Por exemplo, ele leva a crer que um visitante do Ocidente nos países de língua árabe entraria "no domínio de Aladin e Ali Baba. As pessoas trazem à memória sua Bíblia ilustrada". Encontra-se pouco desse sentimentalismo na era da Al-Qaeda.

Mais interessante ainda, o livro mostra com que facilidade um proeminente analista pode interpretar mal a situação como um todo.

Conforme proposto pelo título, um tema domina a existência de um único povo árabe do Marrocos ao Iraque, um povo tão atado pela tradição que Stewart recorre a uma analogia do mundo animal: "os árabes possuem uma cultura comum, distinta, impossível de se livrar tanto quanto o beija-flor não mudará seus hábitos de nidificação pelos do melro". Ignorando o histórico do fracasso árabe em unificar seus países, Stewart previu que "independentemente dos acontecimentos, as forças para a união [árabe] continuarão a existir". Altamente improvável: essa ânsia desapareceu logo depois de 1962 e se manteve extinta desde então, bem como a premissa superficial que o idioma árabe por si só define o povo, sem levar em conta a história e a geografia.

O segundo tema trata do Islã. Stewart expressa que essa fé "simples" elevou a humanidade "a um novo patamar", que ela "não é pacifista, mas a sua principal palavra é Salam, ou seja, paz". Ele chama o Islã de "fé tolerante" e descreve os árabes historicamente como "conquistadores tolerantes" e "soberanos tolerantes". Os muçulmanos lidaram de forma "tolerante" com os judeus e cristãos. De fato, "a tolerância árabe estendia-se à cultura". Toda essa tolerância faz com que Stewart alegremente, porém de forma insensata, não leve em conta as manifestações do islamismo, que segundo ele "tem um ar antiquado e pouco apelo para os jovens". Em suma, Stewart não tem a mínima ideia quanto ao supremacismo, da sua origem aos tempos modernos.


Legenda do livro: "Em uma festa estilo levantino, oferecida por um homem de negócios, milionário árabe, uma dançarina libanesa chamada Kawakib apresenta a tradicional dança do ventre. Enquanto Kawakib dançava, os convidados também dançavam e cantavam".

O terceiro tema trata da determinação dos árabes em se modernizar: "Uma das surpresas do Século XX foi a maneira como os muçulmanos árabes aceitaram a mudança e o mundo moderno". Com exceção da Arábia Saudita e do Iêmen, em todos os outros lugares, ele descobre que "o modernismo árabe é uma força tangível, visível e audível". (Essa é a razão da minha primeira sentença, "ventos revigorantes da mudança"). Sua falta de visão em relação às mulheres resulta no chocante trecho a seguir: "o harém e seus pilares psicológicos foram detonados pelo Século XX". "Em assuntos econômicos, … as mulheres são quase iguais aos homens". Ele enxerga o que deseja enxergar, sem ligar para a realidade.


Legenda do livro: "Estudiosos amigáveis da seita muçulmana xiita passeiam no pátio do santuário em Najaf, Iraque, enquanto outros rezam, meditam ou até dormem".

Continuando com o tema do otimismo quimérico, Stewart detecta os povos de língua árabe se livrando do molde antigo, determinados "a destruir antigos estereótipos". Ninguém se atreveria hoje a escrever sobre o século VII da maneira como ele o fez, especialmente após o fracasso das ambições de George W. Bush em relação ao Iraque e a incursão na Líbia de Barack Obama: "Os primeiros quatro califas foram tão democráticos quanto William Gladstone da Grã-Bretanha ou Thomas Jefferson dos Estados Unidos". Stewart chega a alegar que a "civilização árabe faz parte da cultura ocidental, não oriental", seja lá o que isso quer dizer.

Legenda do livro: "Passando por cima de um carpete de boas-vindas de valiosos tapetes persas, o rei Saud da Arábia Saudita chega de Cadillac ao terraço de um palácio real".


Como aparte, o Islã era tão misterioso há cinquenta anos que as duas dezenas de funcionários, com altos salários da revista Life, listados como equipe editorial do livro legendou uma foto com a informação errada de que a peregrinação islâmica "ocorre todos os anos na primavera". (A Peregrinação hajj é antecipada de 10 a 11 dias a cada ano (no calendário gregoriano) devido ao calendário lunar muçulmano).

Os erros dos predecessores têm o efeito de causar modéstia. Um analista como eu espera não ser tão obtuso como Desmond Stewart e a revista Life e não ser exibido sob um prisma tão ruim com o passar do tempo. Aliás, eu estudo história na esperança de obter uma visão mais ampla e assim não estar limitado pelas suposições de hoje. Em 2062, diga-me como estou me saindo.

Original em inglês: The Arabs as Seen Fifty Years Ago
Tradução: Joseph Skilnik
por Daniel Pipes
The Washington Times
6 de Março de 2012

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