Matéria fria, no jargão jornalístico, não é sinônimo de matéria desimportante. É apenas aquela que não está vinculada a um acontecimento e pode ser publicada a qualquer momento do ano. Matéria quente, ao contrário, é aquela que deve ser publicada já. Assim, a morte de um Fidel ou Ratzinger, por exemplo, constituíriam matérias quentes. Não por acaso, o necrológio destes senhores está pronto em todos os jornais, só falta colocar dia e hora do passamento. A Veja desta semana oferece ao leitor, em matéria de capa, uma matéria geladérrima, o Santo Sudário. Verdade que anuncia um livro, O Sinal, de Thomas de Wesselow, historiador de arte inglês, que deve ser lançado no Brasil, na próxima semana, pela Cia. de Letras. Mesmo assim, continua sendo matéria fria. Particularmente em semana de tantos e suculentos escândalos no Planalto.
O Santo Sudário, visto como uma prova da ressurreição do Cristo, é aquela peça de linho que mostra a imagem de um homem nu, que aparentemente sofreu traumatismos físicos de maneira consistente com a crucificação. Segundo a lenda, a primeira menção não-evangélica a ele data de 544, quando um pedaço de tecido mostrando uma face que se acreditou ser a de Jesus foi encontrado escondido sob uma ponte em Edessa. De lá para cá, após muitas idas e vindas, o linho acabou caindo na Catedral de Turim, onde está guardado desde o século XIV.
Por que seria o linho que envolveu o cadáver do Cristo? Porque a imagem do negativo fotográfico do manto, vista pela primeira vez em maio de 1898, através da chapa inversa feita por um fotógrafo amador, seria semelhante ao rosto do Cristo. E aqui já vai a primeira prova – e prova cabal – de que se trata de uma farsa. Pois não existe momento algum nos Evangelhos que descreva o rosto ou corpo de Jesus. A imagem física do Cristo foi forjada, através dos séculos, pela iconografia católica.
O próprio Vaticano não o reconhece como autêntico. Mas os papas sabem que o dito manto sagrado atrai devotos e o toleram como se autêntico fosse. Em 1988, a peça foi submetida a exames com o carbono 14, que situou o tecido como sendo da época entre 1260 e 1390. O desejo de crer dos crentes, no entanto, contesta a eficácia de tais exames.
O historiador inglês pretende ressuscitar a fama do sudário, hoje abalada pelas pesquisas. Segundo Wesselow, a relíquia não pode ser dissociada da cena bíblica narrada por São João Evangelista. Segundo a revista, na condição de mistério, aquele lençol foi no decorrer dos milênios a fagulha que ajudou a incendiar a propagação da fé cristã. O culto do Santo Sudário ajudou o cristianismo a superar sua condição de seita minoritária confinada aos rincões do Império Romano para se transformar na maior religião do planeta.
Diz Wesselow: “Já para os apóstolos o sudário foi tomado como a prova da Ressurreição de Cristo, e disso deriva sua extraordinária força de convencimento”. Ou seja, um pedaço de pano encontrado em tempos perdidos da História comprovaria a ousada bravata de Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” Para Paulo, se Cristo não ressuscitou, “nossa pregação e nossa fé são em vão”.
Portanto, o sudário é autêntico. Tem de ser autêntico, ou o cristianismo é uma solene mentira. Curiosamente, há três anos, Veja era mais cética. Em reportagem sobre o sudário, publicada em 05 de outubro de 2009, a revista anunciava:
“Cientistas italianos afirmaram nesta segunda-feira ter reproduzido o Santo Sudário. Segundo Luigi Garlaschelli, professor de Química Orgânica da Universidade de Pavia e responsável pela recriação do manto que teria envolvido o corpo de Jesus Cristo, o feito pode ser considerado uma prova de que o Sudário é uma farsa”.
Pretendem os teólogos que os exames de carbono 14 são imprecisos. Que sejam. Está ao alcance de qualquer leitor comprovar esta farsa. Besunte um linho qualquer com algum óleo ou graxa e coloque-o sobre seu rosto. Você verá que jamais chegará a obter aquele desenho harmonioso de um rosto que vemos no sudário. Enfim, há a tese – pelo menos mais lógica – de que o desenho final seja derivado de um milagre. Pode ser... desde que você acredite em milagres.
Matéria fria por matéria fria, prefiro uma outra discussão, que percorreu toda a Idade Média, a crucial questão de saber se o prepúcio de Cristo ficou na terra. Por diversas vezes ao longo da história, houve várias igrejas ou catedrais a reclamar a sua posse, algumas ao mesmo tempo. Há inclusive vários milagres atribuídos a esta relíquia. O menino era um só, mas aparentemente tinha vários prepúcios.
Segundo a Bíblia, só três personagens bíblicos subiram aos céus. Elias, no Antigo Testamento, e Cristo e Maria no Novo. A ascensão de Elias, em um carro de fogo, não gerou dogma. Dogmas foram a Assunção de Maria, curiosamente só oficializado em 1950, pelo papa Pio XII. A virgem, toda gloriosa, sobe aos céus, e a Igreja só reconhece o fato dois mil anos depois. Um outro dogma mais complicado é a Ascensão de Cristo, que "ressuscitou dentre os mortos e subiu ao céu em Corpo e Alma." Os teólogos, especialistas em filigranas, tiveram de discutir um grave problema. Cristo era judeu. Como todo judeu, havia sido circuncidado. Ao subir aos céus, teria deixado o prepúcio na terra?
Corria o ano da graça de 1351. Uma grave discussão tomou conta das mentes da época, o prepúcio de Cristo. A discussão de fundo, em verdade, era outra. Em Barcelona, um guardião franciscano levantou a tese, em um sermão público, que o sangue versado pelo Cristo durante a Paixão havia perdido toda divindade, havia se separado do Verbo e ficado na terra. A proposição era nova e de difícil demonstração.
Nicolas Roselli, inquisidor de Aragon, aproveitou a vaza para atacar os franciscanos, que detestava, e a transmitiu a Roma. O cardeal de Sainte-Sabine, sob as ordens de Clemente VI, escreveu que o papa havia recebido com horror esta odiosa asserção. Sua Santidade, tendo reunido uma assembléia de teólogos, combateu em pessoa esta doutrina e conseguiu que fosse condenada. Os inquisidores receberam em todos os lugares a ordem de abrir os procedimentos contra aqueles que tivessem a audácia de sustentar esta heresia. O triunfo de Roselli foi completo. O infeliz franciscano barceloneta teve de negar sua tese, do alto da mesma cátedra em que a havia proferido.
Restou o problema do prepúcio. Segundo os franciscanos, o sangue do Cristo podia ter ficado na terra, pois o prepúcio extirpado durante a circuncisão havia sido conservado na igreja de Latrão e era venerado como uma relíquia sob os olhos do próprio papa e do cardeal. Um século transcorreu quando, em 1448, o franciscano Jean Bretonelle, professor de teologia da Universidade de Paris, submeteu a affaire à faculdade. Uma comissão de teólogos foi nomeada. Após sérios debates, tomou uma decisão solene, declarando não ser contrário à fé crer que o sangue vertido durante a Paixão tivesse ficado na terra. Por analogia, o prepúcio também. Ou seja, se Cristo foi aos céus, o Sagrado Prepúcio ficou entre nós.
De inhapa, estava resolvida também a questão do prepúcio. Que não tenha subido aos céus, me parece fora de qualquer dúvida. Já o sudário é uma questão de fé.
Matéria fria, no jargão jornalístico, não é sinônimo de matéria desimportante. É apenas aquela que não está vinculada a um acontecimento e pode ser publicada a qualquer momento do ano. Matéria quente, ao contrário, é aquela que deve ser publicada já. Assim, a morte de um Fidel ou Ratzinger, por exemplo, constituíriam matérias quentes. Não por acaso, o necrológio destes senhores está pronto em todos os jornais, só falta colocar dia e hora do passamento. A Veja desta semana oferece ao leitor, em matéria de capa, uma matéria geladérrima, o Santo Sudário. Verdade que anuncia um livro, O Sinal, de Thomas de Wesselow, historiador de arte inglês, que deve ser lançado no Brasil, na próxima semana, pela Cia. de Letras. Mesmo assim, continua sendo matéria fria. Particularmente em semana de tantos e suculentos escândalos no Planalto.
O Santo Sudário, visto como uma prova da ressurreição do Cristo, é aquela peça de linho que mostra a imagem de um homem nu, que aparentemente sofreu traumatismos físicos de maneira consistente com a crucificação. Segundo a lenda, a primeira menção não-evangélica a ele data de 544, quando um pedaço de tecido mostrando uma face que se acreditou ser a de Jesus foi encontrado escondido sob uma ponte em Edessa. De lá para cá, após muitas idas e vindas, o linho acabou caindo na Catedral de Turim, onde está guardado desde o século XIV.
Por que seria o linho que envolveu o cadáver do Cristo? Porque a imagem do negativo fotográfico do manto, vista pela primeira vez em maio de 1898, através da chapa inversa feita por um fotógrafo amador, seria semelhante ao rosto do Cristo. E aqui já vai a primeira prova – e prova cabal – de que se trata de uma farsa. Pois não existe momento algum nos Evangelhos que descreva o rosto ou corpo de Jesus. A imagem física do Cristo foi forjada, através dos séculos, pela iconografia católica.
O próprio Vaticano não o reconhece como autêntico. Mas os papas sabem que o dito manto sagrado atrai devotos e o toleram como se autêntico fosse. Em 1988, a peça foi submetida a exames com o carbono 14, que situou o tecido como sendo da época entre 1260 e 1390. O desejo de crer dos crentes, no entanto, contesta a eficácia de tais exames.
O historiador inglês pretende ressuscitar a fama do sudário, hoje abalada pelas pesquisas. Segundo Wesselow, a relíquia não pode ser dissociada da cena bíblica narrada por São João Evangelista. Segundo a revista, na condição de mistério, aquele lençol foi no decorrer dos milênios a fagulha que ajudou a incendiar a propagação da fé cristã. O culto do Santo Sudário ajudou o cristianismo a superar sua condição de seita minoritária confinada aos rincões do Império Romano para se transformar na maior religião do planeta.
Diz Wesselow: “Já para os apóstolos o sudário foi tomado como a prova da Ressurreição de Cristo, e disso deriva sua extraordinária força de convencimento”. Ou seja, um pedaço de pano encontrado em tempos perdidos da História comprovaria a ousada bravata de Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” Para Paulo, se Cristo não ressuscitou, “nossa pregação e nossa fé são em vão”.
Portanto, o sudário é autêntico. Tem de ser autêntico, ou o cristianismo é uma solene mentira. Curiosamente, há três anos, Veja era mais cética. Em reportagem sobre o sudário, publicada em 05 de outubro de 2009, a revista anunciava:
“Cientistas italianos afirmaram nesta segunda-feira ter reproduzido o Santo Sudário. Segundo Luigi Garlaschelli, professor de Química Orgânica da Universidade de Pavia e responsável pela recriação do manto que teria envolvido o corpo de Jesus Cristo, o feito pode ser considerado uma prova de que o Sudário é uma farsa”.
Pretendem os teólogos que os exames de carbono 14 são imprecisos. Que sejam. Está ao alcance de qualquer leitor comprovar esta farsa. Besunte um linho qualquer com algum óleo ou graxa e coloque-o sobre seu rosto. Você verá que jamais chegará a obter aquele desenho harmonioso de um rosto que vemos no sudário. Enfim, há a tese – pelo menos mais lógica – de que o desenho final seja derivado de um milagre. Pode ser... desde que você acredite em milagres.
Matéria fria por matéria fria, prefiro uma outra discussão, que percorreu toda a Idade Média, a crucial questão de saber se o prepúcio de Cristo ficou na terra. Por diversas vezes ao longo da história, houve várias igrejas ou catedrais a reclamar a sua posse, algumas ao mesmo tempo. Há inclusive vários milagres atribuídos a esta relíquia. O menino era um só, mas aparentemente tinha vários prepúcios.
Segundo a Bíblia, só três personagens bíblicos subiram aos céus. Elias, no Antigo Testamento, e Cristo e Maria no Novo. A ascensão de Elias, em um carro de fogo, não gerou dogma. Dogmas foram a Assunção de Maria, curiosamente só oficializado em 1950, pelo papa Pio XII. A virgem, toda gloriosa, sobe aos céus, e a Igreja só reconhece o fato dois mil anos depois. Um outro dogma mais complicado é a Ascensão de Cristo, que "ressuscitou dentre os mortos e subiu ao céu em Corpo e Alma." Os teólogos, especialistas em filigranas, tiveram de discutir um grave problema. Cristo era judeu. Como todo judeu, havia sido circuncidado. Ao subir aos céus, teria deixado o prepúcio na terra?
Corria o ano da graça de 1351. Uma grave discussão tomou conta das mentes da época, o prepúcio de Cristo. A discussão de fundo, em verdade, era outra. Em Barcelona, um guardião franciscano levantou a tese, em um sermão público, que o sangue versado pelo Cristo durante a Paixão havia perdido toda divindade, havia se separado do Verbo e ficado na terra. A proposição era nova e de difícil demonstração.
Nicolas Roselli, inquisidor de Aragon, aproveitou a vaza para atacar os franciscanos, que detestava, e a transmitiu a Roma. O cardeal de Sainte-Sabine, sob as ordens de Clemente VI, escreveu que o papa havia recebido com horror esta odiosa asserção. Sua Santidade, tendo reunido uma assembléia de teólogos, combateu em pessoa esta doutrina e conseguiu que fosse condenada. Os inquisidores receberam em todos os lugares a ordem de abrir os procedimentos contra aqueles que tivessem a audácia de sustentar esta heresia. O triunfo de Roselli foi completo. O infeliz franciscano barceloneta teve de negar sua tese, do alto da mesma cátedra em que a havia proferido.
Restou o problema do prepúcio. Segundo os franciscanos, o sangue do Cristo podia ter ficado na terra, pois o prepúcio extirpado durante a circuncisão havia sido conservado na igreja de Latrão e era venerado como uma relíquia sob os olhos do próprio papa e do cardeal. Um século transcorreu quando, em 1448, o franciscano Jean Bretonelle, professor de teologia da Universidade de Paris, submeteu a affaire à faculdade. Uma comissão de teólogos foi nomeada. Após sérios debates, tomou uma decisão solene, declarando não ser contrário à fé crer que o sangue vertido durante a Paixão tivesse ficado na terra. Por analogia, o prepúcio também. Ou seja, se Cristo foi aos céus, o Sagrado Prepúcio ficou entre nós.
De inhapa, estava resolvida também a questão do prepúcio. Que não tenha subido aos céus, me parece fora de qualquer dúvida. Já o sudário é uma questão de fé.
06 de abril de 2012
janer cristaldo
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