Trata-se daquelas avalanches que não há mais como segurar ou domesticar, independentemente da realização ou sucesso de uma CPI. Como tais fenômenos, em maior ou menor grau, têm se repetido nos últimos anos, é imprescindível perguntar duas coisas: o que gerou uma figura como Carlinhos Cachoeira? Há outros com suas características pelo país?
Há várias causas para esse fenômeno. Elas passam pelo sistema de financiamento de campanha – e da fragilidade de seu controle –, pelo excesso de cargos comissionados no Estado brasileiro, pelas dificuldades de estabelecer competições idôneas nos processos licitatórios e, ainda, pela proliferação do discurso moralista como forma de resolver o problema da corrupção, quando o melhor sempre é aperfeiçoar as instituições e instrumentos que possam barrar a promiscuidade entre os governos e as empresas.
Sobre esse último aspecto, vale ressaltar algo: desconfie daqueles que se colocam acima do bem e do mal, procuram crucificar o acusado, mas nunca propõem mudanças mais profundas na legislação e nas estruturas de funcionamento dos governos.
Mesmo que nada tivesse sido descoberto contra o senador Demóstenes Torres, sua forma de atuação sempre foi de um “salvador da pátria” e sua visão institucional geralmente foi pífia, pois o que interessava era derrubar o inimigo político – no caso, os governos petistas – a qualquer custo.
É bem verdade que esse udenismo já fora praticado por políticos do PT no passado. De tal modo que é preciso buscar políticos e partidos que se guiem mais por projetos de país que por acusações morais contra seus adversários. Para lembrar um episódio célebre da política recente, o mais fácil foi derrubar Collor e seu tesoureiro de campanha, ao passo que difícil mesmo é criar um ambiente que evite a proliferação da corrupção.
Várias são as causas de fenômenos como Carlinhos Cachoeira, mas pouco se fala que a origem de suas práticas está, quase sempre, no jogo político subnacional. Foi assim com Collor em sua República de Alagoas. Foi assim nos primórdios do mensalão em terras mineiras. Foi assim com o pedido de dinheiro para campanha de Waldomiro Diniz para os candidatos do PT e do PSB no Rio de Janeiro. Foi assim em vários escândalos brasilienses dos últimos anos, derrubando senadores e governadores.
Foi assim no esquema malufista paulista e seus prepostos – um até virou prefeito da capital –, que poderia ter sido pior se seu comandante tivesse chegado à Presidência da República. E agora, a política de Goiás, da qual parece que poucos sobraram das garras da contravenção e bandidagem comandada pelo “empresário” Cachoeira. Outras máfias locais existem em outros Estados do país e poderão estourar nos próximos anos, com chances de atingir a política nacional.
Como início de tudo está a forma bastante oligarquizada de realizar a política no plano estadual. Oligarquias como as famílias Barbalho e Sarney, entre as muitas que existem no cenário político, favorecem a concentração do poder político e econômico nas mãos de poucas pessoas. Isso estimula práticas antirrepublicanas e dificulta o controle do Poder Público.
Cabe frisar, no entanto, que o aumento da competição política e o surgimento de novos atores sociais têm melhorado a disputa local, gerando uma pressão sobre esses “donos do poder” inédita em nossa história.
Tal transformação democrática também tem propiciado o aparecimento de governantes, nos municípios e nos governos estaduais, com projetos mais inovadores de políticas públicas, com práticas de gestão mais meritocráticas e voltadas a resultados, bem como o impulso para formas de participação popular.
Mas ainda falta muito a fazer para aperfeiçoar a democracia no plano subnacional brasileiro. Recentemente, o Instituto Ethos publicou um estudo, que pode ser encontrado em seu site (www.ethos.org.br), intitulado Sistemas de integridade nos Estados brasileiros. Nesse trabalho, são apresentados alguns dados que antecipam a eclosão de escândalos no futuro.
Realçam-se deficits de transparência e de controle dos Executivos. Tome-se o caso dos Tribunais de Contas. Segundo o estudo, na maioria dos Estados brasileiros, os colegiados dos Tribunais têm forte proximidade política com os atuais governantes.
Os piores casos são Alagoas, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará e Sergipe.
Aquilo que a imprensa e parcela da sociedade reclamam, com razão, em relação ao plano federal, é muito pior nos Estados: a fragilidade ou quase ausência de oposição. Segundo a pesquisa do Ethos, referente ao período 2007-2010, “em oito das 27 unidades federativas, a coalizão que venceu as eleições para governador obteve maioria também na Assembleia Legislativa. Após a formação do governo, esse grupo cresceu para 21 Estados.
Desse grupo, em sete a oposição foi reduzida a menos de 30%, em dois a menos de 20% e em outros dois a menos de 10%. Durante o exercício do mandato, essa tendência centrípeta tende a continuar. No final do terceiro ano de governo, eram nove os governos com oposição abaixo de 30%, três com menos de 20% e dois com menos de 10%”.
Como resultado desse quase aniquilamento da oposição, em poucos Estados as CPIs constituem instrumentos efetivos de accountability dos governadores.
A proximidade dos Tribunais de Contas com os governadores e a tibieza das Assembleias, além da partidarização de boa parte da imprensa regional, são fatores que criam uma situação de ultrapresidencialismo, como defini, há quase 15 anos, em livro intitulado Os barões da Federação.
Coisas mudaram de lá para cá, mas com a mesma certeza se pode afirmar que ainda predomina um baixo controle dos governantes e oligarquias estaduais, redundando num sistema político pouco republicano capaz de produzir dezenas de Carlinhos Cachoeiras.
Como o gasto público e as políticas do governo federal brasileiro têm grande impacto, as máfias constituídas regionalmente cada vez mais querem ter acesso ao poder central. Por isso Demóstenes Torres, um senador, era um despachante central do esquema.
Muitas são as soluções para o problema da corrupção no Brasil. Obrigatoriamente, deve-se começar pela melhora da democracia de baixo para cima, reformando a política nos municípios e nos Estados, para evitar que o Congresso Nacional e os ministérios sejam, regularmente, cúmplices da bandidagem. Mudar a lógica da política estadual é fundamental para aperfeiçoar os costumes políticos e melhorar a qualidade do debate.
Tão grave quanto ser parceiro de Cachoeira foi Demóstenes, em sessão célebre do Senado, defender ter havido certo consentimento das escravas nos estupros que sofreram da elite branca. Esse reacionarismo pré-abolicionista é fruto do atraso da política local, moralista e imoral ao mesmo tempo.
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