O olhar do meu amigo dizia: “Tá vendo como é chato ser grande?”
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Confesso que jamais tinha pensado nesse ônus do gigantismo ou da grandeza. E com isso fui ao Titanic que, neste último dia 10 de abril fez 100 anos de tragédia, justamente porque era um navio “tamanho família” – um Titanic: um titã do mar. Uma obra de navegação marítima que, em 1912, representava o máximo da tecnologia moderna aplicada ao movimento e à mobilidade. Essas coisas que fizeram das viagens, das descobertas, das fronteiras e do contato com o outro o apanágio, senão o centro da nossa ideologia.
Mas no caso do Titanic, o dia 10 de abril representou um caso raríssimo de ser a sua virginal e última viagem. Ora, essa reunião nua e crua da primeira com a última vez, esse acidente que a crença no utilitarismo tecnológico, com sua racionalidade aplicada, iria resolver de uma vez por todas como então e ainda hoje supomos foi desmentida. Daí o gigantismo da frustração transformada em tragédia quando o Titanic bateu inesperadamente num mero trivial e, naquelas águas, natural iceberg.
No Brasil, onde tudo que é estrangeiro já nasce com o sinal positivo do gênio, fiquei um tanto surpreendido com a nossa distância da tragédia do Titanic.
Meu amigo não queria ser um titã, como o Titanic. Vale lembrar ao leitor, entupido de informação inútil, que os titãs eram gigantes e, na mitologia romana, tentaram escalar o céu para destronar, como ainda ocorre em nossos dias, Júpiter, o pai.
No Brasil, onde tudo que é estrangeiro já nasce com o sinal positivo do gênio, fiquei um tanto surpreendido com a nossa distância da tragédia do Titanic. Penso que o noticiário sobre o centenário da tragédia se resumiu em anunciar o relançamento do filme de James Cameron em 3D.
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Quanto maior o gigante, maior o tombo. O ideal de Babel de chegar ao céu sem sair da terra, unindo este mundo com os outros, é uma velha (e permanente) aspiração humana. Se hoje somos pequenos, feios e fracos, em tempos idos fomos grandes, belos e fortes. Se hoje trabalhamos mais do que burros de carga, vivíamos num mundo de fartura e lazer. Éramos também imortais, até que – num momento específico – alguém (geralmente um ser ambíguo ou inferior – um tipo fora do comum e do lugar como as mulheres num mundo centrado no masculino; os inteligentes num universo de burros; um gordo num mundo de magros; ou um estrangeiro num mundo autocentrado) desobedeceu, errou, esqueceu, não cumpriu uma ordem ou errou o caminho.
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De tudo o que li sobre o Titanic, destaco o ensaio jornalístico escrito por Daniel Mendelsohn publicado na “New Yorker” (de 16 de abril do corrente), no qual ele faz um apanhado dos fatos ligados ao Titanic e desenha com grande sensibilidade o desafio que até hoje temos quando enfrentamos a trivialidade do inesperado, agenciado por esse grande inimigo da modernidade e do iluminismo: o acidente e o não previsto. O que surge, como os pesadelos e os sonhos maravilhosos, quando dormimos; os pensamentos invasivos que nos levam a contradições inafiançáveis; o amor apaixonado que nos faz desprezar mandamentos; a ambição que nos conduz ao antiético e ao crime.
No ensaio de Mendelsohn eu aprendi que o navio inafundável que, não obstante, afundou, era de fato a maior metáfora do mundo moderno. Foi quando pensei na figura do Brasil como um gigante. E, com essa imagem, levei um susto. Pois, no nosso hino nacional, somos um gigante adormecido. Eis, pensei, exagerando como sempre faço, um país Titanic que, adormecido por sua própria autopercepção, ronca solenemente diante da solerte roubalheira que impede o seu salto para uma vida social mais justa.
Pois tal como o Titanic, somos grandes, mas ainda continuamos a ter gente na primeira, segunda e terceira classe. Ademais, temos poucos botes salva-vidas. Mais: resistimos em conceber um navio com menos diferenças e no qual, como ocorreu no Titanic, muitos morreram por valores como a honra profissional devida ao papel que ocupavam (o capitão afunda com o navio!) Quando em 1912 o Titanic afundou, a pusilanimidade não era ainda parte da estrutura daquele mundo hoje desossado pelo capitalismo financeiro e pela mentira como dimensão crítica da vida. Essa mentira sistêmica que desonra os nossos administradores públicos fascinados pela viagem no poder e não pelo poder como viagem.
10 de maio de 2012
Roberto DaMatta
Fonte: O Estado de S. Paulo, 09/05/2012
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