"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 3 de junho de 2012

"MEU PRIMO ANARQUISTA"

CRÔNICA

Esse meu primo nascera em 1900 e emigrou para o Brasil pelos anos 1920, numa época que a Itália, especialmente a sua região, era expulsora. Chegou à Santos e seguiu direto para São Paulo, arranjou logo um emprego num restaurante como lavador de pratos, mas ficou sem ter onde morar e antes de receber seu primeiro salário e poder ir para uma pensão, durante a noite, por ser verão, dormia num banco do Jardim da Luz.
Uma vez estando em seu “banco moradia” viu um casal de namorados que discutiam, a moça foi embora e o rapaz desolado foi sentar-se nesse dito banco, mas falava sozinho e xingava em dialeto vêneto, foi o gancho para que ele fizesse sua primeira amizade no Brasil. Começaram a conversar no idioma mater, o namorado desiludido perguntou onde morava e ao saber que era naquele banco convidou o conterrâneo a ir dormir em sua casa.



Esse último chamava-se Ferruccio, viera com a família em 1912 e era de fato meu primo, pois sua mãe era irmã de meu avô materno, mas essa é outra história.

Seu nome era Luigi Carlo Cariner, ficou morando num quarto na casa de minha tia avó, deixou de lavar pratos e foi ser vendedor dos produtos da fábrica de cerâmica que seus hospedeiros possuíam. Vendeu tão bem que um dia foi até a patroa, dona Ema (minha tia avó) e comunicou-lhe que casaria com sua filha mais velha Flória, a futura sogra para fazer juz à fama do parentesco disse somente:
“Não concordo, mas não posso impedir, de mim não esperem nada”.

Nesse mesmo dia, Flória e Cainer foram até o pretório casaram-se, findo o ato ele levou a mulher até uma loja de modas e comprou dois de cada, isto é, vestido combinação, calcinhas e sutiã, tudo igual e mandou que a esposa já saísse vestindo um conjunto novo, das roupas deixadas mandou fazer um embrulho, foi até a casa da sogra e disse:
“Estou devolvendo os trapos com que sua filha saiu de casa”.

Cainer tinha um grande desafeto, era o gerente da fábrica de cerâmica de sua sogra que desejara casar com a filha da patroa, não perdoava seu rival e sempre procurava um método de diminuí-lo. Cainer, ficara, como se dizia na época, fraco dos pulmões e fora curar-se uma em Campos do Jordão, vindo a São Paulo foi junto com a mulher visitar a sogra na fábrica, lá chegando seu rival não perdeu a oportunidade de destilar seu veneno de ciúmes; ao ver Cainer, magro, pálido e abatido foi logo dizendo perante todos:
“Você está tão mal e tão magro que te faria cair com um sopro”.
Cainer sem titubear respondeu no ato:
“Pudera, com esse mau hálito!”

O espírito anárquico e anti-clerical de nosso personagem pode ser resumindo em um fato que no seu âmago tem uma grande dose de crueldade.
Eu tinha ido passar minha férias em sua casa, devia ter um 13 anos, ele me perguntou onde estudava, disse-lhe que no colégio Salesiano.
“Então você estuda a bíblia” – disse ele
“Sim, gosto muito de apologética”.
“Me conta então a história de Abraão e Isaac, você sabe, não é?”
Feliz por ter sido argüido em assunto que sabia bem, fui logo deitando falação. Contei que Abraão, marido de Sara não tivera filhos com a mulher e quando ele estava com cem anos e ela com noventa o pai eterno informou-lhe que teriam um filho, ambos riram muito e Sara fez saber ao Senhor que já nem lembrava mais como se fazia amor. Este para mostrar que pode tudo, fez com que Sara engravida-se e desse a luz a um filho que recebeu o nome de Isaac, este cresceu e um dia o Senhor resolveu por em prova Abraão, disse-lhe que em sua oferta sacrificasse seu filho, sem titubear o pai pegou todas as coisas para o ritual. Isaac sentiu que faltava o carneiro para o sacrifício e perguntou por ele, ao que foi respondido que Deus o proveria. Abraão chegando ao local determinado preparou o altar e quando propunha-se a matar o filho surgiu um anjo que impediu o feito. Conclui dizendo que assim Deus provara o fidelidade de Abraão.
“Foi assim?” – perguntou-me Cainer
“Sim foi”. – respondi
“Mas aí nessa história ficou faltando uma pergunta: Qual filho gostaria de ter um pai como esse?” – conclusão final.

(*) Ilustração: O sacrifício de Isaac. Pedro Orrente (1580/1645)

03 de junho de 2012
Giulio Sanmartini
NOTA AO PÉ DO TEXTO

Foi com essa narrativa bíblica que um filósofo dinamarques. de nome Soren Kierkegaard, intrigado e angustiado com a fé de Abraão, a ponto de sacrificar seu unigênito, depois de noites e noites maldormidas, dando tratos ao bestunto, levantou a mais intrigante questão sobre a fé de Abraão, com a pergunta: "haveria uma suspensão teleológica?"
m.americo

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