"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 3 de junho de 2012

SOBRE MEDICINA E RELIGIÃO


Minha crônica de domingo passado, sobre as medicinas do Além, rendeu não só cumprimentos, mas também magoados protestos de crentes ofendidos. Me escreve um leitor: “você parou para pensar que você pode estar desrespeitando a sua equipe médica? E se o seu médico é católico ou de qualquer outra religião? Esse é o grande problema dos seres humanos... se acham superiores a tudo e a todos... é lamentável...”

Para início de conversa, isso de achar que ninguém é superior a alguém é ideologia massificante de católicos e comunistas. É óbvio que somos superiores a muitos seres humanos. E inferiores ante outros. Uma pessoa que lê é claramente superior em relação a uma que não lê. Um poliglota é de longe culturalmente superior a um monoglota. Um homem urbano e ciente do valor da vida humana é nitidamente superior a um bugre que enterra crianças vivas, seja porque são gêmeas, seja por porque são filhos de mãe solteira. Um homem com noções de Estado e cidadania é moralmente superior a um silvícola que só tem noção de tribo.

Me considero serenamente superior a esses desmiolados que enchem os templos evangélicos ou os shows de rock, a essa gente que vai xingar a mãe do juiz nos estádios e passa discutindo um jogo de futebol durante uma semana. A essa gente que assiste novelas da Globo e lê Harry Potter. Me considero obviamente superior a leitores de Paulo Coelho ou padre Marcelo, e aqui minha superioridade se estende sobre milhões.

Em contrapartida, me sinto pequeno ante um Platão, Alexandre, Nietzsche, Swift, Schliemann, Fernão de Magalhães ou Champollion. Mais próximos de nós, José Hernández, Orwell, Pessoa. Meu herói dileto é o Alexandre. Não era exatamente um pensador, mas guerreiro e homem de ação. Em 33 anos, conquistou impérios e civilizou nações. O judeu aquele que foi crucificado pelos judeus aos 33 anos – e hoje goza de muito mais mídia que o filho de Olímpia – tem em seu currículo apenas três anos de conversa fiada. Três anos que fizeram a humanidade regredir séculos.

Se algo aprendi de minhas leituras, é que o avanço no tempo não torna ipso facto um homem moralmente superior a seus antepassados. A humanidade jamais produziu um outro Alexandre. Nem produzirá outro Platão. Meus santos tutelares não são contemporâneos, mas homens de séculos atrás.

Voltando à mensagem do leitor: de médicos católicos eu só quero distância. Em meus dias de Florianópolis, encontrei um destes senhores. Estava de partida para a França e ele me advertiu: cuidado com o vinho. Seja moderado. E muito cuidado com os queijos e foie gras. Ora, considero que prescrições médicas devem ser levadas a sério. Era no mês de meu aniversário. Amigos me receberam com muito vinho, champanhe, queijos e foie gras. Eu, beliscando como um tico-tico. Bebendo pouco e comendo menos ainda.

Vai daí que, ao tomar o avião de volta, comprei um Nouvel Observateur. A reportagem de capa era sobre o “paradoxe du Périgord”, algo que até hoje perturba a medicina politicamente correta. Por este paradoxo entende-se o estranho fenômeno de o Périgord ser uma região de alto consumo de patês, queijos e vinhos e, no entanto, seus habitantes gozarem de excelente saúde cardíaca e vascular. Um médico declarava, na reportagem, que inclusive um pouco de boudin no leite das crianças era muito saudável. Boudin é a versão francesa da nossa morcilha. Mais suave e um de meus pratos prediletos. Me senti roubado.

Ao voltar a Santa Catarina, busquei meu médico. De Nouvel em punho. Doutor, o senhor ouviu falar disto, o paradoxo do Périgord? Não, não havia ouvido falar. Então leia esta reportagem. Não leio em francês, disse-me. Tudo bem – respondi – eu traduzo. E traduzi.

Ele fez marcha à ré. Bom... meia garrafa de vinho por dia é sempre bom para o coração. Ou duas doses de uísque. Entende-se que o boudin seja saudável às crianças, contém ferro. Mas nós, médicos, não podemos admitir isto. Seria estimular o alcoolismo.

Não acho. Sempre discordei do conceito médico de alcoolismo. Com o tempo, descobri que médicos formados nos Estados Unidos são sempre mais intolerantes em relação ao álcool que os formados na Europa. Coisa de puritanos. Na Espanha, França, Itália ou Portugal, o vinho faz parte de qualquer refeição.

Antes do final do século passado, uma médica me proibiu qualquer gota de álcool. Consulente disciplinado, passei dois anos sem beber. Minha vida se tornou um inferno. Meus amigos bebiam e eu só tomava cerveja sem álcool. Em alguns bares, fui apelidado de Kronenbier. Meus amigos entravam em uma outra fase e eu restava sóbrio. Horror. Troquei de médica. De início, já fui claro: Doutora, eu estou trocando de médica porque a anterior me proibiu o álcool. Estou buscando uma que o libere. Ela topou e eu voltei ao mundo dos vivos.

Alguns anos depois, voltando de mais um giro pela Europa, fiz meus exames de rotina. Todos os índices vitais, glicemia, colesterol, triglicérides, transaminases, excelentes. Levei-os feliz à minha nova médica. E confessei. Dra! Eu só não bebi no café da manhã. E assim mesmo, em alguns hotéis, não resisti ao champanhe que acompanhava o café.

- Agora, só depois dos exames, é que você diz isso?
- Exato, Dra!
- Bom, então acho que vou te prescrever uma viagem à Europa a cada dois meses.

O que me pareceu ser uma sábia prescrição. Quando vivia em Curitiba, encontrei um gastro, também católico, que ousou me afirmar sem nem ao menos enrubescer: a dose permissível de cerveja é meio copo de cerveja. Ora, Dr! Meio copo de cerveja não existe. Se existissem, os copos não seriam copos, mas meios copos. Alguns anos mais tarde, eu trabalhava aqui em casa e deixei a televisão ligada. Lá pelas tantas ouço um fragmento de frase: meio copo de cerveja. Só pode ser aquele cretino, pensei. Fui conferir. Era.

No Sírio-Libanês, me deparei com um técnico do aparelho de radioterapia que era testemunha de Jeová. Após uma sessão de radiação, eu o ouvi opinando sobre a Bíblia. Dizia umas bobagens sem fundamento algum, aquele papo furado de crente que carrega a Bíblia sob o sovaco e da Bíblia nada entende. Chamei-o às falas. A discussão foi longa. Acabei descobrindo que os testemunhas de Jeová mantém equipes em vários hospitais do país, para dar assistência aos pacientes que se recusam a transfusões de sangue. Essa gente deveria estar na cadeia.

Não, meu caro leitor. De médicos católicos – ou de qualquer outra religião – procuro manter distância. Considero inclusive que se alguém sai da universidade crendo nas coisas do Além, isto é a prova mais evidente de que a universidade fracassou.

Já um dentista católico, nenhuma objeção. Odontos não se metem na vida da gente.
03 de junho de 2012
janer cristaldo

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