Historiador diz que Hugo Chávez,
presidente da Venezuela, é perigoso por ser ambicioso e imprevisível
Roberto Setton |
"Se Lula tivesse sido presidente na República Velha, o Acre seria dos bolivianos e Santa Catarina, dos argentinos" |
O historiador Marco Antonio Villa já
escreveu 21 livros, com temas que variam da Idade Média à Revolução Mexicana. Ao
investir contra mitos da história nacional em suas obras e artigos, esse
professor da Universidade Federal de São Carlos colecionou polêmicas e fez
dezenas de inimigos. Sete anos atrás, tornou-se persona non grata no
estado de Minas Gerais ao sustentar que Tiradentes foi um herói construído pelos
republicanos. Mais tarde, causou comoção ao escrever que o presidente João
Goulart, deposto pelos militares em 1964, preparava o próprio golpe de estado
para obter a reeleição. "Os historiadores costumam ter receio de polêmicas, mas
é com elas que se transforma a visão de mundo de uma sociedade", diz Villa, que
tem 52 anos. Estudioso da diplomacia brasileira, ele vê com preocupação o sumiço
da linha de diplomacia cunhada pelo barão do Rio Branco. "O barão
profissionalizou o Itamaraty, que passou a atuar em busca dos interesses do
país, e não de um governo ou partido." Em sua casa na Zona Norte de São Paulo, o
historiador deu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – Como o senhor avalia a
atual diplomacia brasileira?Villa
– Nossa diplomacia se esquiva de defender os interesses nacionais na América
Latina. Teima sempre em chegar a um acordo e, como não consegue, acaba cedendo
aos vizinhos. Se Lula tivesse sido presidente na República Velha, o Acre seria
hoje dos bolivianos e Santa Catarina, dos argentinos. Por aqui se pensa que o
Brasil não pode ter interesses nacionais ou econômicos na América do Sul, uma
vez que estamos em busca de uma integração regional. É um equívoco. Os
interesses do Brasil não são os mesmos da Argentina. Os objetivos do Paraguai
não são os do Brasil. A linguagem amena, educada, usada pelos nossos diplomatas
apenas tem fortalecido os caudilhos da região, como o venezuelano Hugo Chávez e
o boliviano Evo Morales, que se acham com autoridade para falar ainda mais
grosso e aumentar as exigências.
Veja – A diplomacia brasileira
não era assim no passado?Villa –
Não. No fim do século XIX, a Argentina reivindicou o oeste do Paraná e de Santa
Catarina. Não fazia o menor sentido. O presidente Prudente de Moraes, com a
ajuda do barão do Rio Branco, resolveu a questão e evitou a doação da área. Não
perdemos um hectare de terra. O barão sabia quais eram os interesses nacionais e
os defendia. Além disso, profissionalizou o Itamaraty, que passou a coordenar
uma política em nome do país, e não de um governo ou partido. Hoje, precisamos
urgentemente que o barão do Rio Branco se incorpore no ministro das Relações
Exteriores.
Veja – O Brasil cede
sempre?Villa – Só não o fazemos
quando é impossível. Em negociações recentes com a argentina Cristina Kirchner e
com Evo Morales, a Petrobras recusou-se a fornecer gás para a Argentina, que
vive sob ameaça de um apagão. Se cedesse, o Brasil teria um grave
desabastecimento. Nos outros casos, somos sempre fregueses. O Brasil já sofreu
no passado uma invasão de produtos argentinos e ninguém reclamou. Quando a
situação se inverteu e a balança comercial tornou-se superavitária para o
Brasil, os argentinos chiaram e conseguiram o que queriam. Com a Bolívia,
aceitamos uma indenização simbólica pelas refinarias nacionalizadas, a um valor
muito aquém do que foi investido pela Petrobras. Com Hugo Chávez, falamos sempre
"não" na primeira hora, depois dizemos "sim". Éramos contra o Banco do Sul. Hoje
somos a favor. Fazemos o oposto do que recomendava Vladimir Lenin, para quem era
preciso dar um passo atrás e depois dois para a frente. A diplomacia nacional dá
um para a frente e dois para trás.
Veja – Deportar turistas
espanhóis é uma resposta inteligente à repatriação de brasileiros que tentavam
ir para a Espanha?Villa – Foi um
exagero. A política externa não é para ficar a cargo de um funcionário da
Polícia Federal. As cenas dos espanhóis sendo deportados no aeroporto de
Fortaleza são absurdas. Uma coisa é um turista que vai para Jericoacoara, outra
é um brasileiro que, supostamente ou não, deseja trabalhar na Espanha. Quando
faz diplomacia com a Europa, os Estados Unidos ou a Ásia, o Brasil tem sido
muito agressivo. É como se o esforço para se afirmar como país, uma vez que não
se realiza na América Latina, fosse todo desviado para os fóruns em outros
continentes. Ser duro com um turista espanhol é fácil. Quero ver ser duro com
Hugo Chávez.
Veja – Chávez é o grande líder
da América Latina?Villa – Quando
se olha o que ocorre com os mais de vinte países da região, não há dúvida disso.
Com a alta do preço do petróleo, Chávez construiu uma sólida rede de alianças.
Foi uma sucessão de vitórias. Tem o apoio de Cuba, Nicarágua, Equador, Bolívia,
Argentina. Quem está do lado do Brasil? Ninguém. Chávez é um ator que faz um
monólogo. Eventualmente alguém da platéia sobe no palco e participa. O show é
dele. Ele determina o que vai ser discutido e como. Os outros só correm atrás.
Os países que estão se aproximando do Brasil, como Paraguai e Peru, fazem isso
apenas porque não tiveram ainda um estabelecimento de relações com a Venezuela.
A história talvez comece a mudar agora. Não por obra de Lula, evidentemente, e
sim de Álvaro Uribe, o presidente colombiano. Graças a ele, Chávez teve sua
primeira derrota em política externa. A reunião da Organização dos Estados
Americanos (OEA), que colocou panos quentes na discussão que se seguiu à morte
do terrorista Raúl Reyes, pode sinalizar um futuro diferente.
Veja – Por que o senhor
considera que Chávez perdeu?Villa
– Chávez é um caudilho e, como tal, precisa de um palanque para discursar.
Quando reagiu com firmeza à morte de Raúl Reyes no Equador, ganhou um palco
considerável. Só que durou pouquíssimo tempo. A solução rápida e eficaz do
problema pela OEA, que estava sumida do mapa, tirou essa oportunidade dele.
Chávez resignou-se porque a maioria dos países apoiou a resolução final, que
condenava a invasão territorial no Equador e ao mesmo tempo acusava a presença
das Farc naquele país. Uribe, ao pautar as negociações que esfriaram o conflito,
mostrou que é possível dar um basta a Chávez. Sua atitude terá um impacto
pedagógico até mesmo dentro da Venezuela, onde o povo tem aceitado as precárias
condições internas do país ao ver que, externamente, seu presidente só obtém
vitórias. Chávez teve sua primeira grande derrota no referendo constitucional.
Agora, teve a segunda derrota, dessa vez em política externa.
Veja – Por que o discurso é
tão importante para um caudilho?Villa – Um caudilho não vive sem a oratória. O
programa dominical Aló Presidente é o que vitamina Chávez. Fidel Castro
adora discursar por horas. O mexicano Antonio López de Santa Anna foi ditador
várias vezes, afundou seu país e, ferido e pensando que ia morrer, ditou suas
últimas palavras. Foram quinze páginas. No fim, sobreviveu com uma perna
amputada, que sepultou com honras militares. A oratória é uma tradição
latino-americana, que ocorre paralelamente à dissociação entre discurso e
prática. Para esses homens e para as suas platéias, é como se as palavras,
sozinhas, tivessem um poder de mudar a realidade. Pura bobagem. Não existe tal
mágica. Lula também aposta nesse artifício. Acha que ao divulgar o programa do
PAC pode transformar o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em um bairro
residencial em seis meses. Para os sucessores, a herança desse tipo de
comportamento é terrível.
Veja – Por que os
latino-americanos possuem o vício da oratória? Villa – Em parte, há na América Latina uma forte
tradição do bacharelismo. Muitos dos presidentes passaram por faculdades de
direito. No Brasil, Getúlio Vargas e Jânio Quadros são exemplos. Epitácio Pessoa
era chamado de "A Patativa do Norte", em referência a uma ave cantora. Fidel
Castro foi advogado. O argentino Juan Domingo Perón não era, mas a maioria dos
seus auxiliares, sim. Para um advogado, o que importa não é a legitimidade da
causa, mas o nível de retórica do advogado para defender seu acusado. Somos
muito marcados por isso.
Veja – Qual é o maior perigo
de Chávez para o resto da América Latina? Villa – Ele está armando seu Exército e sua
população. Compra fuzis, caças e faz acordos com o Irã. Ninguém parece levar
isso a sério. A diplomacia brasileira sabe disso e vai contornando a situação.
Uma hora Chávez vai invadir a Guiana. Ele reivindica quase dois terços do
território desse país. Para Chávez, a Guiana é uma aventura fácil. E quem vai
defendê-la? O que a Guiana conta na América do Sul? Nada.
Veja – Chávez reagiu ao ataque
colombiano às Farc no Equador com um discurso em defesa da soberania nacional.
Ele invadiria a Guiana?Villa –
Chávez é um bufão. Ele construiu um personagem. É um militar de boina vermelha
que se emociona, chora e canta em público. Em um momento é simpático. No minuto
seguinte, aparece totalmente irado. O bufão é isso. Nunca se podem prever suas
atitudes. Pode abraçar um crítico ou mandá-lo para a prisão. Suas atitudes não
se regem pelo mundo racional. O bufão trabalha em outro universo.
Veja – Por que Chávez defende
as Farc?Villa – Seu objetivo é
enfraquecer Álvaro Uribe. Chávez vê de forma simplista a conjuntura
latino-americana. O mundo para ele se divide de uma maneira muito primária: os
que estão com ele e os que estão com os Estados Unidos. Considera que o
presidente da Colômbia é um agente imperialista na América do Sul. O combate às
Farc tem sido uma das mais fortes bandeiras de Uribe.
Veja – É legítimo usar grupos
armados ou políticos de outros países para causar
instabilidade?Villa – Há uma
incompatibilidade em defender a soberania e apoiar materialmente um movimento
terrorista em um país vizinho. No Brasil, tivemos uma história parecida. No
governo de João Goulart, as Ligas Camponesas tinham meia dúzia de campos
guerrilheiros e contavam com o apoio financeiro cubano. Quando se descobriram os
campos, foi um escândalo. Vivíamos um regime democrático e o governo brasileiro
manifestava-se contrário à expulsão de Cuba da OEA, enquanto Cuba violava a
soberania brasileira apoiando um movimento guerrilheiro que rompia com a
legalidade constitucional. A defesa da soberania só valia para os cubanos. Eu
imaginava que essa prática de violação da soberania fosse página virada da
história latino-americana. Ledo engano.
Veja – Chávez foi o
grande pacificador do conflito entre Colômbia e Equador, como disse
Lula?Villa – Não há nenhum fato
que comprove isso. Os documentos que estavam no computador do guerrilheiro Raúl
Reyes ainda mostram que Chávez apoiava financeiramente as Farc e também recebia
ajuda dos narcoterroristas. Isso não tem nada a ver com paz. Lula não tinha por
que falar isso. Diz essas asneiras porque está em um momento especial. A
economia vai muito bem, o que levou Lula a entender que ganhou um salvo-conduto
para reescrever a história do Brasil. Discursou homenageando Severino
Cavalcanti, que renunciou quando se comprovou que ele recebia um mensalinho de
10 000 reais para deixar um restaurante funcionando na Câmara dos Deputados.
Dois dias depois, defendeu sua amizade com Renan Calheiros, que teve suas contas
pessoais pagas por um lobista. Quando falou de Chávez, Lula disse que ele era um
ex-guerrilheiro. Lula sabe que essas coisas não são verdade. Não é ingênuo e é
bem assessorado. Mas fala como se fosse um iluminado. É um líder messiânico em
plena campanha eleitoral. Os professores de história devem estar
arrepiados.
Veja – Qual é a importância do
Foro de São Paulo na condução da política externa
brasileira?Villa – O Foro de São
Paulo é um clube da terceira idade. Basta ver as fotos. São senhores em idade
provecta, como se dizia antigamente. São provectos também no sentido ideológico.
Suas idéias pertencem ao passado. Não creio que tenham uma estratégia
revolucionária para a América Latina tal como foi a Internacional Comunista.
Durante o período da União Soviética, os partidos comunistas espalhados pelo
mundo eram braços da política externa soviética. O Foro de São Paulo não tem
esse poder. Sua maior influência se dá pela pessoa de Marco Aurélio Garcia,
assessor especial para assuntos internacionais da Presidência da República, que
tem grande participação no Foro.
Veja – Qual é a relevância de
Marco Aurélio Garcia nas relações externas?Villa – Desde o início da República, não há registro
de um assessor com tanto poder como ele. Garcia aparece nas fotos quase sempre
atrás de Lula. Dá pronunciamentos em pé de igualdade com o ministro das Relações
Exteriores ou o secretário-geral do Itamaraty. Marco Aurélio Garcia é
considerado um grande acadêmico, um gênio, uma referência para qualquer estudo
sobre relações internacionais na América Latina. Curioso é que não se conhece
nenhuma nota de rodapé que ele tenha escrito sobre o tema. Fui procurar seu
currículo na plataforma Lattes, do CNPq. Não há nada sobre ele. Marco Aurélio
Garcia é o Pacheco das relações internacionais.
Veja – Quem é o
Pacheco?Villa – É um personagem
de Eça de Queiroz que aparece no livro A Correspondência de Fradique
Mendes. Pacheco era um sujeito tido como brilhante. No primeiro ano de
Coimbra, as pessoas achavam estranho um estudante andar pela universidade
carregando grossos volumes. No segundo ano, ele começou a ficar mais calvo e se
sentava na primeira carteira. Começaram a achar que ele era muito inteligente,
porque fazia uma cara muito pensativa durante as aulas e, vez por outra,
folheava os tais volumes. No quarto ano, Portugal todo já sabia que havia um
grande talento em Coimbra. Era o Pacheco. Virou deputado, ministro e
primeiro-ministro. Quando morreu, a pátria toda chorou. Os jornalistas foram
estudar sua biografia e viram que ele não tinha feito nada. Era uma fraude.
Veja – Que conseqüências a
política externa do Brasil pode ter no futuro?Villa – Pela primeira vez na história do país existe
a possibilidade de a política externa tornar-se tema de eleição. Seria algo
realmente inédito que, para acontecer, só depende de como Chávez vai agir nos
próximos anos. As concessões dadas à Bolívia, os diversos acordos com Chávez e a
recusa em classificar as Farc como um grupo terrorista estão provocando muita
crítica dentro do Brasil e podem juntar-se em um único e potente tema central na
próxima campanha presidencial.
11 de julho de 2012
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