Erros de planejamento do governo, açodamento político e pouco
caso das empreiteiras encarecem, atrasam e comprometem as intermináveis obras do
rio São Francisco
por PAULA SCARPIN
Em outubro de 2009, uma equipe de assessores da Presidência foi enviada ao
canteiro de obras da transposição do rio São Francisco na cidade de Floresta,
interior de Pernambuco. A comitiva de Luiz Inácio Lula da Silva chegaria dali a
uma semana, e os prospectores estavam em busca de boas histórias que Lula
pudesse mencionar nos palanques – o que sempre gostava de fazer. A comerciante
Eliane Lisboa, então com 35 anos e o rosto envelhecido pelo sol, era uma das
personagens cujo enredo servia aos propósitos do ex-presidente.
Pensando numa forma de lucrar com as obras, havia abandonado o roçado onde trabalhava com o marido para vender coxinhas, pastéis e refrigerantes nos canteiros. Os salgados fizeram sucesso.
E logo Eliane montou um pequeno restaurante na garagem de casa para servir café, almoço e jantar aos operários. Em pouco tempo, precisou construir um anexo e contratar funcionários. “Desde criança sonhava em ter um negócio. Só precisava de uma oportunidade”, disse três anos mais tarde, deitada no sofá de casa numa tarde de setembro.
No palanque montado no canteiro em que trabalhava o Exército, Lula mencionou a história da empreendedora. Quando a comitiva presidencial se retirava, Eliane se apressou para falar com ele. “Lula me chamou para almoçar. Me sentei à mesa com ele e o governador Eduardo Campos”, contou. “Ele quis saber como eu comecei, eu disse que me inspirei nele. Ele chorou, me abraçou muito.” O clima era de confraternização.
Dilma Rousseff, então ministra-chefe da Casa Civil, também participou da viagem. Como sempre fazia, Lula tratou de anunciar à população que aquela desconhecida a seu lado era “a mãe do PAC”. Em Floresta, Dilma obteve 86,3% dos votos válidos na disputa presidencial de 2010. Na vizinha Betânia, atingiu 95,4%.
Nordeste tem mais da metade de seu território coberto pelo semiárido, dispondo de apenas 3% da reserva de água doce do Brasil. A situação se complica porque cerca de 10 milhões de sertanejos vivem da agricultura e da pecuária, atividades muito vulneráveis à seca. O São Francisco concentra 63% da oferta hídrica do Nordeste e é um dos únicos rios perenes a atravessar o sertão. O desvio de parte de sua vazão foi diversas vezes aventado ao longo da história do país. A conversa remonta ao início do século XIX. De maneira intermitente, atravessou o Império e a República.
Em 2007, quando Lula resolveu tirar a transposição do papel, o projeto estava orçado em 4,8 bilhões de reais e tinha sua conclusão prevista para o fim do mandato, em 2010. Hoje, no final de 2012, depois de gastos 3,4 bilhões, pouco mais de 40% das obras estão concluídas. Um novo orçamento, divulgado em março deste ano, estimou um custo final de 8,2 bilhões de reais. O novo prazo para o fim das obras – otimista demais, na avaliação de vários críticos – é 2015.
O nome oficial – “Projeto de integração do rio São Francisco com bacias hidrográficas do nordeste setentrional” – procurou contornar a insatisfação dos estados por onde o rio já passa, contrários à obra. O plano, em resumo, prevê a construção de dois longos canais que devem levar parcela da água do São Francisco para rios não perenes.
A retirada de água prevista é de 26,4 metros cúbicos por segundo, o que corresponde a mais ou menos 1% da vazão garantida pela Barragem de Sobradinho, na divisa dos estados de Pernambuco e da Bahia.
Quando foi lançado, o projeto veio acompanhado da promessa de beneficiar 12 milhões de pessoas em 391 municípios, incluindo a região metropolitana de Fortaleza, onde o problema de falta de água é crônico para 2 milhões de habitantes.
Os pontos de partida dos dois canais ficam no estado de Pernambuco, a menos de 100 quilômetros de distância um do outro. O eixo leste parte do lago de Itaparica e deve percorrer 220 quilômetros até desembocar no rio Paraíba, o mais importante do estado, perto da cidade de Monteiro. A captação de água do eixo norte fica próxima à Barragem de Sobradinho, em Cabrobó, e o canal, com 402 quilômetros, atravessa Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, até atingir a bacia do Jaguaribe, no Ceará.
O governo dividiu os dois longos trechos, que somam 622 quilômetros, em dezesseis lotes, licitados individualmente. A exceção são as duas tomadas d’água, que ficaram sob a responsabilidade da Engenharia do Exército. A região de onde partem os canais é conhecida como “polígono da maconha”. O uso da mão de obra do Exército naquela área tinha também a intenção de inibir a possível resistência às obras por parte de traficantes.
A tomada d’água, ou “ponto de captação”, é um trecho de canal de aproximadamente 10 quilômetros, aberto artificialmente e revestido de talude – pequenas pedras encaixadas manualmente – para evitar o assoreamento, ou seja, o acúmulo de sedimentos pelo depósito de terra, detritos etc. Em seguida, há uma primeira barragem, que funciona como reservatório, e a primeira torre de bombeamento, responsável por impulsionar a água para o restante do canal por centenas de quilômetros.
uma manhã de setembro, entre as cidades pernambucanas de Betânia e Custódia, o padre Sebastião Gonçalves avistou uma placa desbotada fincada entre mandacarus e galhos raquíticos retorcidos. Leu em voz alta o aviso taquigráfico: DEVAGAR TRECHO EM OBRAS CANAL TRANSPOSIÇÃO. Gonçalves puxou bruscamente o freio de mão de seu Fiat Uno e desceu para bater uma foto. “Devagar meeeesmo”, disse, sarcástico, ao voltar para o carro. Pelos próximos quilômetros de estrada de terra, não haveria qualquer vestígio de obra.
Dispensado dos compromissos eclesiásticos para que possa fiscalizar os efeitos da transposição do rio São Francisco nas comunidades de sua diocese, o padre paraibano faz esse trajeto semanalmente há dois anos. Conhece os caminhos da caatinga de cor. Não titubeia em nenhuma bifurcação, não desacelera quando a estrada perde os contornos e se indiferencia da paisagem.
Visto de cima, o canal que margeávamos pareceria um tracejado esparso, em que os traços seriam os trechos já com o concreto armado, separados um do outro por quilômetros de caatinga virgem ou, no máximo, de vala aberta.
Depois da primeira estação de bombeamento, como a água corre com mais força, o canal é nivelado com cimento coberto por uma manta impermeável de pvc, sobre a qual é aplicado o concreto. O percurso deve ter uma declividade constante: em trechos de maior depressão, é necessário fazer aterros ou construir aquedutos; em trechos de elevação, deve-se desgastar o solo, construir uma nova estação de bombeamento ou, até mesmo, um túnel.
O padre, inicialmente, tinha a missão de cobrar oportunidades de emprego para os pais de família da região, de conferir as indenizações para quem é relocado, de checar se as detonações para abrir o canal têm abalado a estrutura já frágil das casas. Mas o trecho do canal que passará pela área de sua diocese, com sede em Floresta, está parado há mais de dois anos. A principal atividade do padre desde então tem sido fotografar a vegetação que invade as obras abandonadas e as rachaduras no concreto já armado – e publicar seus registros na internet.
Sebastião Gonçalves é o 13º filho de uma família católica não praticante de Patos, na Paraíba. Ligado à Comissão Pastoral da Terra e devoto de são Francisco de Assis, o padre, de 37 anos, não esconde sua simpatia pelo socialismo. Tem desprezo por qualquer tipo de luxo. E raramente sorri. Em uma semana de viagem, riu uma única vez, ao ouvir a canção O Pobre e o Rico, de Biliu de Campina: “Todo rico tem um meio de vida/ Todo pobre, a vida pelo meio/ O rico pega o carro e sai para passear/ O pobre sai para passear e o carro pega.”
Padre Sebastião, como é mais conhecido, é capaz de passar horas sem pronunciar uma única palavra. Na maior parte das vezes, simplesmente ignora o interlocutor quando é abordado. Ainda nos primeiros quilômetros de trajeto, perguntei-lhe o que pensava do programa de cisternas. Foi uma das perguntas que deixou sem resposta.
Distribuídas por órgãos governamentais para armazenar a água da chuva, as cisternas podem abastecer uma família de cinco pessoas por até oito meses, caso a água seja utilizada só para beber e cozinhar.
Nos anos 80 e 90, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agráriaorganizou a construção de cisternas de alvenaria no Nordeste. No governo Lula, foi dada ampla divulgação ao projeto Um Milhão de Cisternas, que recentemente alcançou metade da meta. O Ministério da Integração Nacional, no projeto Água Para Todos, começou agora a distribuir cisternas de polietileno.
Quando o sol se pôs, o padre embicou o carro num vilarejo e estacionou ao lado de uma casa de reboco. “Já tomou banho decuia?”, perguntou, sem esperar pela resposta. Na janela da casa, uma senhorinha com longos cabelos brancos presos num coque abriu um sorriso e estendeu os braços para Sebastião Gonçalves. Maria do Socorro da Silva mora sozinha com o filho e sempre hospeda o padre. “Tia Cuca”, como é chamada pelos vizinhos da comunidade da Serra Negra, gosta de mimá-lo com cuscuz de milho na manteiga e biscoitos.
Na cozinha, a beata guarda a água em potes de barro para beber, cozinhar e lavar a louça. No banheiro, um balde sob a pia serve tanto para a descarga quanto para lavar as mãos. Uma bacia sobre um banquinho ocupa metade da área do boxe. A “cuia” é uma canequinha de plástico, que auxilia o enxágue do banho. Oito anos atrás, quando a prefeitura cavou um poço à distância de 7,5 quilômetros da vila, ela e o marido instalaram pias, descarga e chuveiro. Mas as gestões municipais seguintes alegaram que não havia dinheiro para as adutoras, e o marido de Tia Cuca morreu antes de ver a água chegar pelos canos.
Ainda que distante, o poço salvou o vilarejo da total dependência dos caminhões-pipa, que são a única fonte de abastecimento das cisternas em longos períodos de seca, como a atual, que já dura dois anos e é considerada a maior dos últimos trinta anos na região.
Aos domingos, as famílias sobem de moto até o poço, com as roupas da semana para lavar. “A gente leva uma carne seca, uma macaxeirinha para passar o dia. É até um divertimento”, disse a viúva. Aproveitando a campanha eleitoral, o padre Sebastião e um grupo de moradores levaram a seguinte proposta à prefeita, que tentava a reeleição: ela doaria o material necessário para a adutora e a própria vila ficaria responsável pela mão de obra. Ela aceitou.
a manhã seguinte à nossa chegada à Serra Negra, o padre juntou-se ao mutirão que puxava o encanamento da água do poço. Decidiu que já era hora de responder à minha pergunta sobre o programa de cisternas: “Quem diz que cisterna é a solução para o sertanejo é porque tem água encanada em casa”, disse.
No mutirão, um homem magro de bigode e pele avermelhada transportava longos canos de pvcazul sobre os ombros, cinco de cada vez. Para se proteger do sol inclemente, Luís Henrique da Silva vestia calça comprida e camisa de manga longa. Tinha um lenço sob o boné, para esconder o pescoço.
Desempregado desde que a construtora Egesa abandonou o seu lote na obra do São Francisco, Silva tem feito bicos como catador de madeira para sustentar a família. Arrependido dos “quatro meses e seis dias” em que trabalhou como servente de pedreiro na transposição, ele e outros colegas tentam anular a passagem profissional na Justiça. Ainda que breve, o registro em carteira impede que ele se aposente como trabalhador rural aos 60 anos.
A água vertida pelo poço em Serra Negra deverá ser usada somente para beber, cozinhar e tomar banho. “Não tem suficiente para todo mundo fazer uma plantaçãozinha irrigada, criar gado. Vai dar no máximo para uma horta no quintal de casa e dar de beber a uns poucos animais”, disse Silva. Ele tem esperança de que, quando o canal da transposição estiver concluído, passando ao lado da comunidade, será possível captar a água necessária para o vilarejo viver da agricultura e da pecuária.
o terceiro dia de viagem no carro do padre Sebastião Gonçalves, em meio a uma paisagem árida e monótona, avistamos um cilindro amarelo de10 metros de altura. “Canteiro da Camter”, disse o padre ao bater a porta do carro. Um funcionário que cochilava à sombra do misturador de concreto acordou assustado. Disse que não existia qualquer atividade ali havia dois anos. Pediu para não ser identificado, mas afirmou ser segurança – e logo em seguida zombou da própria declaração: “Segurança... se alguém quiser levar alguma coisa, eu não vou poder fazer nada...”
O canteiro da Egesa, parceira da Camter no consórcio responsável por aquele trecho da obra, foi abandonado ainda antes. Certa manhã, os operários chegaram para trabalhar e encontraram a estrada fechada por moradores de Serra Negra, onde parte das casas deverá ser removida. As obras haviam começado antes do processo indenizatório e da construção de novas casas. Como em quase todo o trajeto, ali também é necessário detonar explosivos para abrir o canal. As plantas na região são esparsas e raquíticas, e uma fina camada de terra cobre o terreno rochoso.
Em maio de 2010, um grupo de moradores acampou por dois dias na estrada, impedindo o acesso ao canteiro. “O pessoal da Egesa passava e dizia: ‘Esses homens vão ficar desempregados e a culpa vai ser de vocês’”, lembrou o padre Sebastião, um dos organizadores do motim. “Mas já corria o boato de que a empresa ia abandonar o consórcio, e mesmo os moradores que conseguiram emprego na obra estavam do nosso lado.” Mobilizados, eles exigiam a presença de “uma pessoa de Brasília” para negociar as indenizações.
Rubens Lopes, responsável pelo setor fundiário do Ministério da Integração, foi enviado às pressas para tratar com os revoltosos. Depois de uma reunião na igrejinha da comunidade, a equipe voltou a Brasília prometendo solucionar o caso no máximo em um mês. Em maio deste ano, a obra completou dois anos parada. No último dia 31 de agosto, o Ministério da Integração Nacional rescindiu unilateralmente o contrato com o consórcio Camter/Egesa – responsável por executar o lote 9. Os trabalhadores ainda não foram indenizados.
Cansado de rodar pelas obras abandonadas, padre Sebastião pretende pedir autorização para ficar lotado um tempo na comunidade da Serra Negra, onde acredita que será mais útil. O padre e o amigo sindicalista Manoel Bernardo – que muitas vezes o acompanha nas viagens – pretendem trabalhar com a formação de jovens. “Existe uma ideologia de messianismo no sertanejo, de esperar alguém de fora vir resolver o problema. Esse salvador era o coronel, agora pode ser um político, um técnico, até mesmo a Igreja”, disse o padre. “Eles preferem morrer de sede esperando pelo assistencialismo a usar a sua força.”
No final de outubro, em sua sala no Ministério da Integração, em Brasília, a coordenadora de programas ambientais Elianeiva de Queiroz explicou que a vila da Serra Negra é uma região particularmente complexa por se tratar de um assentamento do Incra dentro de uma área reivindicada pela Funai como reserva indígena. Segundo ela, o canal da transposição foi parado naquele trecho porque o Incra ainda não apresentou a documentação de propriedade ao Ministério.
Cearense, Elianeiva tem em sua sala mais de 100 imagens de são Francisco de Assis, que comprou ou ganhou desde que começou a trabalhar no projeto da transposição, em 2004. Mas nem a devoção ao mesmo santo a faz simpatizar com Sebastião Gonçalves. “Esse padre Sebastião é um mobilizador, quer aparecer”, disse. “Isso tudo é muito mais complicado do que parece. A gente parou a obra porque é uma zona de conflito. Essa é uma das melhores terras para irrigação, mas precisamos de um posicionamento do Incra e da Funai.”
ssa estradinha aqui margeando o canal vai ser futuramente uma estrada de serviço, para manutenção. O canal vai ser cercado, para não entrar animal, para não entrar população”, explicou o engenheiro Renato Saraiva, no final de setembro. Ele foi contratado pelo Ministério da Integração para fiscalizar o andamento das obras na região de Salgueiro, em Pernambuco. Peguei carona em sua 4x4 num dia de vistoria. Enquanto visitávamos o canteiro, ele explicava alguns detalhes do projeto. “A população não vai ter acesso à água diretamente. Vai ter unidades de acesso, mas isso aqui não vai ser um rio para quem quiser vir e pegar água.”
O trabalho de Saraiva é verificar a produção de cada empreiteira para definir a parcela mensal de remuneração devida. Há, ao todo, setenta engenheiros do Ministério destacados para a obra. Controlam a quantidade e a qualidade das tarefas executadas. No final do mês, com a ajuda da equipe de topografia, contabilizam o metro cúbico de aterro, escavação ou concreto, e liberam o pagamento correspondente.
Paulista de São Bernardo do Campo, Saraiva trabalha na transposição há quase quatro anos e diz que se sente completamente adaptado à vida no interior do Nordeste. Casado com uma pernambucana, com quem tem uma filha, diz que os amigos e a família não entendem como ele conseguiu sair do “agito” da Grande São Paulo para viver no “meio do nada”.
Saraiva é muito assediado por pessoas procurando emprego. Com a seca, as grandes obras do governo federal apareceram como alternativa de trabalho. “O pessoal já parou meu carro. Na porta dos canteiros das empresas chegou a ter barraca de churrasquinho, porque o pessoal passava o dia na fila para entregar o currículo.”
O engenheiro diz que as empresas, em princípio, são receptivas à mão de obra local. Trazer trabalhadores de fora exige investimento em moradia e um regime de folgas mais longas para visitar familiares. Mas a contratação esbarra na falta de qualificação. O engenheiro diz ter ouvido o seguinte do encarregado de uma construtora: “Para o trabalho mais braçal, tudo bem, mas não vou entregar uma retroescavadeira que custa 500 mil reais na mão de uma pessoa que não sabe operar.”
Segundo Saraiva, a distância dos grandes centros encarece o preço de tudo. Além disso, ele reconhece que os contratos estão desatualizados, foram orçados antes do boomda construção civil que houve no país. “As obras da Copa têm um preço melhor, mais visibilidade. Houve uma perda de interesse nisso aqui, a realidade é essa.” Tal fato seria uma das principais razões para a quantidade de lotes abandonados. Ouvi o mesmo argumento de diversas pessoas durante a viagem, mas a maioria não quer se identificar.
os dezesseis lotes licitados, cinco contratos foram rescindidos. De acordo com o Ministério da Integração, a maior parte dos lotes está com cerca de 30% das obras executadas. Existem exceções, como os canais de aproximação, sob a responsabilidade do Exército, praticamente finalizados, e, no extremo oposto, o lote 4, com apenas 7% das obras concluídas. A empreiteira Encalso, responsável pelo consórcio nesse trecho, não quis se pronunciar. Alegou que o contrato já foi rescindido.
No lote 8, que Saraiva fiscaliza, sob a responsabilidade da Mendes Júnior e da GDK, pouco mais de 20% das obras estão concluídas. Mas os canteiros, agora, funcionam a pleno vapor, 24 horas por dia, em três turnos. Segundo a Integração Nacional, essa é uma opção do consórcio. As obras nesse lote começaram em março de 2011 e estariam “dentro do cronograma”, segundo o Ministério.
Saraiva argumentou que o andamento ou não de cada lote tem menos a ver com a empreiteira do que com o trecho licitado. Ele cita como exemplo o consórcio formado pelas construtoras Carioca, Serveng e s.a. Paulista, que ganhou as licitações dos lotes 1 e 7. No lote 1, próximo ao canal de captação do eixo norte, as obras estão funcionando num ritmo normal, enquanto o lote 7 foi abandonado. “Cada consórcio pode entrar em várias concorrências. E cada contrato é um caso. A gente trata como se fossem empresas diferentes”, disse.
Pouco antes de uma parada no canteiro de Cabrobó para o almoço, o engenheiro apontou para um terreno alto e rochoso que estava sendo escavado. “No projeto inicial aqui seria um túnel. Quando começaram a escavar, viram que não daria certo porque a rocha não tinha estabilidade, começou a desmoronar.” Naquele trecho, era impossível executar o projeto da maneira como havia sido projetado. “Isso, por exemplo, dá à construtora o direito de entregar o lote e ir embora, porque o estudo era de responsabilidade do governo”, disse o engenheiro.
Antes de abrir a licitação para as empreiteiras, o Ministério da Integração encomendou um projeto básico ao consórcio Harza/Engecorps. O projeto básico é uma investigação preliminar, com sondagens e levantamento topográfico pouco detalhados. A legislação exige que a licitação seja feita nesses termos, o que abre o caminho a uma série de imprevistos.
Além das discrepâncias entre o projeto básico e a realidade da obra, no caso da transposição as empreiteiras enfrentaram problemas que vão do atraso na desapropriação de terrenos habitados até a descoberta de postes e fiação elétrica no meio da rota prevista para os canais.
“A construtora quer fazer a obra o mais rápido possível para receber e ir embora, mas ela nunca teve o terreno livre para trabalhar. Então, ela coloca uma equipe pequena e vai administrando, porque ficar com equipamento parado, mão de obra parada, aumenta o custo e diminui o lucro”, disse o engenheiro. “A maneira que algumas encontraram de pressionar foi parar a obra.”
O contrato prevê uma multa no caso de abandono da obra. “Mas o governo federal não cumpriu a parte dele no contrato. Não tinha todos os projetos, não tinha feito as desapropriações, não tinha feito a remoção das interferências, então não tinha como fazer a obra”, resumiu o funcionário do Ministério. Na prática, como o governo não deu totais condições para a execução da obra, as duas partes vêm firmando acordos. O prazo original, concluiu Saraiva, “era muito ambicioso, não era exequível, era um prazo político”.
s dois presidentes que antecederam Luiz Inácio Lula da Silva tentaram realizar a transposição. No último ano de seu mandato, Itamar Franco chegou a anunciar a execução da obra, mas suspendeu o plano pouco antes da fase de licitação, por pressão de opositores – dos quais o mais histriônico era o então senador baiano Antônio Carlos Magalhães, do antigo PFL, atual DEM.
Entre 1995 e 2002, nas duas gestões de Fernando Henrique Cardoso, vários projetos foram estudados e novamente engavetados. Na última tentativa, em 2001, o governo chegou a desembolsar quase 3 milhões de reais num estudo detalhado que deu um parecer favorável à obra. O custo estimado da transposição girava, à época, em torno de 3 bilhões de reais.
Na campanha presidencial de 2002, Lula e o candidato tucano José Serra evitaram se posicionar sobre o assunto.Em junho daquele ano, o PT lançou uma proposta por escrito para a área de meio ambiente, sem tocar no tema. Perguntado sobre o rio São Francisco, um dos responsáveis pelo documento disse ao jornal Folha de S.Paulo: “A transposição não é solução para os efeitos da seca.
Há outras medidas prioritárias, como construção de poços comunitários e cisternas.” Meses depois, em um debate na Rede Globo, o candidato Anthony Garotinho, então no PDT, tentou arrancar dos dois adversários um posicionamento sobre a transposição. Serra logo disse que não tinha opinião formada. Lula esquivou-se – e chegou a dizer para Garotinho que ele, Lula, era líder nas pesquisas e precisava ser mais cuidadoso com o que dizia.
Já eleito, em maio de 2003, o petista fez um discurso inflamado no Congresso, em que, finalmente, defendeu sua posição: “A tal da transposição das águas do rio São Francisco, que eu recusei debater durante tanto tempo, que, dependendo do estado de que você fale, você apanha, dependendo do estado de que você fale, você é aplaudido... Eu vou confessar, eu não sei se do São Francisco ou de onde, mas vai haver a transposição das águas para o semiárido nordestino!”
Ele incumbiu o então ministro Ciro Gomes de tirar o projeto do papel. O titular da Integração Nacional saiu em peregrinação pelo país. Foi a programas de tevê, visitou redações de jornais, participou de debates, fez reuniões com representantes dos mais variados partidos. Em todas as ocasiões, empenhou-se em convencer seus interlocutores da urgência das obras.
Entrevistado pelo programa Roda Viva da tv Cultura, em fevereiro de 2005, o então ministro enfatizou que a grande diferença entre o projeto de transposição aventado por FHC e o de Lula residia na inclusão de um detalhado projeto de “revitalização” do São Francisco – uma contrapartida para os estados que se consideravam prejudicados e também aos ambientalistas. O ministro se valeu da origem nordestina para defender o projeto: “Eu sou de lá, então eu fico indignado, porque devia ser pacífica entre os que não estão doentes de egoísmo a percepção de que há milhões de brasileiros na miséria mais aguda por falta de água”, disse.
ntre os opositores da obra, um dos argumentos mais contundentes é o de que o São Francisco já estaria condenado à deterioração e à morte pela série de interferências que sofre da nascente à foz – portanto, não teria como ceder parte de suas águas para dois novos canais. Com o desmatamento da mata ciliar, cerca de 18 milhões de toneladas de terra se desprendem das margens e assoreiam a calha do rio anualmente, chegando a formar bancos de areia e até ilhas. Com isso, vários trechos deixaram de ser navegáveis.
As autoridades públicas dos chamados estados “doadores” – Minas Gerais, Bahia, Alagoas e Sergipe – em geral se posicionaram contra a obra. Além da questão ambiental, reclamavam da falta de investimentos sociais do governo federal onde o rio São Francisco já passa. O governador de Sergipe, Marcelo Déda, embora petista, esteve todo o tempo entre os opositores da transposição. Jaques Wagner, hoje governador da Bahia, nunca deixou clara a sua posição. Preferiu negociar a execução de um terceiro eixo de transposição: o sul, em direção ao interior baiano, cuja licitação está prevista para o começo de 2013, apesar da situação dos demais eixos.
Wagner teve um papel de relevo no episódio mais polêmico relacionado ao início das obras. Quando o bispo dom Luiz Flávio Cappio, de Barra, cidade banhada pelo São Francisco no interior da Bahia, começou uma greve de fome para protestar contra o projeto, em 2005, Wagner, na época ministro de Relações Institucionais, foi enviado para negociar com o religioso. Cappio interrompeu o jejum em troca de ser atendido por Lula, o que acabou não acontecendo.
Em 2007, o bispo deu início a uma nova greve de fome. Seus apoiadores argumentavam que o governo estava agindo a toque de caixa, sem submeter a obra à discussão pública. O bispo ficou 23 dias sem comer.
“Essa obra dividiu a política, o povo e até a Igreja”, disse o padre Sebastião Gonçalves num dos poucos momentos em que tomou a iniciativa de quebrar o silêncio enquanto margeávamos o futuro canal. “A estratégia que dom Cappio encontrou de chamar a atenção foi contundente, mas questionável. Ele tomou uma decisão isolada, foi quase um suicídio. Esse não é o caminho do Evangelho”, disse.
o projeto de transposição proposto no governo Fernando Henrique Cardoso ao implantado por Lula, poucas mudanças técnicas foram feitas. A maior delas está na vazão: o plano anterior pretendia que os canais desviados tivessem vazão média de 64 metros cúbicos por segundo, mais que o dobro do previsto hoje. É flagrante, entretanto, a mudança no discurso que pretende justificar a obra e o investimento. Em 2000, o plano de FHC propunha a seguinte divisão para a água desviada: 71% para irrigação, 25% para consumo urbano e 4% para perdas e outros consumos. O projeto deixava explícito que o objetivo era inserir o nordeste setentrional em um “processo de produção econômica realmente competitivo: a agricultura irrigada”.
O maior exemplo de sucesso da agricultura irrigada do país é o polo Petrolina–Juazeiro, a menos de 200 quilômetros da tomada d’água do eixo norte. Implantado a partir do final dos anos 60, nos anos 90 o polo passou a se destacar como o maior produtor e exportador de verduras e frutas de alta qualidade do país. Além da produção para exportação, com ênfase para a manga e a uva, há uma grande variedade de produtos para o consumo interno, como banana, coco, melão e tomate.
Entusiasta do projeto, fhcestimulou a industrialização da produção, como o processamento de tomate para molho e ketchup e de polpa de frutas. Atraída pelos benefícios da fruticultura irrigada, a maior vinícola do país, a gaúcha Miolo, passou a produzir no vale do São Francisco – em 2012, seu vinho Testardi, feito com a casta Syrah, foi eleito o melhor tinto nacional no teste cego realizado no evento ExpoVinis.
No artigo “O debate parlamentar sobre o projeto de transposição do rio São Francisco no segundo governo Fernando Henrique Cardoso”, citado em diversos estudos sobre a questão, a antropóloga Cecília Campello do Amaral Mello conclui que o projeto pretendia investir no desenvolvimento econômico da região para só depois distribuir os frutos entre a população.
Numa nota de rodapé, a doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro pondera:“O discurso do governo fhcoscilava ao definir publicamente os beneficiários diretos do projeto de transposição. Em certos momentos, definia-se como objetivo central a garantia de água para os grandes projetos de agricultura irrigada para exportação. Porém, em outros momentos, o governo produzia estratégias discursivas de ocultamento de tal objetivo, definindo que o objetivo seria garantir a ‘oferta hídrica’, sem explicitar seus usos finais.”
um fim de tarde de setembro, o presidente da Federação das Indústrias do Estado da Paraíba, Francisco Gadelha, listava entusiasmado os benefícios da transposição. “Com as águas do São Francisco, vamos poder investir na irrigação...”, começou, para logo se censurar com ironia: “Irrigação é uma palavra proibida, tem que se falar somente em abastecimento humano e animal.Porque irrigação gera riqueza, e riqueza é proibida no Nordeste.”
Em seguida, defendeu a segurança da cultura irrigada: “Você põe água na conta certa, sem matar afogado, sem matar de sede. A gente vê duas safras e meia de uva por ano em Petrolina. Colocando melões, morangos, uvas no mercado europeu.”
Gadelha é bom de conversa. Fala como se sua sala de espera não estivesse lotada. Não economizou histórias pessoais, exaltou o projeto arquitetônico do prédio da Fiep, apresentou seu jardim de inverno com um mural de azulejos deAthos Bulcão e contou episódios com a presidente Dilma, a quem acompanhou numa viagem recente à Índia. Dilma o chama pelo apelido de “Buega” – assim ele é conhecido em Campina Grande.
Para Gadelha, o Nordeste está crescendo “num ritmo chinês”, mas a partir de um patamar muito baixo, que só a transposição poderá corrigir. Adiantando-se ao final das obras, ele montou escolas do Senai no interior da Paraíba para a formação de trabalhadores na indústria de sucos, extrato de tomate, ketchup e vinho. “Quando as águas chegarem, já estaremos formando as primeiras turmas”, disse.
A Paraíba é o estado mais pobre em recursos hídricos do Brasil, e também o que será mais beneficiado com a transposição. A segunda maior cidade do estado, Campina Grande, tenta até hoje reviver seu passado glorioso. Entre os anos 10 e 30 do século passado, quando sua produção de algodão só ficava atrás da de Liverpool, na Inglaterra, a cidade viu a população aumentar em 650%.
Com as plantações devastadas pela praga do bicudo e a concorrência da produção de outros estados, Campina Grande investiu na industrialização e até hoje tem um dos maiores parques industriais do Nordeste – as sandálias Havaianas, por exemplo, são todas produzidas ali.
Irmão de Marcondes Gadelha, deputado relator do Grupo de Trabalho da Transposição do Rio São Francisco durante o governo FHC, o presidente da Fiep não esconde seu ressentimento com o tempo que o projeto levou para decolar. “O dinheiro de umas 100 transposições é gasto todo ano em obras no Sul e no Sudeste do país. Porto de São Sebastião: 5 bilhões de reais, ninguém nota. Trem-bala: 30 bilhões, não tem problema nenhum.” Para ele, só Lula teve a sensibilidade de investir na transposição por saber o que é carregar uma lata d’água na cabeça. “Infelizmente as obras estão andando tão lentamente, o que dá tempo de as pessoas voltarem a reclamar de uma coisa que já está decidida.”
m dos mais incansáveis adversários do projeto de transposição é João Suassuna, especialista em hidrologia do semiárido. No começo de setembro, na sede da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, onde é pesquisador, o engenheiro explicou sua posição. Disse que em 2004 participou de um grupo de estudos convocado pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência, a SBPC, que concluiu ser possível resolver a carência hídrica do sertanejo apenas com fontes de água do próprio Nordeste. “O Nordeste tem mais de 70 mil represas, que acumulam o volume potencial de 37 bilhões de metros cúbicos de água. É o maior volume de água represado em regiões semiáridas do mundo”, disse Suassuna.
Dois anos depois, a Agência Nacional de Águas editou o Atlas Nordeste – Abastecimento Urbano na mesma linha do resultado do grupo de estudos da sbpc. Segundo o engenheiro, o projeto da anatinha um custo previsto de 3,3 bilhões de reais e, apenas canalizando as águas das represas da região e de alguns novos poços, beneficiaria 34 milhões de pessoas (em comparação com o orçamento atual de mais de 8 bilhões de reais e os 12 milhões de beneficiados previstos na transposição).
“Além disso, não ficou claro como essa água vai chegar aos tais 12 milhões de pessoas. É uma população que vive de forma esparsa nos grotões, nos pés de serra, nos sítios, nos pequenos lugarejos. E vive sendo atendida por frotas de caminhões-pipa, com os problemas políticos que a gente sabe.”
Para Suassuna, a única explicação verdadeira para um projeto monumental como esse é que a água será destinada ao abastecimento das capitais, à irrigação e à indústria, e não ao pequeno trabalhador do sertão. “Nós, técnicos envolvidos com questões hídricas, sabemos que o programa de abastecimento de populações não é feito através de canais”, disse Suassuna, batendo exaltado com a mão na mesa. “Essa água vai para o agronegócio! Vai para a irrigação pesada, vai para os usos industriais, para a criação do camarão. Essa é a verdadeira indústria da seca”, completou.
uma manhã no final de outubro, em seu gabinete, o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra, do PSB de Pernambuco, classificou a afirmação de João Suassuna como “meia verdade”. “Quando a pessoa quer criticar a transposição, ela não vê os outros programas do Ministério”, disse. Citou o Água Para Todos, que prevê a instalação de 750 mil cisternas. “Estamos furando poços, fazendo os pequenos barreiros e as barragens subterrâneas que o Suassuna defende.”
O ministro concordou que houve problemas com as licitações, conforme havia mencionado o engenheiro Renato Saraiva, e acrescentou que ter fatiado o projeto em tantos lotes foi outro grande erro. “A ideia na época era evitar que a obra fosse feita pelas grandes empreiteiras. Os lotes menores permitiriam a participação das médias construtoras e ampliariam a competição”, afirmou. “Só que esqueceram que uma obra dessas tem engenharia complexa envolvida. Não é qualquer empreiteira que vai ter o know-how, a expertise.”
Bezerra alegou que a obra já estava “desmobilizada” quando ele chegou. “Como os contratos eram ruins, a empresa fazia o filé e deixava o osso. Então você tem uma colcha de retalhos na obra. Que maluquice é essa?”, bateu, também ele, na mesa. Bezerra disse que sua intenção era não deixar a obra parar, e que estava disposto a negociar os aditivos reivindicados pelas empreiteiras, mesmo que ultrapassassem os 25% previstos em lei. “Os aditivos costumam ser vistos como coisas ruins e onerosas para a administração pública, mas, em alguns casos, é muito melhor propor o aditivo do que relicitar”, disse.
Até agora, só um lote foi autorizado a extrapolar os 25% no aditivo: onde estão sendo construídos os túneis Cuncas ie ii, na divisa da Paraíba com o Ceará. Como o custo de mobilização e desmobilização do maquinário é muito alto, o governo autorizou o acréscimo de mais de 80% no orçamento.
Nos lotes restantes, foi necessário negociar com as empresas para rescindir os contratos e poder relicitar a parte da obra que está pendente. “Essa é sempre uma questão delicada em obras públicas: evitar a judicialização dos contratos. Se você tem um contrato questionado na Justiça, você pode impedir a continuidade da obra”, disse o ministro. “É um canal. Se tiver um problema num trecho, a água não passa. Então a gente fica entre a pressão dos órgãos de controle e dos contratados.”
meta do Ministério era ter todas as novas licitações feitas até julho deste ano, mas algumas empresas que negociaram a continuidade de seus contratos voltaram a descumpri-los. Com isso, o saldo do que deve ser licitado outra vez aumenta. “A gente tem que tomar muito cuidado para não lançar o edital de um serviço que já tenha sido feito, ou deixar algum de fora”, argumentou Bezerra.
No começo de agosto, o Tribunal de Contas da União definiu como “moroso” o trabalho do Ministério da Integração para resolver as pendências nas obras da transposição. O relatório apontou ainda falta de fiscalização, superfaturamento e problemas de manutenção nos serviços já executados.
“O ministro Raimundo Carreiro quer saber quem diabo deu causa a essa obra estar com todos esses problemas”, disse Fernando Bezerra. “A gente não é contra um processo desses, mas ele gera muitas demandas. Eu disse a ele: ‘Se a gente for atrás para ver o que aconteceu, nós não vamos fazer o que tem que fazer, que é botar a obra para terminar.’”
O ministro Raimundo Carreiro disse à piauíque o TCU pediu ao Ministério da Integração que ouvisse os gestores responsáveis pelas contratações no passado. “O ministro Fernando Bezerra ficou assustado com o relatório e veio conversar comigo”, disse Carreiro. Ele pediu que o ministro se manifestasse por escrito, solicitando um novo prazo. A solicitação de Bezerra ainda não chegou ao TCU, mas, a despeito das irregularidades que apontou, Carreiro disse que autorizará “o prazo que for necessário para as obras não atrasarem ainda mais”. Afirmou ter entendido o argumento do ministro, de que “não teria pessoal para tocar as obras e investigar ao mesmo tempo”.
O Ministério da Integração pretende lançar em janeiro o edital referente às obras do terceiro braço a ser desviado do São Francisco, o eixo sul. “Mas dessa vez vamos licitar no RDC”, disse o ministro Bezerra, referindo-se ao Regime Diferenciado de Contratações – nele, a empresa vencedora da licitação fica encarregada dos projetos básico e executivo da obra, o que para o governo agilizará os serviços, enquanto para os críticos deve encarecê-los. Já as licitações para os trechos que foram interrompidos nos eixos norte e leste serão divididas em seis lotes, no lugar dos dezesseis iniciais.
“Quando eu levei a presidenta à obra, em fevereiro, a gente consolidou essa nova estratégia”, disse o ministro.
óbvio que houve uma desmobilização, e nós não estamos aqui negando a realidade”, declarou Dilma Rousseff aos jornalistas que a aguardavam no aeroporto de Juazeiro do Norte, no Ceará, ao fim de sua visita às obras da transposição.
Em 8 de fevereiro deste ano, a presidente esteve no canteiro de Floresta e em trechos dos canais nos municípios de Cabrobó, Mauriti e Areias – onde se reuniu com representantes das empreiteiras.
“Muitos contratos foram feitos só com o projeto básico, sem todas as sondagens, sem um projeto definitivo. Agora fizemos um processo de renegociação que é quase uma reengenharia. E a partir de agora vamos cobrar metas, resultados concretos”, prometeu.
Dez meses depois, com a demora dasnovas licitações, o prazo em vigor para o fim das obras, 2015, já está seis meses atrasado. Em meio à seca, a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, disse no final de novembro que as pessoas do sertão “têm fé” e pediu que elas “não percam a confiança”, porque “a água vai chegar, sim, em 2015”.
A comitiva de Dilma desembarcou naquele dia de fevereiro, logo pela manhã, no Aeroporto de Paulo Afonso, na divisa da Bahia com Pernambuco. A presidente, Fernando Bezerra, o titular dos Transportes, Paulo Passos, e a interina de Planejamento, Eva Chiavon, foram recebidos pelo governador Eduardo Campos, que os acompanhou de helicóptero até Floresta. Lá pousaram num canteiro do Exército. O sol do sertão estava implacável, “faltando meio grau para pegar fogo”, nas palavras de Campos, e a equipe ganhou chapeuzinhos camuflados para visitar o restante das obras.
Era a segunda vez que Dilma pisava no canteiro. Na primeira vez, em 2009,a então ministra da Casa Civil eracoadjuvante e o ambiente era festivo. Este ano, a situação era outra. Um grupo do lado de fora do canteiro, bastante exaltado, tentava chamar a presidente, mas ela evitou se aproximar. Sua passagem por Floresta ficou restrita a uma visita à maquete do projeto.
Eliane Lisboa, a sertaneja que havia abandonado a roça para vender salgados no canteiro três anos antes, estava na linha de frente dos que protestavam e gritavam por atenção. Nos tempos de vacas gordas, a comerciante chegou a atender mais de 500 clientes por dia. Algumas empresas que pagavam fiado abandonaram as obras sem acertar as contas com ela. “Eu vi uma oportunidade de crescer e investi pesado um dinheiro que não tinha, fui ingênua”, contou Eliane, com os olhos marejados, sem se levantar do sofá.
Ela pagou caro pela inexperiência: acumulou uma dívida de quase 30 mil reais com fornecedores, bancos e agiotas. Disse que chegou a ser ameaçada em casa por homens armados. Perdeu o bebê que esperava, ganhou uma gastrite e agora vive à base de medicamentos psiquiátricos, com crises de ansiedade. “Mandei uma carta para o programa do Gugu, mas não fui sorteada”, disse. Eliane tinha esperanças de que conseguiria uma brecha para pedir ajuda a Dilma, mas não conseguiu.
11 de dezembro de 2012
Revista Piauí
Pensando numa forma de lucrar com as obras, havia abandonado o roçado onde trabalhava com o marido para vender coxinhas, pastéis e refrigerantes nos canteiros. Os salgados fizeram sucesso.
E logo Eliane montou um pequeno restaurante na garagem de casa para servir café, almoço e jantar aos operários. Em pouco tempo, precisou construir um anexo e contratar funcionários. “Desde criança sonhava em ter um negócio. Só precisava de uma oportunidade”, disse três anos mais tarde, deitada no sofá de casa numa tarde de setembro.
No palanque montado no canteiro em que trabalhava o Exército, Lula mencionou a história da empreendedora. Quando a comitiva presidencial se retirava, Eliane se apressou para falar com ele. “Lula me chamou para almoçar. Me sentei à mesa com ele e o governador Eduardo Campos”, contou. “Ele quis saber como eu comecei, eu disse que me inspirei nele. Ele chorou, me abraçou muito.” O clima era de confraternização.
Dilma Rousseff, então ministra-chefe da Casa Civil, também participou da viagem. Como sempre fazia, Lula tratou de anunciar à população que aquela desconhecida a seu lado era “a mãe do PAC”. Em Floresta, Dilma obteve 86,3% dos votos válidos na disputa presidencial de 2010. Na vizinha Betânia, atingiu 95,4%.
Nordeste tem mais da metade de seu território coberto pelo semiárido, dispondo de apenas 3% da reserva de água doce do Brasil. A situação se complica porque cerca de 10 milhões de sertanejos vivem da agricultura e da pecuária, atividades muito vulneráveis à seca. O São Francisco concentra 63% da oferta hídrica do Nordeste e é um dos únicos rios perenes a atravessar o sertão. O desvio de parte de sua vazão foi diversas vezes aventado ao longo da história do país. A conversa remonta ao início do século XIX. De maneira intermitente, atravessou o Império e a República.
Em 2007, quando Lula resolveu tirar a transposição do papel, o projeto estava orçado em 4,8 bilhões de reais e tinha sua conclusão prevista para o fim do mandato, em 2010. Hoje, no final de 2012, depois de gastos 3,4 bilhões, pouco mais de 40% das obras estão concluídas. Um novo orçamento, divulgado em março deste ano, estimou um custo final de 8,2 bilhões de reais. O novo prazo para o fim das obras – otimista demais, na avaliação de vários críticos – é 2015.
O nome oficial – “Projeto de integração do rio São Francisco com bacias hidrográficas do nordeste setentrional” – procurou contornar a insatisfação dos estados por onde o rio já passa, contrários à obra. O plano, em resumo, prevê a construção de dois longos canais que devem levar parcela da água do São Francisco para rios não perenes.
A retirada de água prevista é de 26,4 metros cúbicos por segundo, o que corresponde a mais ou menos 1% da vazão garantida pela Barragem de Sobradinho, na divisa dos estados de Pernambuco e da Bahia.
Quando foi lançado, o projeto veio acompanhado da promessa de beneficiar 12 milhões de pessoas em 391 municípios, incluindo a região metropolitana de Fortaleza, onde o problema de falta de água é crônico para 2 milhões de habitantes.
Os pontos de partida dos dois canais ficam no estado de Pernambuco, a menos de 100 quilômetros de distância um do outro. O eixo leste parte do lago de Itaparica e deve percorrer 220 quilômetros até desembocar no rio Paraíba, o mais importante do estado, perto da cidade de Monteiro. A captação de água do eixo norte fica próxima à Barragem de Sobradinho, em Cabrobó, e o canal, com 402 quilômetros, atravessa Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, até atingir a bacia do Jaguaribe, no Ceará.
O governo dividiu os dois longos trechos, que somam 622 quilômetros, em dezesseis lotes, licitados individualmente. A exceção são as duas tomadas d’água, que ficaram sob a responsabilidade da Engenharia do Exército. A região de onde partem os canais é conhecida como “polígono da maconha”. O uso da mão de obra do Exército naquela área tinha também a intenção de inibir a possível resistência às obras por parte de traficantes.
A tomada d’água, ou “ponto de captação”, é um trecho de canal de aproximadamente 10 quilômetros, aberto artificialmente e revestido de talude – pequenas pedras encaixadas manualmente – para evitar o assoreamento, ou seja, o acúmulo de sedimentos pelo depósito de terra, detritos etc. Em seguida, há uma primeira barragem, que funciona como reservatório, e a primeira torre de bombeamento, responsável por impulsionar a água para o restante do canal por centenas de quilômetros.
uma manhã de setembro, entre as cidades pernambucanas de Betânia e Custódia, o padre Sebastião Gonçalves avistou uma placa desbotada fincada entre mandacarus e galhos raquíticos retorcidos. Leu em voz alta o aviso taquigráfico: DEVAGAR TRECHO EM OBRAS CANAL TRANSPOSIÇÃO. Gonçalves puxou bruscamente o freio de mão de seu Fiat Uno e desceu para bater uma foto. “Devagar meeeesmo”, disse, sarcástico, ao voltar para o carro. Pelos próximos quilômetros de estrada de terra, não haveria qualquer vestígio de obra.
Dispensado dos compromissos eclesiásticos para que possa fiscalizar os efeitos da transposição do rio São Francisco nas comunidades de sua diocese, o padre paraibano faz esse trajeto semanalmente há dois anos. Conhece os caminhos da caatinga de cor. Não titubeia em nenhuma bifurcação, não desacelera quando a estrada perde os contornos e se indiferencia da paisagem.
Visto de cima, o canal que margeávamos pareceria um tracejado esparso, em que os traços seriam os trechos já com o concreto armado, separados um do outro por quilômetros de caatinga virgem ou, no máximo, de vala aberta.
Depois da primeira estação de bombeamento, como a água corre com mais força, o canal é nivelado com cimento coberto por uma manta impermeável de pvc, sobre a qual é aplicado o concreto. O percurso deve ter uma declividade constante: em trechos de maior depressão, é necessário fazer aterros ou construir aquedutos; em trechos de elevação, deve-se desgastar o solo, construir uma nova estação de bombeamento ou, até mesmo, um túnel.
O padre, inicialmente, tinha a missão de cobrar oportunidades de emprego para os pais de família da região, de conferir as indenizações para quem é relocado, de checar se as detonações para abrir o canal têm abalado a estrutura já frágil das casas. Mas o trecho do canal que passará pela área de sua diocese, com sede em Floresta, está parado há mais de dois anos. A principal atividade do padre desde então tem sido fotografar a vegetação que invade as obras abandonadas e as rachaduras no concreto já armado – e publicar seus registros na internet.
Sebastião Gonçalves é o 13º filho de uma família católica não praticante de Patos, na Paraíba. Ligado à Comissão Pastoral da Terra e devoto de são Francisco de Assis, o padre, de 37 anos, não esconde sua simpatia pelo socialismo. Tem desprezo por qualquer tipo de luxo. E raramente sorri. Em uma semana de viagem, riu uma única vez, ao ouvir a canção O Pobre e o Rico, de Biliu de Campina: “Todo rico tem um meio de vida/ Todo pobre, a vida pelo meio/ O rico pega o carro e sai para passear/ O pobre sai para passear e o carro pega.”
Padre Sebastião, como é mais conhecido, é capaz de passar horas sem pronunciar uma única palavra. Na maior parte das vezes, simplesmente ignora o interlocutor quando é abordado. Ainda nos primeiros quilômetros de trajeto, perguntei-lhe o que pensava do programa de cisternas. Foi uma das perguntas que deixou sem resposta.
Distribuídas por órgãos governamentais para armazenar a água da chuva, as cisternas podem abastecer uma família de cinco pessoas por até oito meses, caso a água seja utilizada só para beber e cozinhar.
Nos anos 80 e 90, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agráriaorganizou a construção de cisternas de alvenaria no Nordeste. No governo Lula, foi dada ampla divulgação ao projeto Um Milhão de Cisternas, que recentemente alcançou metade da meta. O Ministério da Integração Nacional, no projeto Água Para Todos, começou agora a distribuir cisternas de polietileno.
Quando o sol se pôs, o padre embicou o carro num vilarejo e estacionou ao lado de uma casa de reboco. “Já tomou banho decuia?”, perguntou, sem esperar pela resposta. Na janela da casa, uma senhorinha com longos cabelos brancos presos num coque abriu um sorriso e estendeu os braços para Sebastião Gonçalves. Maria do Socorro da Silva mora sozinha com o filho e sempre hospeda o padre. “Tia Cuca”, como é chamada pelos vizinhos da comunidade da Serra Negra, gosta de mimá-lo com cuscuz de milho na manteiga e biscoitos.
Na cozinha, a beata guarda a água em potes de barro para beber, cozinhar e lavar a louça. No banheiro, um balde sob a pia serve tanto para a descarga quanto para lavar as mãos. Uma bacia sobre um banquinho ocupa metade da área do boxe. A “cuia” é uma canequinha de plástico, que auxilia o enxágue do banho. Oito anos atrás, quando a prefeitura cavou um poço à distância de 7,5 quilômetros da vila, ela e o marido instalaram pias, descarga e chuveiro. Mas as gestões municipais seguintes alegaram que não havia dinheiro para as adutoras, e o marido de Tia Cuca morreu antes de ver a água chegar pelos canos.
Ainda que distante, o poço salvou o vilarejo da total dependência dos caminhões-pipa, que são a única fonte de abastecimento das cisternas em longos períodos de seca, como a atual, que já dura dois anos e é considerada a maior dos últimos trinta anos na região.
Aos domingos, as famílias sobem de moto até o poço, com as roupas da semana para lavar. “A gente leva uma carne seca, uma macaxeirinha para passar o dia. É até um divertimento”, disse a viúva. Aproveitando a campanha eleitoral, o padre Sebastião e um grupo de moradores levaram a seguinte proposta à prefeita, que tentava a reeleição: ela doaria o material necessário para a adutora e a própria vila ficaria responsável pela mão de obra. Ela aceitou.
a manhã seguinte à nossa chegada à Serra Negra, o padre juntou-se ao mutirão que puxava o encanamento da água do poço. Decidiu que já era hora de responder à minha pergunta sobre o programa de cisternas: “Quem diz que cisterna é a solução para o sertanejo é porque tem água encanada em casa”, disse.
No mutirão, um homem magro de bigode e pele avermelhada transportava longos canos de pvcazul sobre os ombros, cinco de cada vez. Para se proteger do sol inclemente, Luís Henrique da Silva vestia calça comprida e camisa de manga longa. Tinha um lenço sob o boné, para esconder o pescoço.
Desempregado desde que a construtora Egesa abandonou o seu lote na obra do São Francisco, Silva tem feito bicos como catador de madeira para sustentar a família. Arrependido dos “quatro meses e seis dias” em que trabalhou como servente de pedreiro na transposição, ele e outros colegas tentam anular a passagem profissional na Justiça. Ainda que breve, o registro em carteira impede que ele se aposente como trabalhador rural aos 60 anos.
A água vertida pelo poço em Serra Negra deverá ser usada somente para beber, cozinhar e tomar banho. “Não tem suficiente para todo mundo fazer uma plantaçãozinha irrigada, criar gado. Vai dar no máximo para uma horta no quintal de casa e dar de beber a uns poucos animais”, disse Silva. Ele tem esperança de que, quando o canal da transposição estiver concluído, passando ao lado da comunidade, será possível captar a água necessária para o vilarejo viver da agricultura e da pecuária.
o terceiro dia de viagem no carro do padre Sebastião Gonçalves, em meio a uma paisagem árida e monótona, avistamos um cilindro amarelo de10 metros de altura. “Canteiro da Camter”, disse o padre ao bater a porta do carro. Um funcionário que cochilava à sombra do misturador de concreto acordou assustado. Disse que não existia qualquer atividade ali havia dois anos. Pediu para não ser identificado, mas afirmou ser segurança – e logo em seguida zombou da própria declaração: “Segurança... se alguém quiser levar alguma coisa, eu não vou poder fazer nada...”
O canteiro da Egesa, parceira da Camter no consórcio responsável por aquele trecho da obra, foi abandonado ainda antes. Certa manhã, os operários chegaram para trabalhar e encontraram a estrada fechada por moradores de Serra Negra, onde parte das casas deverá ser removida. As obras haviam começado antes do processo indenizatório e da construção de novas casas. Como em quase todo o trajeto, ali também é necessário detonar explosivos para abrir o canal. As plantas na região são esparsas e raquíticas, e uma fina camada de terra cobre o terreno rochoso.
Em maio de 2010, um grupo de moradores acampou por dois dias na estrada, impedindo o acesso ao canteiro. “O pessoal da Egesa passava e dizia: ‘Esses homens vão ficar desempregados e a culpa vai ser de vocês’”, lembrou o padre Sebastião, um dos organizadores do motim. “Mas já corria o boato de que a empresa ia abandonar o consórcio, e mesmo os moradores que conseguiram emprego na obra estavam do nosso lado.” Mobilizados, eles exigiam a presença de “uma pessoa de Brasília” para negociar as indenizações.
Rubens Lopes, responsável pelo setor fundiário do Ministério da Integração, foi enviado às pressas para tratar com os revoltosos. Depois de uma reunião na igrejinha da comunidade, a equipe voltou a Brasília prometendo solucionar o caso no máximo em um mês. Em maio deste ano, a obra completou dois anos parada. No último dia 31 de agosto, o Ministério da Integração Nacional rescindiu unilateralmente o contrato com o consórcio Camter/Egesa – responsável por executar o lote 9. Os trabalhadores ainda não foram indenizados.
Cansado de rodar pelas obras abandonadas, padre Sebastião pretende pedir autorização para ficar lotado um tempo na comunidade da Serra Negra, onde acredita que será mais útil. O padre e o amigo sindicalista Manoel Bernardo – que muitas vezes o acompanha nas viagens – pretendem trabalhar com a formação de jovens. “Existe uma ideologia de messianismo no sertanejo, de esperar alguém de fora vir resolver o problema. Esse salvador era o coronel, agora pode ser um político, um técnico, até mesmo a Igreja”, disse o padre. “Eles preferem morrer de sede esperando pelo assistencialismo a usar a sua força.”
No final de outubro, em sua sala no Ministério da Integração, em Brasília, a coordenadora de programas ambientais Elianeiva de Queiroz explicou que a vila da Serra Negra é uma região particularmente complexa por se tratar de um assentamento do Incra dentro de uma área reivindicada pela Funai como reserva indígena. Segundo ela, o canal da transposição foi parado naquele trecho porque o Incra ainda não apresentou a documentação de propriedade ao Ministério.
Cearense, Elianeiva tem em sua sala mais de 100 imagens de são Francisco de Assis, que comprou ou ganhou desde que começou a trabalhar no projeto da transposição, em 2004. Mas nem a devoção ao mesmo santo a faz simpatizar com Sebastião Gonçalves. “Esse padre Sebastião é um mobilizador, quer aparecer”, disse. “Isso tudo é muito mais complicado do que parece. A gente parou a obra porque é uma zona de conflito. Essa é uma das melhores terras para irrigação, mas precisamos de um posicionamento do Incra e da Funai.”
ssa estradinha aqui margeando o canal vai ser futuramente uma estrada de serviço, para manutenção. O canal vai ser cercado, para não entrar animal, para não entrar população”, explicou o engenheiro Renato Saraiva, no final de setembro. Ele foi contratado pelo Ministério da Integração para fiscalizar o andamento das obras na região de Salgueiro, em Pernambuco. Peguei carona em sua 4x4 num dia de vistoria. Enquanto visitávamos o canteiro, ele explicava alguns detalhes do projeto. “A população não vai ter acesso à água diretamente. Vai ter unidades de acesso, mas isso aqui não vai ser um rio para quem quiser vir e pegar água.”
O trabalho de Saraiva é verificar a produção de cada empreiteira para definir a parcela mensal de remuneração devida. Há, ao todo, setenta engenheiros do Ministério destacados para a obra. Controlam a quantidade e a qualidade das tarefas executadas. No final do mês, com a ajuda da equipe de topografia, contabilizam o metro cúbico de aterro, escavação ou concreto, e liberam o pagamento correspondente.
Paulista de São Bernardo do Campo, Saraiva trabalha na transposição há quase quatro anos e diz que se sente completamente adaptado à vida no interior do Nordeste. Casado com uma pernambucana, com quem tem uma filha, diz que os amigos e a família não entendem como ele conseguiu sair do “agito” da Grande São Paulo para viver no “meio do nada”.
Saraiva é muito assediado por pessoas procurando emprego. Com a seca, as grandes obras do governo federal apareceram como alternativa de trabalho. “O pessoal já parou meu carro. Na porta dos canteiros das empresas chegou a ter barraca de churrasquinho, porque o pessoal passava o dia na fila para entregar o currículo.”
O engenheiro diz que as empresas, em princípio, são receptivas à mão de obra local. Trazer trabalhadores de fora exige investimento em moradia e um regime de folgas mais longas para visitar familiares. Mas a contratação esbarra na falta de qualificação. O engenheiro diz ter ouvido o seguinte do encarregado de uma construtora: “Para o trabalho mais braçal, tudo bem, mas não vou entregar uma retroescavadeira que custa 500 mil reais na mão de uma pessoa que não sabe operar.”
Segundo Saraiva, a distância dos grandes centros encarece o preço de tudo. Além disso, ele reconhece que os contratos estão desatualizados, foram orçados antes do boomda construção civil que houve no país. “As obras da Copa têm um preço melhor, mais visibilidade. Houve uma perda de interesse nisso aqui, a realidade é essa.” Tal fato seria uma das principais razões para a quantidade de lotes abandonados. Ouvi o mesmo argumento de diversas pessoas durante a viagem, mas a maioria não quer se identificar.
os dezesseis lotes licitados, cinco contratos foram rescindidos. De acordo com o Ministério da Integração, a maior parte dos lotes está com cerca de 30% das obras executadas. Existem exceções, como os canais de aproximação, sob a responsabilidade do Exército, praticamente finalizados, e, no extremo oposto, o lote 4, com apenas 7% das obras concluídas. A empreiteira Encalso, responsável pelo consórcio nesse trecho, não quis se pronunciar. Alegou que o contrato já foi rescindido.
No lote 8, que Saraiva fiscaliza, sob a responsabilidade da Mendes Júnior e da GDK, pouco mais de 20% das obras estão concluídas. Mas os canteiros, agora, funcionam a pleno vapor, 24 horas por dia, em três turnos. Segundo a Integração Nacional, essa é uma opção do consórcio. As obras nesse lote começaram em março de 2011 e estariam “dentro do cronograma”, segundo o Ministério.
Saraiva argumentou que o andamento ou não de cada lote tem menos a ver com a empreiteira do que com o trecho licitado. Ele cita como exemplo o consórcio formado pelas construtoras Carioca, Serveng e s.a. Paulista, que ganhou as licitações dos lotes 1 e 7. No lote 1, próximo ao canal de captação do eixo norte, as obras estão funcionando num ritmo normal, enquanto o lote 7 foi abandonado. “Cada consórcio pode entrar em várias concorrências. E cada contrato é um caso. A gente trata como se fossem empresas diferentes”, disse.
Pouco antes de uma parada no canteiro de Cabrobó para o almoço, o engenheiro apontou para um terreno alto e rochoso que estava sendo escavado. “No projeto inicial aqui seria um túnel. Quando começaram a escavar, viram que não daria certo porque a rocha não tinha estabilidade, começou a desmoronar.” Naquele trecho, era impossível executar o projeto da maneira como havia sido projetado. “Isso, por exemplo, dá à construtora o direito de entregar o lote e ir embora, porque o estudo era de responsabilidade do governo”, disse o engenheiro.
Antes de abrir a licitação para as empreiteiras, o Ministério da Integração encomendou um projeto básico ao consórcio Harza/Engecorps. O projeto básico é uma investigação preliminar, com sondagens e levantamento topográfico pouco detalhados. A legislação exige que a licitação seja feita nesses termos, o que abre o caminho a uma série de imprevistos.
Além das discrepâncias entre o projeto básico e a realidade da obra, no caso da transposição as empreiteiras enfrentaram problemas que vão do atraso na desapropriação de terrenos habitados até a descoberta de postes e fiação elétrica no meio da rota prevista para os canais.
“A construtora quer fazer a obra o mais rápido possível para receber e ir embora, mas ela nunca teve o terreno livre para trabalhar. Então, ela coloca uma equipe pequena e vai administrando, porque ficar com equipamento parado, mão de obra parada, aumenta o custo e diminui o lucro”, disse o engenheiro. “A maneira que algumas encontraram de pressionar foi parar a obra.”
O contrato prevê uma multa no caso de abandono da obra. “Mas o governo federal não cumpriu a parte dele no contrato. Não tinha todos os projetos, não tinha feito as desapropriações, não tinha feito a remoção das interferências, então não tinha como fazer a obra”, resumiu o funcionário do Ministério. Na prática, como o governo não deu totais condições para a execução da obra, as duas partes vêm firmando acordos. O prazo original, concluiu Saraiva, “era muito ambicioso, não era exequível, era um prazo político”.
s dois presidentes que antecederam Luiz Inácio Lula da Silva tentaram realizar a transposição. No último ano de seu mandato, Itamar Franco chegou a anunciar a execução da obra, mas suspendeu o plano pouco antes da fase de licitação, por pressão de opositores – dos quais o mais histriônico era o então senador baiano Antônio Carlos Magalhães, do antigo PFL, atual DEM.
Entre 1995 e 2002, nas duas gestões de Fernando Henrique Cardoso, vários projetos foram estudados e novamente engavetados. Na última tentativa, em 2001, o governo chegou a desembolsar quase 3 milhões de reais num estudo detalhado que deu um parecer favorável à obra. O custo estimado da transposição girava, à época, em torno de 3 bilhões de reais.
Na campanha presidencial de 2002, Lula e o candidato tucano José Serra evitaram se posicionar sobre o assunto.Em junho daquele ano, o PT lançou uma proposta por escrito para a área de meio ambiente, sem tocar no tema. Perguntado sobre o rio São Francisco, um dos responsáveis pelo documento disse ao jornal Folha de S.Paulo: “A transposição não é solução para os efeitos da seca.
Há outras medidas prioritárias, como construção de poços comunitários e cisternas.” Meses depois, em um debate na Rede Globo, o candidato Anthony Garotinho, então no PDT, tentou arrancar dos dois adversários um posicionamento sobre a transposição. Serra logo disse que não tinha opinião formada. Lula esquivou-se – e chegou a dizer para Garotinho que ele, Lula, era líder nas pesquisas e precisava ser mais cuidadoso com o que dizia.
Já eleito, em maio de 2003, o petista fez um discurso inflamado no Congresso, em que, finalmente, defendeu sua posição: “A tal da transposição das águas do rio São Francisco, que eu recusei debater durante tanto tempo, que, dependendo do estado de que você fale, você apanha, dependendo do estado de que você fale, você é aplaudido... Eu vou confessar, eu não sei se do São Francisco ou de onde, mas vai haver a transposição das águas para o semiárido nordestino!”
Ele incumbiu o então ministro Ciro Gomes de tirar o projeto do papel. O titular da Integração Nacional saiu em peregrinação pelo país. Foi a programas de tevê, visitou redações de jornais, participou de debates, fez reuniões com representantes dos mais variados partidos. Em todas as ocasiões, empenhou-se em convencer seus interlocutores da urgência das obras.
Entrevistado pelo programa Roda Viva da tv Cultura, em fevereiro de 2005, o então ministro enfatizou que a grande diferença entre o projeto de transposição aventado por FHC e o de Lula residia na inclusão de um detalhado projeto de “revitalização” do São Francisco – uma contrapartida para os estados que se consideravam prejudicados e também aos ambientalistas. O ministro se valeu da origem nordestina para defender o projeto: “Eu sou de lá, então eu fico indignado, porque devia ser pacífica entre os que não estão doentes de egoísmo a percepção de que há milhões de brasileiros na miséria mais aguda por falta de água”, disse.
ntre os opositores da obra, um dos argumentos mais contundentes é o de que o São Francisco já estaria condenado à deterioração e à morte pela série de interferências que sofre da nascente à foz – portanto, não teria como ceder parte de suas águas para dois novos canais. Com o desmatamento da mata ciliar, cerca de 18 milhões de toneladas de terra se desprendem das margens e assoreiam a calha do rio anualmente, chegando a formar bancos de areia e até ilhas. Com isso, vários trechos deixaram de ser navegáveis.
As autoridades públicas dos chamados estados “doadores” – Minas Gerais, Bahia, Alagoas e Sergipe – em geral se posicionaram contra a obra. Além da questão ambiental, reclamavam da falta de investimentos sociais do governo federal onde o rio São Francisco já passa. O governador de Sergipe, Marcelo Déda, embora petista, esteve todo o tempo entre os opositores da transposição. Jaques Wagner, hoje governador da Bahia, nunca deixou clara a sua posição. Preferiu negociar a execução de um terceiro eixo de transposição: o sul, em direção ao interior baiano, cuja licitação está prevista para o começo de 2013, apesar da situação dos demais eixos.
Wagner teve um papel de relevo no episódio mais polêmico relacionado ao início das obras. Quando o bispo dom Luiz Flávio Cappio, de Barra, cidade banhada pelo São Francisco no interior da Bahia, começou uma greve de fome para protestar contra o projeto, em 2005, Wagner, na época ministro de Relações Institucionais, foi enviado para negociar com o religioso. Cappio interrompeu o jejum em troca de ser atendido por Lula, o que acabou não acontecendo.
Em 2007, o bispo deu início a uma nova greve de fome. Seus apoiadores argumentavam que o governo estava agindo a toque de caixa, sem submeter a obra à discussão pública. O bispo ficou 23 dias sem comer.
“Essa obra dividiu a política, o povo e até a Igreja”, disse o padre Sebastião Gonçalves num dos poucos momentos em que tomou a iniciativa de quebrar o silêncio enquanto margeávamos o futuro canal. “A estratégia que dom Cappio encontrou de chamar a atenção foi contundente, mas questionável. Ele tomou uma decisão isolada, foi quase um suicídio. Esse não é o caminho do Evangelho”, disse.
o projeto de transposição proposto no governo Fernando Henrique Cardoso ao implantado por Lula, poucas mudanças técnicas foram feitas. A maior delas está na vazão: o plano anterior pretendia que os canais desviados tivessem vazão média de 64 metros cúbicos por segundo, mais que o dobro do previsto hoje. É flagrante, entretanto, a mudança no discurso que pretende justificar a obra e o investimento. Em 2000, o plano de FHC propunha a seguinte divisão para a água desviada: 71% para irrigação, 25% para consumo urbano e 4% para perdas e outros consumos. O projeto deixava explícito que o objetivo era inserir o nordeste setentrional em um “processo de produção econômica realmente competitivo: a agricultura irrigada”.
O maior exemplo de sucesso da agricultura irrigada do país é o polo Petrolina–Juazeiro, a menos de 200 quilômetros da tomada d’água do eixo norte. Implantado a partir do final dos anos 60, nos anos 90 o polo passou a se destacar como o maior produtor e exportador de verduras e frutas de alta qualidade do país. Além da produção para exportação, com ênfase para a manga e a uva, há uma grande variedade de produtos para o consumo interno, como banana, coco, melão e tomate.
Entusiasta do projeto, fhcestimulou a industrialização da produção, como o processamento de tomate para molho e ketchup e de polpa de frutas. Atraída pelos benefícios da fruticultura irrigada, a maior vinícola do país, a gaúcha Miolo, passou a produzir no vale do São Francisco – em 2012, seu vinho Testardi, feito com a casta Syrah, foi eleito o melhor tinto nacional no teste cego realizado no evento ExpoVinis.
No artigo “O debate parlamentar sobre o projeto de transposição do rio São Francisco no segundo governo Fernando Henrique Cardoso”, citado em diversos estudos sobre a questão, a antropóloga Cecília Campello do Amaral Mello conclui que o projeto pretendia investir no desenvolvimento econômico da região para só depois distribuir os frutos entre a população.
Numa nota de rodapé, a doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro pondera:“O discurso do governo fhcoscilava ao definir publicamente os beneficiários diretos do projeto de transposição. Em certos momentos, definia-se como objetivo central a garantia de água para os grandes projetos de agricultura irrigada para exportação. Porém, em outros momentos, o governo produzia estratégias discursivas de ocultamento de tal objetivo, definindo que o objetivo seria garantir a ‘oferta hídrica’, sem explicitar seus usos finais.”
um fim de tarde de setembro, o presidente da Federação das Indústrias do Estado da Paraíba, Francisco Gadelha, listava entusiasmado os benefícios da transposição. “Com as águas do São Francisco, vamos poder investir na irrigação...”, começou, para logo se censurar com ironia: “Irrigação é uma palavra proibida, tem que se falar somente em abastecimento humano e animal.Porque irrigação gera riqueza, e riqueza é proibida no Nordeste.”
Em seguida, defendeu a segurança da cultura irrigada: “Você põe água na conta certa, sem matar afogado, sem matar de sede. A gente vê duas safras e meia de uva por ano em Petrolina. Colocando melões, morangos, uvas no mercado europeu.”
Gadelha é bom de conversa. Fala como se sua sala de espera não estivesse lotada. Não economizou histórias pessoais, exaltou o projeto arquitetônico do prédio da Fiep, apresentou seu jardim de inverno com um mural de azulejos deAthos Bulcão e contou episódios com a presidente Dilma, a quem acompanhou numa viagem recente à Índia. Dilma o chama pelo apelido de “Buega” – assim ele é conhecido em Campina Grande.
Para Gadelha, o Nordeste está crescendo “num ritmo chinês”, mas a partir de um patamar muito baixo, que só a transposição poderá corrigir. Adiantando-se ao final das obras, ele montou escolas do Senai no interior da Paraíba para a formação de trabalhadores na indústria de sucos, extrato de tomate, ketchup e vinho. “Quando as águas chegarem, já estaremos formando as primeiras turmas”, disse.
A Paraíba é o estado mais pobre em recursos hídricos do Brasil, e também o que será mais beneficiado com a transposição. A segunda maior cidade do estado, Campina Grande, tenta até hoje reviver seu passado glorioso. Entre os anos 10 e 30 do século passado, quando sua produção de algodão só ficava atrás da de Liverpool, na Inglaterra, a cidade viu a população aumentar em 650%.
Com as plantações devastadas pela praga do bicudo e a concorrência da produção de outros estados, Campina Grande investiu na industrialização e até hoje tem um dos maiores parques industriais do Nordeste – as sandálias Havaianas, por exemplo, são todas produzidas ali.
Irmão de Marcondes Gadelha, deputado relator do Grupo de Trabalho da Transposição do Rio São Francisco durante o governo FHC, o presidente da Fiep não esconde seu ressentimento com o tempo que o projeto levou para decolar. “O dinheiro de umas 100 transposições é gasto todo ano em obras no Sul e no Sudeste do país. Porto de São Sebastião: 5 bilhões de reais, ninguém nota. Trem-bala: 30 bilhões, não tem problema nenhum.” Para ele, só Lula teve a sensibilidade de investir na transposição por saber o que é carregar uma lata d’água na cabeça. “Infelizmente as obras estão andando tão lentamente, o que dá tempo de as pessoas voltarem a reclamar de uma coisa que já está decidida.”
m dos mais incansáveis adversários do projeto de transposição é João Suassuna, especialista em hidrologia do semiárido. No começo de setembro, na sede da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, onde é pesquisador, o engenheiro explicou sua posição. Disse que em 2004 participou de um grupo de estudos convocado pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência, a SBPC, que concluiu ser possível resolver a carência hídrica do sertanejo apenas com fontes de água do próprio Nordeste. “O Nordeste tem mais de 70 mil represas, que acumulam o volume potencial de 37 bilhões de metros cúbicos de água. É o maior volume de água represado em regiões semiáridas do mundo”, disse Suassuna.
Dois anos depois, a Agência Nacional de Águas editou o Atlas Nordeste – Abastecimento Urbano na mesma linha do resultado do grupo de estudos da sbpc. Segundo o engenheiro, o projeto da anatinha um custo previsto de 3,3 bilhões de reais e, apenas canalizando as águas das represas da região e de alguns novos poços, beneficiaria 34 milhões de pessoas (em comparação com o orçamento atual de mais de 8 bilhões de reais e os 12 milhões de beneficiados previstos na transposição).
“Além disso, não ficou claro como essa água vai chegar aos tais 12 milhões de pessoas. É uma população que vive de forma esparsa nos grotões, nos pés de serra, nos sítios, nos pequenos lugarejos. E vive sendo atendida por frotas de caminhões-pipa, com os problemas políticos que a gente sabe.”
Para Suassuna, a única explicação verdadeira para um projeto monumental como esse é que a água será destinada ao abastecimento das capitais, à irrigação e à indústria, e não ao pequeno trabalhador do sertão. “Nós, técnicos envolvidos com questões hídricas, sabemos que o programa de abastecimento de populações não é feito através de canais”, disse Suassuna, batendo exaltado com a mão na mesa. “Essa água vai para o agronegócio! Vai para a irrigação pesada, vai para os usos industriais, para a criação do camarão. Essa é a verdadeira indústria da seca”, completou.
uma manhã no final de outubro, em seu gabinete, o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra, do PSB de Pernambuco, classificou a afirmação de João Suassuna como “meia verdade”. “Quando a pessoa quer criticar a transposição, ela não vê os outros programas do Ministério”, disse. Citou o Água Para Todos, que prevê a instalação de 750 mil cisternas. “Estamos furando poços, fazendo os pequenos barreiros e as barragens subterrâneas que o Suassuna defende.”
O ministro concordou que houve problemas com as licitações, conforme havia mencionado o engenheiro Renato Saraiva, e acrescentou que ter fatiado o projeto em tantos lotes foi outro grande erro. “A ideia na época era evitar que a obra fosse feita pelas grandes empreiteiras. Os lotes menores permitiriam a participação das médias construtoras e ampliariam a competição”, afirmou. “Só que esqueceram que uma obra dessas tem engenharia complexa envolvida. Não é qualquer empreiteira que vai ter o know-how, a expertise.”
Bezerra alegou que a obra já estava “desmobilizada” quando ele chegou. “Como os contratos eram ruins, a empresa fazia o filé e deixava o osso. Então você tem uma colcha de retalhos na obra. Que maluquice é essa?”, bateu, também ele, na mesa. Bezerra disse que sua intenção era não deixar a obra parar, e que estava disposto a negociar os aditivos reivindicados pelas empreiteiras, mesmo que ultrapassassem os 25% previstos em lei. “Os aditivos costumam ser vistos como coisas ruins e onerosas para a administração pública, mas, em alguns casos, é muito melhor propor o aditivo do que relicitar”, disse.
Até agora, só um lote foi autorizado a extrapolar os 25% no aditivo: onde estão sendo construídos os túneis Cuncas ie ii, na divisa da Paraíba com o Ceará. Como o custo de mobilização e desmobilização do maquinário é muito alto, o governo autorizou o acréscimo de mais de 80% no orçamento.
Nos lotes restantes, foi necessário negociar com as empresas para rescindir os contratos e poder relicitar a parte da obra que está pendente. “Essa é sempre uma questão delicada em obras públicas: evitar a judicialização dos contratos. Se você tem um contrato questionado na Justiça, você pode impedir a continuidade da obra”, disse o ministro. “É um canal. Se tiver um problema num trecho, a água não passa. Então a gente fica entre a pressão dos órgãos de controle e dos contratados.”
meta do Ministério era ter todas as novas licitações feitas até julho deste ano, mas algumas empresas que negociaram a continuidade de seus contratos voltaram a descumpri-los. Com isso, o saldo do que deve ser licitado outra vez aumenta. “A gente tem que tomar muito cuidado para não lançar o edital de um serviço que já tenha sido feito, ou deixar algum de fora”, argumentou Bezerra.
No começo de agosto, o Tribunal de Contas da União definiu como “moroso” o trabalho do Ministério da Integração para resolver as pendências nas obras da transposição. O relatório apontou ainda falta de fiscalização, superfaturamento e problemas de manutenção nos serviços já executados.
“O ministro Raimundo Carreiro quer saber quem diabo deu causa a essa obra estar com todos esses problemas”, disse Fernando Bezerra. “A gente não é contra um processo desses, mas ele gera muitas demandas. Eu disse a ele: ‘Se a gente for atrás para ver o que aconteceu, nós não vamos fazer o que tem que fazer, que é botar a obra para terminar.’”
O ministro Raimundo Carreiro disse à piauíque o TCU pediu ao Ministério da Integração que ouvisse os gestores responsáveis pelas contratações no passado. “O ministro Fernando Bezerra ficou assustado com o relatório e veio conversar comigo”, disse Carreiro. Ele pediu que o ministro se manifestasse por escrito, solicitando um novo prazo. A solicitação de Bezerra ainda não chegou ao TCU, mas, a despeito das irregularidades que apontou, Carreiro disse que autorizará “o prazo que for necessário para as obras não atrasarem ainda mais”. Afirmou ter entendido o argumento do ministro, de que “não teria pessoal para tocar as obras e investigar ao mesmo tempo”.
O Ministério da Integração pretende lançar em janeiro o edital referente às obras do terceiro braço a ser desviado do São Francisco, o eixo sul. “Mas dessa vez vamos licitar no RDC”, disse o ministro Bezerra, referindo-se ao Regime Diferenciado de Contratações – nele, a empresa vencedora da licitação fica encarregada dos projetos básico e executivo da obra, o que para o governo agilizará os serviços, enquanto para os críticos deve encarecê-los. Já as licitações para os trechos que foram interrompidos nos eixos norte e leste serão divididas em seis lotes, no lugar dos dezesseis iniciais.
“Quando eu levei a presidenta à obra, em fevereiro, a gente consolidou essa nova estratégia”, disse o ministro.
óbvio que houve uma desmobilização, e nós não estamos aqui negando a realidade”, declarou Dilma Rousseff aos jornalistas que a aguardavam no aeroporto de Juazeiro do Norte, no Ceará, ao fim de sua visita às obras da transposição.
Em 8 de fevereiro deste ano, a presidente esteve no canteiro de Floresta e em trechos dos canais nos municípios de Cabrobó, Mauriti e Areias – onde se reuniu com representantes das empreiteiras.
“Muitos contratos foram feitos só com o projeto básico, sem todas as sondagens, sem um projeto definitivo. Agora fizemos um processo de renegociação que é quase uma reengenharia. E a partir de agora vamos cobrar metas, resultados concretos”, prometeu.
Dez meses depois, com a demora dasnovas licitações, o prazo em vigor para o fim das obras, 2015, já está seis meses atrasado. Em meio à seca, a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, disse no final de novembro que as pessoas do sertão “têm fé” e pediu que elas “não percam a confiança”, porque “a água vai chegar, sim, em 2015”.
A comitiva de Dilma desembarcou naquele dia de fevereiro, logo pela manhã, no Aeroporto de Paulo Afonso, na divisa da Bahia com Pernambuco. A presidente, Fernando Bezerra, o titular dos Transportes, Paulo Passos, e a interina de Planejamento, Eva Chiavon, foram recebidos pelo governador Eduardo Campos, que os acompanhou de helicóptero até Floresta. Lá pousaram num canteiro do Exército. O sol do sertão estava implacável, “faltando meio grau para pegar fogo”, nas palavras de Campos, e a equipe ganhou chapeuzinhos camuflados para visitar o restante das obras.
Era a segunda vez que Dilma pisava no canteiro. Na primeira vez, em 2009,a então ministra da Casa Civil eracoadjuvante e o ambiente era festivo. Este ano, a situação era outra. Um grupo do lado de fora do canteiro, bastante exaltado, tentava chamar a presidente, mas ela evitou se aproximar. Sua passagem por Floresta ficou restrita a uma visita à maquete do projeto.
Eliane Lisboa, a sertaneja que havia abandonado a roça para vender salgados no canteiro três anos antes, estava na linha de frente dos que protestavam e gritavam por atenção. Nos tempos de vacas gordas, a comerciante chegou a atender mais de 500 clientes por dia. Algumas empresas que pagavam fiado abandonaram as obras sem acertar as contas com ela. “Eu vi uma oportunidade de crescer e investi pesado um dinheiro que não tinha, fui ingênua”, contou Eliane, com os olhos marejados, sem se levantar do sofá.
Ela pagou caro pela inexperiência: acumulou uma dívida de quase 30 mil reais com fornecedores, bancos e agiotas. Disse que chegou a ser ameaçada em casa por homens armados. Perdeu o bebê que esperava, ganhou uma gastrite e agora vive à base de medicamentos psiquiátricos, com crises de ansiedade. “Mandei uma carta para o programa do Gugu, mas não fui sorteada”, disse. Eliane tinha esperanças de que conseguiria uma brecha para pedir ajuda a Dilma, mas não conseguiu.
11 de dezembro de 2012
Revista Piauí
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