Conforme o artigo 288 do Código Penal, constitui crime autônomo, punido com pena de prisão de um a três anos, a conduta de "associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, com o fim de cometer crimes".
Por meio da repressão de tal conduta, busca-se pretensamente proteger a paz pública, em tese ameaçada em razão da reunião duradoura de quatro ou mais indivíduos com objetivo criminoso comum.
Embora pairem dúvidas sobre a própria legitimidade da criminalização da quadrilha, haja vista estar-se diante de uma antecipação do poder punitivo estatal que atinge atos meramente preparatórios de crimes futuros - surgindo aí a paz pública mais como mero artifício retórico a justificar a punição de uma conduta sem ofensividade -, certo é que nas duas últimas décadas houve uma importante alteração na fisionomia desse crime, diante do impacto social provocado pela criminalidade organizada, vista pela sociedade como grande responsável pela violência na atualidade.
A despeito de ainda não se ter criado no Brasil norma específica voltada à punição do crime organizado, a demanda social por uma atuação mais eficaz do Estado no controle da criminalidade levou, de modo geral ao tratamento mais rígido da matéria e, nesse sentido, à frequente orientação acusatória de automaticamente acrescentar, ao lado de crimes praticados por vários indivíduos, o crime do artigo 288 do Código Penal, como se o segundo fosse uma decorrência automática dos primeiros.
Essa tendência arbitrária revelou-se especialmente disfuncional nos casos de crimes ocorridos no âmbito de empresas, em que se partia do pressuposto fático de que o número de quatro ou mais membros envolvidos em uma determinada prática criminosa estaria apto, por si só, a autorizar a punição de todos também pelo crime de quadrilha, em razão de pertencerem a grupo perene.
Não é difícil notar o erro de avaliação nessa hipótese, sendo impossível afirmar aprioristicamente a existência de objetivo comum de reunião estável de tais indivíduos para a prática de crimes, exigível para caracterizar a quadrilha.
Da mesma forma tem entendido o Supremo Tribunal Federal (STF), no sentido de não admitir que empresas fundadas segundo exigências legais e submetidas a controles internos e externos sejam transfiguradas automaticamente em ambientes estáveis de criminalidade sempre que ocorram crimes em seu âmbito.
Esse posicionamento decorre da própria lógica do direito que, ao regular toda a atividade empresarial, não pode, ao mesmo tempo, considerar a reunião de indivíduos nesse sentido como atividade criminosa.
Não restam dúvidas, assim, de que o crime de quadrilha reclama, para sua configuração, não só a participação de mais de três agentes, mas a circunstância de constituir a associação criminosa um pacto estável para o fim comum de cometimento de crimes mais ou menos determinados.
Não havendo prova de tais requisitos, não há que se falar em quadrilha, mas apenas em concurso eventual de pessoas, que não é considerado crime autônomo.
A despeito dessa diferenciação conceitual, a discussão quanto à caracterização do crime de quadrilha parece ressurgir atualmente perante a Suprema Corte brasileira, agora referida à criminalidade praticada no âmbito de partidos políticos. Não há, porém, nada de novo a acrescentar aos mesmos argumentos já trazidos pela doutrina e jurisprudência.
De fato, sendo a atividade partidária uma prática lícita, garantida e incentivada pelo próprio direito, mesmo na hipótese de ocorrerem crimes nessa esfera não se poderá afirmar que tal agrupamento de pessoas tenha sido estruturado hierarquicamente e de forma permanente com o fim de práticas criminosas, como exigido no crime de quadrilha.
Em síntese, assim como nas empresas ou em quaisquer outros agrupamentos lícitos, é possível que ocorram crimes no seio de partidos políticos, sem que se possa afirmar ser o grupo, por si, criminoso, sob pena de inviabilizar a manutenção dos diferentes grupos e ideologias políticos, tão importantes no jogo democrático.
Isso não impede que possa haver casos em que o partido político, constituído para o desenvolvimento de atividade lícita, passe a servir deliberada e fundamentalmente à prática de crimes. Nesse momento, o lícito transforma-se em ilícito, tornando possível a caracterização da quadrilha.
Essa, porém, é uma verificação empírica, que depende de elementos probatórios, inclusive quanto à concreta motivação associativa dos agentes.
03 de outubro de 2012
Ana Elisa Liberatore S. Bechara é professora livre-docente de direito penal da Universidade de São Paulo (USP)
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