"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

VÍCIOS E DEPENDÊNCIAS

 

O rapaz que fez soar a campainha era magro como a fome. Aproximei-me para ver o que desejava. De perto, descamisado, pele sobre osso, parecia um raio-x. Enquanto exibia um papel com assinaturas e carimbos, disse-me que estava em deslocamento para uma fazenda de recuperação de dependentes químicos.

“Mas não tenho o dinheiro para a passagem”, arrematou com olhar súplice. Pelo sim, pelo não, dei-lhe dez reais e lhe desejei uma boa internação, proveitosa à sua recuperação. Dias depois, reapareceu-me à porta com o mesmo ar de sofrida determinação em buscar a cura. Identifiquei-o pelas costelas.



O rapaz curtia tanto suas pedras de crack que fumava até o dinheiro da comida. E, com isso, fumava e descarnava o próprio corpo.
O caminho da recuperação só é percorrido quando o viciado percebe a extensão do mal que a droga já lhe causou. A desgraça terá superado, então, o prazer.
À falta dessa consciência, o viciado permanece em trânsito, dizendo que vai, mas não vai. Anunciando a busca de uma cura que não deseja ou não tem forças para enfrentar.

CONGRESSO VICIADO

O Congresso Nacional está doente. A instituição, eivada de vícios, mal se apruma. Sua imagem perante a opinião pública é péssima. Lembra o rapaz com cara de raio-x. Membros do Poder, feitas as honrosas exceções, tornaram-se dependentes de algo que parece muito bom – as emendas parlamentares. E a elas sacrificaram sua autonomia.

“Fumaram”, no cachimbo das emendas, muitas convicções, credos e valores. Em torno delas, como acontece com as famílias dos dependentes químicos, estabeleceu-se uma rede de sujeições que envolve prefeituras e comunidades inteiras.
Isso está destruindo a política.

Explico. Na votação do orçamento da União, é permitido aos congressistas, todo ano, mediante emendas ao projeto do governo, destinar recursos para fins específicos, de interesse das suas comunidades.
Um total de R$ 15 milhões em números de 2012. Como se sabe, na prática administrativa brasileira, o orçamento é mera autorização ao governo para gastar.
Assim, as emendas parlamentares ao orçamento se tornaram moeda de troca, liberadas ou não pelo governo segundo a relação que os proponentes mantenham com ele. É o governo que abre, se e quando quer, a porta do Tesouro.

Pois mesmo sob tal garrote, imposto pelo Palácio do Planalto, esse instrumento de liberação de recursos se tornou tão importante que a expressão “emenda parlamentar” virou sinônimo de proposta de recursos para fins específicos indicados por congressista.
São recursos muito bem-vindos a pequenas prefeituras, instituições comunitárias e serviços de atenção à saúde, principalmente. Viabilizam obras e serviços que, sem elas não seriam prestados.

No entanto, a mistura dos dois elementos – a possibilidade de emendar para atender as comunidades e a possibilidade de não ser autorizada a liberação – é letal.
O governo atua como traficante e a maioria dos parlamentares se comporta como dependente. Enquanto isso, uns poucos lutam, sem muita esperança, por mudanças de rumo.
Bastaria, por exemplo, reduzir o montante das emendas (já que o governo libera, mesmo, apenas uma parte delas) e tornar compulsória a autorização dos recursos por elas destinados.
Mas para o governo, centralizador e autoritário, o cabresto sobre o parlamento transformado em dependente é o melhor dos mundos. Nossa democracia já está com as costelas de fora.

(Do Blog do Puggina)

31 de janeiro de 2013
Percival Puggina

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