Imprensa independente sob ataque na Argentina. Governo Kirchner tenta silenciar críticas de veículos e beneficia aliados, que já são 80% da mídia
BUENOS AIRES – Em meados de 2009, depois de ter sofrido uma amarga derrota nas eleições legislativas de junho do mesmo ano, o ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) e sua sucessora, a presidente Cristina Kirchner, decidiram intervir nos meios de comunicação, considerados pela Casa Rosada os principais responsáveis pelo revés nas urnas. Assim nasceu a Lei de Serviços Audiovisuais, a chamada Lei de Meios, cujo real objetivo, para muitos jornalistas e dirigentes da oposição, foi destruir o Grupo Clarín, dono de importantes rádios, canais de TV e jornais que se atrevem a questionar a gestão kirchnerista e, nas últimas semanas, divulgaram gravíssimas denúncias de corrupção envolvendo funcionários e empresários vinculados à família presidencial, que estão sendo investigadas pela Justiça.
Basta observar o atual mapa de meios para desconfiar do discurso inicial de pluralismo dos Kirchner: cerca de 80% da mídia estão alinhados com a Casa Rosada. Desde a aprovação da medida, o governo concentrou esforços na disputa judicial com o Clarín, ainda sem desfecho; multiplicou os recursos da publicidade oficial que financiam meios aliados e ignorou demandas de rádios comunitárias, que, de acordo com a lei, deveriam ter ficado com 33% do total de licenças de meios audiovisuais (outros 33% seriam para o Estado e o mesmo percentual para empresas privadas).
Para mostrar como as restrições à liberdade de expressão e a intervenção do governo argentino em vários setores afetam o país, O GLOBO iniciou no domingo a série de reportagens intitulada “Liberdade Amordaçada”. Os textos estão sendo compartilhados com mais dez jornais da América Latina que, como O GLOBO, integram o Grupo de Diarios América (GDA).
Denúncia do Clarín
O Clarín denunciou a suposta inconstitucionalidade da lei na Justiça e desde 2009 enfrenta uma verdadeira guerra judicial. A decisão final, ainda sem data prevista, deverá ficar nas mãos da Corte Suprema de Justiça do país. Se o máximo tribunal respeitar a última resolução da Câmara Civil e Comercial, o grupo perderá duas emissoras de rádio, bem menos do que pretendia o Executivo.
Ciente desta possibilidade, o governo começou a analisar uma eventual intervenção no Clarín. A iniciativa seria implementada graças à Lei de Mercado de Capitais, aprovada em 2012, que permite a intervenção de empresas em casos de prejuízos para sócios minoritários (o Estado controla 8% das ações do grupo). Os planos do governo foram revelados pelo secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno, numa recente assembleia de acionistas do grupo. Paralelamente, nas últimas semanas o Clarín recebeu 13 intimações da Comissão Nacional de Valores (CNV), que seria o organismo encarregado de ordenar a intervenção.
Rádios comunitárias
Se há três anos Néstor e Cristina Kirchner defendiam a necessidade de “dar espaço a mais vozes”, hoje a realidade é bem diferente. Rádios comunitárias que se entusiasmaram com a lei de 2009 reclamam, sem reposta, uma licença oficial à Autoridade Federal de Serviços Audiovisuais (AFCSA). É o caso de La Caterva (97,3 FM de Buenos Aires), do movimento de esquerda A Dignidade. Nos últimos cinco meses, a pequena emissora, da qual participam moradores da favela 21-24, do bairro portenho de Barracas, sofre, ainda, uma interferência originada por outra rádio que opera sem licença na mesma região.
— Nosso caso é um claro exemplo de que a Lei de Meios nunca foi aplicada. A democratização foi apenas um discurso — afirmou Julián Bokser, um dos dirigentes do movimento. A rádio participou de um censo realizado pela AFCSA, mas até hoje não foi concedida sequer uma nova licença de rádio.
— Tudo é muito desorganizado, estamos pedindo que a lei seja aplicada e ajude os meios comunitários — insistiu Bokser.
As empresas privadas e independentes da publicidade oficial que conseguem resistir às pressões oficiais são cada vez mais raras. Já os jornais, rádios e TV que adotaram um discurso único de defesa do projeto kirchnerista cresceram de forma expressiva. Nos últimos anos, empresários amigos dos Kirchner, como Cristóbal López (também dono de cassinos e companhias do setor energético), compraram grandes empresas de comunicação (o canal de TV C5N e a Rádio 10), que passaram a engrossar a lista de meios K.
— Hoje temos uma concentração de meios em mãos de empresários amigos do governo, que dependem dos recursos estatais — afirmou Carlos Jornet, presidente da Associação de Entidades Jornalísticas da Argentina (Adepa). Para ele, “longe de promover o pluralismo, o governo financia meios aliados e busca asfixiar os críticos”.
Os números provam sua denúncia: entre janeiro e março passado, o governo distribuiu 167 milhões de pesos (US$ 32 milhões) em publicidade oficial. O jornal “Tempo Argentino” (de baixa tiragem), do ultrakirchnerista grupo Veintitrés, obteve 23 milhões de pesos (US$ 4,3 milhões). O “Página 12”, outro aliado da Casa Rosada, ficou com 16 milhões de pesos (US$ 3 milhões). Já o “Clarín” (o mais lido do país) recebeu 77 mil pesos (US$ 14,6 mil) e o “La Nación” (o segundo mais importante), 52 mil pesos (US$ 10 mil).
— Segundo dados extra-oficiais, no ano passado o governo gastou quase 2 bilhões de pesos (US$ 300 milhões) em financiamento de meios de comunicação, e esse dinheiro é distribuído de forma discriminatória, apesar de uma resolução vigente da Corte Suprema — enfatizou Jornet.
O clima entre os jornalistas argentinos é de profunda preocupação. Na semana passada, mais de 200 trabalhadores da imprensa assinaram um documento rechaçando “a intensificação dos ataques” e a possível intervenção no Clarín.
— As liberdades estão ameaçadas em nosso país, impera o medo, a autocensura e uma política de terror — disse Mariano Obarrio, setorista do “La Nación” na Casa Rosada, sede oficial do governo argentino. Para ele, neste momento, o governo está “particularmente assustado pelas informações sobre suspeitas de corrupção, enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro”.
— Cristina não quer democratizar e, sim, controlar os meios de comunicação.
29 de maio de 2013
Janaína Figueiredo, O Globo
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