Leio no Estadão que a ex-faxineira Heloisa Helena de Assis, hoje dona de uma rede de beleza com 1,7 mil funcionários, foi escolhida empreendedora do ano na 2ª edição do Prêmio Estadão PME, ocorrida ontem em São Paulo.
Conhecida como Zica Assis, a empresária é protagonista de uma história impressionante de sucesso. Sem nunca ter estudo sobre o assunto, ela desenvolveu um produto para diminuir o volume dos cabelos crespos, até hoje o carro-chefe de sua rede de estética com 13 unidades, o Instituto Beleza Natural. O negócio emprega 1,7 mil funcionários e tem previsão de abrir mais cinco lojas, três delas em São Paulo ainda em 2013.
Com 21 anos, a empresária resolveu pesquisar o próprio cabelo para entender porque ele era tão volumoso. Foi fazer um curso de cabeleireira na comunidade do Catrambi, zona norte do Rio de Janeiro. "Eu me encontrei como cabeleireira, mas não encontrei o resultado que queria pro meu cabelo. Mesmo assim não desisti e fui em busca do meu sonho", disse.
Como no curso sempre aparecia alguém para oferecer produtos para alisamento, Zica conseguiu matérias-primas para desenvolver seu produto em casa, na bacia e com colher de pau. "Consegui desenvolver uma formulação que deu jeito no meu cabelo. A fórmula é segredo de estado", destacou.
Mutatis mutandis, a ex-faxineira criou os institutos de desencarapinhamento, já anunciados por Monteiro Lobato, em O Presidente Negro, obra de 1926. O taubateano, que no início do século passado antecipou a idéia da Internet, parece também ter previsto o empreendedorismo de dona Zica.
Estamos no ano da graça de 2.228. Para Miss Jane, personagem americana de Lobato, urge desembaraçar-se dos negros da América. A solução branca é simples: exportar, despejar os cem milhões de negros americanos no Vale do Amazonas. O que não era fácil “não só em virtude de tremendas dificuldades materiais como por ferir de face a Constituição Americana”. Para Miss Jane, os negros queriam a divisão do país em dois, o sul para os negros e o norte para os brancos, já que a América surgira do esforço conjunto de ambas as raças.
Se não era possível gozar juntas da obra feita em comum, o razoável seria dividir o território em dois pedaços. Os brancos nada queriam ceder de seu status quo e o problema tornava-se ameaçador. O ano é de eleições e surge um candidato capaz de unir o eleitorado negro: Jim Roy, de tez levemente acobreada, parecendo um mestiço de senegalês e pele -vermelha. A cor de sua pele em nada lembrava os negros de hoje (isto é, 1926).
Na época, a ciência havia resolvido o caso de cor pela destruição do pigmento. Jim Roy, negro de raça puríssima e cabelo carapinha, era “horrivelmente esbranquiçado”. No entanto, nem os recursos da ciência faziam os negros deixarem de ser negros na América. Os brancos não lhes perdoavam aquela camuflagem da despigmentação. Jim Roy, líder do partido Associação Negra, não chega a ser uma ameaça para o poder. Representa cem milhões de negros, contra 200 milhões de brancos. Ocorre que entre os brancos surge uma séria dissidência, um partido de mulheres. Os velhos partidos Democrático e Republicano haviam-se fundido num forte bloco sob a denominação de Partido Masculino, liderado por Kerlog, presidente em exercício e candidato à reeleição.
Este bloco não tinha certeza da vitória, pois o partido contrário, o Feminino, dispunha de maior número de vozes, lideradas por miss Evelyn Astor. As estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões de votos; ao Feminino 51,5 milhões e à Associação Negra, 54 milhões. A eleição dependia pois da atitude de Jim Roy.
Aproximam-se as eleições. Que, em 2.228, ocorrem em poucos minutos, em função de avanços tecnológicos previstos por Lobato, que anunciam, em 1926, nosso mundo informatizado de hoje, 2013.
A possibilidade de “radio-transportar” os dados - antecipada por Lobato - opera uma reviravolta nas eleições. Jim Roy vai explorar com habilidade este dado novo, a velocidade. As eleições haviam sido marcadas para as 11h da manhã e durariam apenas 30 minutos. O candidato da Associação Negra avisa os agentes distritais que só às 10h anunciará o nome em que os negros devem votar. Ao anunciá-lo, a desconfortável surpresa: Jim Roy se anuncia como candidato.
Para pasmo de todos, depois de 87 presidentes brancos, surgia o primeiro presidente negro, eleito por 54 milhões de irmãos de sangue. Os partidos Masculino e Feminino haviam mais ou menos empatado, com algo em torno de 50 milhões e meio de votos. Passada a perplexidade, negros e brancos caem na realidade do dia seguinte. Para Kerlog, 87º presidente dos Estados Unidos e candidato derrotado, surge uma dor de cabeça histórica: ele vê na vitória negra a América transformada num vulcão e ameaçada de morte. Considera que se não forem mantidas presas as rédeas dos dois monstros – a ebriedade negra e o orgulho branco –, a chacina será espantosa. Seis líderes brancos reúnem-se em convenção e discutem uma solução para o impasse. A solução, mantida em sigilo, é aceita por unanimidade.
Na época, John Dudley, inventor e um dos membros da convenção, descobrira os raios Omega, que tinham a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com o tratamento, o mais rebelde pixaim se tornava não só liso, mas também fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influíam no folículo e eliminavam o encarapinhamento, último estigma da raça negra, que já havia resolvido o problema da pigmentação.
Ainda não recuperados das emoções da vitória, cem milhões de criaturas agradeciam aos céus a nova descoberta, que redundaria em um aperfeiçoamento físico da raça. O pigmento fora destruído mas o esbranquiçamento da pele não revelava cor agradável à vista. Com os raios Omega, tinham esperança de obter com o tempo a perfeita equiparação cutânea. Em todos os bairros de todas as cidades, a Dudley Uncurling Company estabeleceu Postos Desencarapinhantes, que se multiplicaram ao infinito, como se uma força oculta empurrasse a empresa do inventor dos raios Ômega ao desencarapinhamento da América Negra no menor espaço de tempo possível.
Era dos mais simples o processo. Três aplicações apenas, de três minutos cada uma, ao custo de dez centavos por cabeça, faziam com que os negros acorressem aos postos como cães famintos. Os brancos, inicialmente irritados com o que chamavam de “a segunda camuflagem do negro”, acabaram se divertindo com o espetáculo da súbita transformação capilar de cem milhões de criaturas.
Na véspera do dia da posse, Jim Roy, em sua residência particular, sonhava o maior sonho já sonhado no continente, quando seu criado lhe anuncia a visita de “um homem branco natural”. Era o presidente Kerlog, o adversário derrotado. Que anuncia ao líder negro não existir moral entre raças, como não há moral entre povos. Há vitória ou derrota.
– Tua raça morreu, Jim...
Os raios Omega de John Dudley tinham uma dupla virtude: ao mesmo tempo que alisam os cabelos, esterilizavam o homem. No dia em que seria empossado o 88º presidente dos Estados Unidos, o primeiro presidente negro da América, Jim Roy aparece morto em seu gabinete de trabalho. Os negros pensaram imediatamente em crime e chegou a haver um movimento de revolta. Mas o fatalismo ancestral superou o ódio e o imenso corpo sem cabeça recuou instintivamente e repôs-se no humilde lugar de onde a vitória de Roy o tirara. Procederam-se novas eleições e Kerlog foi reeleito por 100 milhões de votos.
A vida da América voltou à normalidade. Estrangulada a circulação da seiva, a raça extinguiu-se num crepúsculo indolor. Nem exportação para a Amazônia, nem divisão do país, nem esbranquiçamento com a eliminação do pigmento e da carapinha. Mas extinção pura e simples de uma raça para o pleno desabrochar da Super-Civilização Ariana...
No Brasil, já desponta o canditato negro. Sem carapinha nem desencarapinhamento. Nem auto-extinção. Dona Zica talvez não tenha lido Lobato. Mas entendeu os anseios da raça.
26 de junho de 2013
janer cristaldo
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