As manifestações cujo término eu espero que seja o voto contra tudo isso que ai está, nas eleições, tem arcabouços bem marcados. Não estamos mais diante de um movimento milenarista embandeirado nas chamadas “grandes ideias” que carimbaram o século 19 e pariram pogroms, holocausto, duas guerras mundiais e ditaduras no século 20, mas diante de um protesto pelo bom senso.
Assistimos a uma convocação em rede para propor um novo estilo de governar.
O verdadeiro significado de um mundo em rede não é o seu lado formal, como enfatizam alguns dos seus teóricos, mas é o que as redes circulam como drama sem o teste dos preconceitos. Sobretudo dos tabus teóricos segundo os quais uma coisa deve vir depois da outra. Mentira.
O movimento mostra como coisas aparentemente pequenas servem de texto para grandes causas. A realidade de um mundo conectado não é a rede, é a impossibilidade de profetizar o futuro ao lado da certeza de que a política exige honradez para ser praticada. A rede somente revela que suportar a vida continua a ser — como dizia Freud — o primeiro dever dos vivos.
O que o povo quer é ônibus confiável e barato, se possível, gratuito; menos corrupção, segurança, saúde e educação.
Ora, esse é o programa dos partidos no poder e, no entanto, é essa demanda que forma o centro das manifestações.
O que há de novo? Primeiro, como observa Elio Gaspari, a ausência dos famosos, dos santos e dos que sabem tudo. As passeatas que se alastram como um carnaval cívico não são englobadas por nenhuma organização poderosa: governo, partido político, sindicato, MST, movimento estudantil ou algum grupo cósmico-religioso clamando pelo fim do preconceito de gênero, do sofrimento ou do pecado.
O que temos visto é a reunião na rua (não num palácio, universidade, assembleia e fórum político) de milhares de miniprotestos, os quais, mesmo quando escritos em linguagem pitoresca, falam de coisas práticas e são apresentados individualmente.
Há uma recusa significativa aos partidos políticos justamente porque eles são o sinal do imobilismo e do enriquecimento em nome da mudança. O movimento traz à tona lugares comuns esquecidos pelos políticos no poder (e hoje, com a tal coalizão, só há uma minoria fora dele).
A manifestação não é um manifesto contra a democracia liberal, mas ao estilo de como essa democracia tem se concretizado no Brasil. Ela denuncia a ausência de encontro da sociedade com o governo.
Governo que, no Brasil de Lula e Dilma, tem sido muito mais um instrumento de aristocratização do que de resolução de problemas, o próprio sucesso que o sistema tem apresentando como o do poder de compra e da estabilidade monetária.
O bom senso não tem partido. Ele é uma simples conta de chegar entre meios e fins. Não se impede uma guerra com missas do mesmo modo que não bastam leis, politicas públicas de redistribuição de renda e instituições, pois é preciso honestidade e motivação para fazê-las funcionar e, assim, torná-las um instrumento da sociedade como um todo.
Não adianta uma Constituição inspirada na gloriosa França da Bastilha sem franceses para colocá-la em prática! Por isso o bom senso faz parte das rotinas democráticas, conforme viu Tocqueville.
Segurança, educação, transporte confiável e cumprimento de promessas feitas pelo próprio governo petista que está — eis um ponto implicitamente lembrado pelos manifestantes — no poder e que governa o Brasil.
Não há mais como eleger um bode expiatório para incompetências (inflação, desmantelamento da Petrobras), escândalos, mensalão sem desfecho; obras superfaturadas de toda ordem, bem como os elos espúrios entre grandes empresários e políticos.
De PECs que visam claramente a castrar o poder de apuração do povo, ampliando a zona cinzenta de uma intolerável impunidade, etc., etc., etc...
Quando uma coisa tão básica como a rua sai de sua função normal de trânsito entre o lar e o trabalho, percebemos a gravidade do problema. Ao lado da passeata, houve vandalismo. Mas, pergunto eu com meus companheiros de trincheiras magras, Jorge Moreno e Luiz Werneck Vianna, quem atirou a primeira pedra?
Quem disse que o “bicho ia pegar?” Quem errou ao mudar a data do Bolsa Família, levando milhares aos balcões da Caixa Econômica Federal no bojo do boato de que o beneficio ia acabar ou, pelo contrário — e isso não pode ser suprimido —, ia ser dado em dobro? A quem interessa impedir a criação de novos partidos e tem feito tudo para eles sejam legalmente sufocados?
O que ocorreu com os 1,3 milhão de votos no sentido de impedir a posse do atual presidente do Senado? Como lembra Jorge Moreno, 1,2 milhão saíram às ruas, mas quem jogou os votos legais na lata do lixo?
Quem vandaliza? Eis o que não pode calar se quisermos ter um mínimo de sinceridade quando, antes de dormir, nos olhamos no espelho.
Quem, afinal de contas tem, como perguntou outro dia Dora Kramer, a faca e o queijo na mão?
26 de junho de 2013
Roberto DaMatta é antropólogo.
O Globo
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