Dilma prometeu na posse tudo o que as ruas cobram a um ano e meio do final do governo
As ruas do Brasil estariam em casa se Dilma Rousseff tivesse guiado seu governo pelo discurso da posse.
Todas as reivindicações das passeatas constam do texto que a sucessora de Lula leu no Congresso em 1º de janeiro de 2011 —já lá se vão 2 anos, 5 meses e 26 dias.
Como todo pronunciamento inaugural, o de Dilma exalou pompa. Mas tropeçou nas circunstâncias, indicam os manifestantes que ocupam o asfalto há duas semanas.
“É tarefa indeclinável e urgente uma reforma política com mudanças na legislação para fazer avançar nossa jovem democracia, fortalecer o sentido programático dos partidos e aperfeiçoar as instituições, restaurando valores e dando mais transparência ao conjunto da atividade pública”, discursou Dilma. Foi uma das passagens mais aplaudidas pelos congressistas.
Teve-se a impressão de que os vícios do sistema político estavam com os dias contados. Dilma tinha do seu lado o frescor das urnas, a caneta cheia e uma coligação de aliados jamais vista. Sobreveio, porém, a surpresa. A presidente não voltaria mais a tratar do tema. Até que…
Saída do computador, a rapaziada desceu ao meio-fio sem intermediários. As passeatas começam no Facebook e terminam no asfalto. Nada de palanques. Nem sinal dos velhos carros de som. Decifrado o recado, Dilma tenta fazer por pressão o que não fez por opção. Ela agora tem pressa. Por isso, tropeça.
Durou menos de 24 horas a proposta da “Constituinte exclusiva” convocada por meio de plebiscito. Excetuando-se os ministros Paulo Bernardo (Comunicações), que deu a ideia, e Aloizio Mercadante (Educação), que a endossou, nenhuma voz abalizada apoiou a excentricidade.
Excluído da discussão prévia, coube ao vice-presidente Michel Temer, professor de Direito Constitucional, amarrar o guizo no pescoço da “presidenta”. Ele informou que a coisa é inconstitucional. Além da má notícia, ofereceu um meio-termo: o plebiscito serviria para ouvir a sociedade sobre o tipo de reforma a ser aprovada. Fácil de falar. Difícil de fazer. Sobretudo porque Dilma quer ouvir o povo já em agosto. Ninguem disse a ela, talvez por pena. Mas é impossível.
A Dilma de janeiro de 2011 considerava “a estabilidade econômica como valor absoluto.” Sabia que “já faz parte de nossa cultura recente a convicção de que a inflação desorganiza a economia e degrada a renda do trabalhador.” Prometia: “Não permitiremos, sob nenhuma hipótese, que esta praga volte a corroer nosso tecido econômico e a castigar as famílias mais pobres.”
Há três dias, reunida com governadores e prefeitos para lhes propor a adesão a “cinco pactos”, Dilma listou como primeiro tópico: “Garantir a estabilidade da economia e o controle da inflação.” Foi como se reivindicasse o direito a um recomeço. “Da capo”, como dizem os maestros aos músicos quando a harmonia desanda e é necessário reiniciar a peça da primeira nota da partitura.
A Dilma da posse não virava a cara para a Fifa. “Os investimentos previstos para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas serão concebidos de maneira a dar ganhos permanentes de qualidade de vida, em todas as regiões envolvidas”, ela dizia, com desassombro. Noutros trechos, parecia adivinhar que a turba trocaria o circo pela exigência de escolas e hospitais “padrão Fifa”.
“Junto com a erradicação da miséria, será prioridade do meu governo a luta pela qualidade da educação, da saúde e da segurança”, inflamava-se a presidente da posse.
“É tarefa indispensável uma ação renovada, efetiva e integrada dos governos federal, estaduais e municipais, em particular nas áreas da saúde, da educação e da segurança, vontade expressa das famílias brasileiras”, acrescentava.
Nessa fase em que Dilma achava que Dilma seria uma gestora impecável, as salas de aula eram apresentadas como futuras sucursais do paraíso:
“Só existirá ensino de qualidade se o professor e a professora forem tratados como as verdadeiras autoridades da educação, com formação continuada, remuneração adequada e sólido compromisso com a educação das crianças e jovens.” A criançada não perdia por esperar: “Vamos ajudar decididamente os municípios a ampliar a oferta de creches e de pré-escolas.”
Também os hospitais estavam envoltos nessa atmosfera de Éden: “Consolidar o Sistema Único de Saúde será outra grande prioridade do meu governo”, dizia a Dilma das primeiras horas.
“Vou acompanhar pessoalmente o desenvolvimento desse setor tão essencial para o povo brasileiro”, ela prometia. “Quero ser a presidenta que consolidou o SUS, tornando-o um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública do mundo.”
A clientela era como que convidada a saltar o crepúsculo e, sem demora, entrar no porvir:
“O SUS deve ter como meta a solução real do problema que atinge a pessoa que o procura, com uso de todos os instrumentos de diagnóstico e tratamento disponíveis, tornando os medicamentos acessíveis a todos, além de fortalecer as políticas de prevenção e promoção da saúde.”
A Dilma dessa época não falava em importar médicos do estrangeiro. Achava que poderia se virar com mão de obra doméstica: “A formação e a presença de profissionais de saúde adequadamente distribuídos em todas as regiões do país será outra meta essencial ao bom funcionamento do sistema.”
Hoje, Dilma é presidente de 39 ministros. Na posse, dizia que faria “um trabalho permanente e continuado para melhorar a qualidade do gasto público.”
Sob suas asas, malfeitor não se criaria: “Serei rígida na defesa do interesse público. Não haverá compromisso com o erro, o desvio e o malfeito. A corrupção será combatida permanentemente.”
No primeiro ano, Dilma cuidou da “faxina”. Premida pelo noticiário, livrou-se de sete ministros. Depois, dedicou-se a restituir ministérios às legendas que os sujaram. Agora, fala em tornar crime hediondo a “corrupção dolosa”, como se houvesse o roubo sem dolo.
“As ruas estão nos dizendo que o país quer serviços públicos de qualidade”, disse a presidente aos governadores e prefeitos há três dias. A Dilma da posse dava a entender que tudo isso já estava assegurado.
Ninguém precisaria armar-se de vinagre e enfrentar a polícia:
“No plano social, a inclusão só será plenamente alcançada com a universalização e a qualificação dos serviços essenciais. Este é um passo, decisivo e irrevogável, para consolidar e ampliar as grandes conquistas obtidas pela nossa população.”
A Dilma dos dias que correm queixa-se da sorte: “Eu mesma tenho enfrentado, desde que assumi a Presidência, inúmeras barreiras”. A Dilma da posse era 100% confiança: “Em um país com a complexidade do nosso, é preciso sempre querer mais, descobrir mais, inovar nos caminhos e buscar novas soluções.” Ela antevia “um país de classe média sólida e empreendedora.”
No mundo virtual do discurso de posse, Dilma imaginava-se presidente de um Brasil prestes a tornar radicalmente outro. “Muita coisa melhorou em nosso país, mas estamos vivendo apenas o início de uma nova era. O despertar de um novo Brasil.” Suprema ironia: um dos slogans da garotada que enche as ruas é justamente “O Gigante Acordou”.
- Serviço: Aqui, a íntegra do discurso de posse de Dilma Rousseff
26 de junho de 2013
Josias de Souza - UOL
Nenhum comentário:
Postar um comentário