Assim como a imprensa criou o Maio 68, alguns jornalistas com pretensões de moderninhos parecem querer criar um Junho 2013. Em seu blog, Marcelo Tas compara o vandalismo de um punhado de filhinhos do papai a serviço do PT em São Paulo aos protestos da praça Taksim em Istambul. “Não sou a favor do vandalismo. Nem da demonização da Polícia Militar. Sou a favor de algo delicado demais para esses tempos ruidosos: dos sonhos”.
Sonhos? Que sonhos? Os manifestantes empunham uma bandeira utópica que em lugar nenhum do mundo ousou ser hasteada, o transporte público gratuito. Pelo jeito ainda não descobriram que não existe almoço grátis. Transporte público gratuito é sinônimo de transporte subsidiado pelo contribuinte. Porque Estado não subsidia coisa alguma. Mas em algo o jornalista tem razão:
- O que vejo nas manifestações em São Paulo não é simplesmente uma revolta por 20 centavos a mais no preço da passagem dos ônibus, como muitos tentam vender os fatos. Assim como não vejo em Istambul uma revolta pela construção de um shopping numa pracinha no centro da cidade.
De fato, o que está em jogo não são 20 centavos. E os rebeldes de São Paulo não são exatamente rebeldes sem causa. Estão em jogo as eleições do ano que vem. As manifestações violentas dos últimos dias – que prometem se repetir hoje – têm um só objetivo, desgastar o governo de Alckmin. Não imagine o leitor que tenho alguma simpatia por tucanos. Apenas constato. Tas alega que desgasta também a prefeitura do PT.
- Também vejo, e quero muito acreditar nisso, que não há uma tendência partidária nas manifestações. Afinal, em São Paulo, o prefeito petista está alinhado com o governador tucano na mesma posição.
Nada mais falacioso. Na verdade, só beneficia o atual prefeito. Haddad apela a Dona Dilma – como já apelou - e, se esta se digna a soltar algum lastro, ele se transforma no prefeito que foi sensível aos apelos populares. O PT põe o bode na sala e pede aplausos quando o retira.
Tem razão também o jornalista que a revolta de Istambul não é contra a construção de um shopping numa pracinha no centro da cidade. Não é preciso estar lá para saber disso. O movimento já se estendeu a outras cidades da Turquia, onde ninguém está construindo shoppings no centro da cidade. As manifestações, pelo que se lê, são contra a islamização crescente do governo de Recip Erdogan. No fundo, um desejo de ocidentalização de uma Turquia que se candidata a membro da União Européia, mas não larga o osso do Islã.
Se há uma preocupação pertinente na revolta na Turquia, o vandalismo em São Paulo não passa de uma reles manobra eleitoreira. Pelo que se sabe, os incêndios e depredações estão sendo patrocinados por uma ONG que mama nas tetas do Estado.
Em meio a isso, Luís Nassif reproduz em seu blog o manifesto de um tal de André Pedro Borges, que só vê candura e sonhos no vandalismo dos paus mandados do PT:
- Enquanto isso a molecada, no seu saudável inconformismo, vai para as ruas defender – FUNDAMENTALMENTE – o seu direito de sonhar com um mundo diferente. Um mundo onde o ensino, os trens e os ônibus sejam de qualidade e gratuitos para quem deles precisa. Onde os cidadãos tenham autonomia de decidir sobre o que devem e o que não devem fumar ou beber. Onde os índios possam nos mostrar que existem outros modos de vida possíveis nesse planeta, fora da lógica do agrobusiness e das safras recordes. Onde crenças e religião sejam assunto de foro íntimo, e não políticas de Estado. Onde cada um possa decidir livremente com quem prefere trepar, casar e compartilhar (ou não) a criação dos filhos. Onde o conceito de Democracia não se resuma à obrigação de digitar meia dúzia de números nas urnas eletrônicas a cada dois anos.
Se o quebra-quebra era originariamente contra o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus, de repente assume proporções que nem os baderneiros imaginavam: é o direito ao sonho. Transporte gratuito, droga livre (como se já não fosse), excelência de uma cultura onde até infanticídio é permissível, em oposição ao malvado agrobusiness – sem o qual o país morreria à míngua. Borges defende a livre eleição de parceiros, neste país onde homossexuais fazem a primeira página dos jornais. Como se o Brasil fosse uma teocracia islâmica, onde crianças são vendidas em casamento. O articulista até parece ter encontrado um sistema de democracia mais eficaz do que o voto universal, pena que não nos revela qual seja.
- Sempre vai haver quem prefira como modelo de estudante exemplar aquele sujeito valoroso que trabalha na firma das 8 da manhã às 6 da tarde - diz André Borges -, pega sem reclamar o metrô lotado, encara mais quatro horas de aulas meia-boca numa sala cheia de alunos sonolentos em busca de um canudo de papel, volta para casa dos pais tarde da noite para jantar, dormir e sonhar com um cargo de gerente e um apartamento com varanda gourmet.
Engana-se o Borges. Quem trabalha e ganha honestamente seu pão está fora de moda. Jamais vai ganhar a primeira página dos jornais, nem entrevistas privilegiadas. Só tem direito a voz, nestes dias que correm, quem quebra vitrines, depreda bancos e queima ônibus.
- Não é meu caso - prossegue o arauto da violência -. Não tenho nem sombra de dúvida de que prefiro esses inconformados que atrapalham o trânsito e jogam pedra na polícia. Ainda que eles nos pareçam filhinhos-de-papai, ingênuos em seus sonhos, utópicos em suas propostas, politicamente manobráveis em suas reivindicações, irresponsavelmente seduzidos pelos provocadores de sempre. Desde a Antiguidade, esses jovens ingênuos e irresponsáveis são o sal da terra, a luz do sol que impede que a humanidade apodreça no bolor da mediocridade, na inércia do conformismo, na falta de sentido do consumismo ostentatório, nas milenares pilantragens travestidas de iluminação espiritual.
Atenção! Teoria nova na mídia. Os responsáveis pelos avanços da humanidade já não são os cientistas, os estadistas, os professores, os inventores, os descobridores. Mas os vândalos, que com suas ações fertilizam a terra e iluminam a humanidade.
No fundo, o sonho por um mundo diferente, no dizer dos defensores de quebra-quebras. Talvez o país da Cocagne, aquela pátria imaginária longe da fome e das guerras, onde as frutas caíam das árvores nas bocas de seus habitantes, onde imperava o lazer e a preguiça e onde o trabalho era proibido. De repente, uma reedição de Maio 68, que adotou como slogan uma frase de Che Guevara: “seamos realistas, pidamos lo imposible”. O impossível do Che aí está, uma ilha faminta e dominada pela mais longa ditadura do século passado.
Sonho paradoxal este, onde em nome do passe livre queimam-se meios de transporte. Como já se convencionou chamar de primavera qualquer protesto de massas, é de espantar que nenhum jornalista ainda não tenha ousado falar em primavera paulistana. O leitor não perde por esperar.
O dia promete hoje na Paulicéia. Além da baderna, há greve geral de transportes. O saldo global será evidentemente creditado aos militantes do sonho.
13 de junho de 2013
janer cristaldo
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