"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 7 de julho de 2013

DE REDES E RUAS, DE RUAS E REDES

De repente, em quase tudo quanto é canto do mundo, vão surgindo (e crescendo) movimentos políticos e sociais. As redes como plataformas de lançamento de signos, a partir da sua coisa mais básica que é a troca de experiências, sensações, percepções.
As pessoas, afastadas umas das outras pelas distâncias e pelo modo de vida metropolitanos, encontram um espaço, uma ágora cibernética, e começam a partilhar suas decepções e indignações diárias.
 
É claro que esses movimentos são muito diferentes entre si, respondendo a situações concretas dos lugares onde acontecem. Não há nada, no Brasil, que se aproxime do processo de islamização que angustia democratas na Turquia (apesar da frase “meu cu é laico”, numa manifestação em São Paulo). Os desejos da Praça Tahrir não são os mesmos desejos da Candelária.
 
Apesar de todas as diferenças, contudo, temos semelhanças fundamentais. Posso sublinhar duas, pelo menos. Uma é semântica; a outra, formal – se é que podemos usar tais distinções.
No plano semântico, do conteúdo, temos a crise da representação política, como todos estão cansados de repetir. A crise geral do partidocratismo. Gramsci via bem, ao dizer que o partido político tende a substituir o movimento real da vida em sociedade pelo movimento interno da própria agremiação partidária. Quando a vida do mundo cede lugar à trama do partido, a representação degringola. É o que estamos vendo, de Madri a Natal, no Rio Grande do Norte.
 
No plano formal, a semelhança é que as atuais movimentações são indissociáveis da internet. A informática pode ter permitido, como diz Julian Assange, a formação da maior rede de espionagem da história da humanidade. Mas também permitiu a formação de redes planetárias de contestação do estabelecido. E é com relação a isso que quero falar um pouco.
 
Entre o espaço público e o espaço privado, a dicotomia mais simples de tempos atrás, floresceu o espaço virtual, onde o público e o privado se apresentam enroscados, mesclando-se em entrelaçamentos promíscuos. E, de repente, as pessoas passam a articular suas informações e a ver a possibilidade de coordenar suas ações. É possível, então, agir a partir de nossas conversas? Sim. E as coisas começam a acontecer. Porque chega um momento em que as pessoas, como as mães da Plaza de Mayo, sentem a necessidade de mostrar nas ruas o que estão sentindo.
 
Ao mesmo tempo, vemos que a relação ficou mais complexa. Temos, como disse, o espaço público e o espaço virtual. O domínio das ruas e o domínio das redes. Hoje, em princípio, as ruas expressam as redes. Mas repercutem de volta, fortemente, sobre elas. As redes mudam as ruas, mas também as ruas mudam as redes.
 
Como especialistas observam, a mobilização nas redes é sempre maior do que se pode medir nas ruas. Por uma razão simples: nem todos que se deixam afetar e mobilizar, no circuito das redes, colocam os pés nas ruas. Para mil pessoas nas ruas, temos pelo menos três mil pessoas nas redes – e esse talvez seja um cálculo conservador. De outra parte, a rua é sempre mais densa, mais tensa (e mais intensa) do que a rede.
 
Num certo sentido, o espaço virtual é o não-lugar do discurso. E a rua é o lugar do coração batendo, do sangue circulando alto, da respiração percebida, da emoção. No primeiro, predominam signos. No segundo, pessoas. Na rede, podemos imaginar novos rumos para um iluminismo contemporâneo. Na rua, o que mais conta é a leitura do espaço e a inteligência do corpo. Mas o caminho entre a rua e a rede pode ser muito mais curto do que muitos costumam pensar.
 
Da rede à rua, gentes se mobilizam de um dia para o outro. Da rua à rede, alguém, logo ao chegar em casa, pode postar uma foto que sensibilize milhares de pessoas. Esta é a nova realidade: vivemos, hoje, um tempo de espaços essencialmente reversíveis. Como no discurso barroco sobre a reversibilidade do mar e do céu.
 
Mas não vamos perder de vista o seguinte. Não são as redes que produzem movimentos. São as condições objetivas e subjetivas das vidas de todos nós que estão na base de tudo.
As redes, socializando o cotidiano das pessoas, permitem que esses movimentos se configurem, ganhem corpo, se manifestem.
O papel das redes é, num primeiro momento, de gestação. Num segundo, de esclarecimento, de delineamento. Nesse sentido, podemos inverter a declaração anterior: as redes expressam as ruas.
 

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