Desde sua primeira eleição para a Câmara dos Representantes em 1991, o deputado americano John Boehner sempre usou voos comerciais para ir e voltar de seu distrito eleitoral de Cincinnati, no estado de Ohio.
Três anos atrás, ao assumir o posto de presidente da Câmara, Boehner, um republicano, não mudou o hábito — apesar do uso de aviões militares para os primeiros da linha sucessória presidencial ter sido aprovado depois dos ataques às Torres Gêmeas de 2001.
“Ao longo dos últimos 20 anos tenho voado em rotas comerciais. Agora que ocupo a presidência da Casa, consultei o pessoal da segurança e vimos que posso continuar a fazê-lo, sem problemas. Melhor assim”, comunicou à época. Sua antecessora no cargo, a democrata Nancy Pilosi, havia abusado da regalia e chamara para si forte indignação do eleitorado.
Joe Biden é vice-presidente dos Estados Unidos há quatro anos. Costuma cometer gafes verbais aos rodos, mas tem pé no chão e goza de grande simpatia nacional. Desde que o governo Barack Obama foi obrigado, por lei, a adotar um enxugamento brutal nos gastos federais em março último, Biden pensa duas vezes antes de requisitar o Air Force Two que vem junto com o cargo.
Três meses atrás desembarcou em Selma, no Alabama, de um reles avião de carreira. Fora representar o chefe da nação no aniversário da histórica Marcha pelo Direitos Civis liderada por Martin Luther King em 1965.
Por que abrir mão de um mimo tão legal quanto legítimo quando não há, como no Brasil, hordas nas ruas a exigir mais honestidade e vergonha na cara por parte da elite do país? Por mero bom senso político e hombridade pessoal. Ademais, viajar em voos comerciais não causa urticária. Tampouco diminui a estatura da autoridade em missão oficial verdadeira.
Já para autoridades destituídas de estatura, sobretudo de estatura moral, a coisa muda. Quanto mais atrofiada a imagem do servidor público, maior parece ser o seu apego a tudo o que a liturgia do cargo lhe oferece. Até aí nada de novo.
No caso recente de dois representantes do povo no Congresso Nacional brasileiro, onde os eleitos acham normal serem chamados de “Excelência”, o caldo entornou esta semana pelo escracho do timing: a desvergonha demonstrada pelos presidentes da Câmara e do Senado ocorreu enquanto o urro nas ruas por uma faxina geral percorria o país.
Vale a pena reprisar os dois episódios.
O veteraníssimo Henrique Alves (PMDB-RN) está em seu 11º mandato consecutivo na Câmara e pretende disputar mais um, em 2014. Também está noivo. E, como outros 190 milhões de brasileiros, desejou assistir à final da Copa das Confederações entre Brasil e Espanha, no Maracanã, domingo passado. Tinha ingressos e um jato C-99 da FAB para levá-lo de Natal ao Rio de Janeiro.
Noiva e parentela, um filho e um amigo publicitário o acompanharam, como revelaria Leandro Colon, da “Folha de S.Paulo”. Não ocorreu a nenhum dos sete caronas, nem a ninguém da recheada assessoria parlamentar do deputado, adverti-lo de que o país estava de pernas pro ar. Nem de que nestes tempos de revolta tropical contra a arrogância em Brasília seria melhor ficar longe do perímetro regido pela Fifa.
É de se perguntar se ninguém, naquele ar rarefeito do poder, lê jornal, assiste a noticiário, está antenado às redes sociais. Surdos, parecem continuar a estar.
O ressarcimento tacanho aos cofres públicos e o álibi de um almoço formal com o prefeito carioca Eduardo Paes, para discutir o “cenário político” e assim justificar o uso de um avião militar, só pioraram as coisas.
O caso de Renan Calheiros (PMDB-AL), revelado pela repórter Vera Magalhães, do mesmo jornal, é de levantar outras cem barricadas. Não apenas pelo fato em si: o presidente do Senado também mobilizou um C-99 da FAB para ser levado de Maceió a Porto Seguro, na Bahia, e comparecer ao casamento da filha de um colega senador, Eduardo Braga (PMDB-AM). Em Trancoso.
Considerando-se que Calheiros já foi alvo de três inquéritos no Supremo Tribunal Federal por improbidade e tráfico de influência, além de motivar um abaixo-assinado por 1,5 milhão de brasileiros pedindo sua saída do cargo, a notícia soou insultuosa. E se, antes do episódio, o seu nome já frequentava os cartazes das passeatas como “o cara” a ser defenestrado, imagine-se daqui para a frente.
Resultado: após se escudar na frouxa interpretação do direito ao “transporte de representação” para os chefes dos três poderes, constante do decreto 4.244 de 2002, e descartar a intenção de ressarcir a União, Calheiros capitulou na tarde de sexta-feira. Vai reembolsar o país no valor de R$ 32 mil.
Uma nota assinada pela Secretaria de Imprensa da Presidência do Senado comunicou a nobre rendição. O texto começa assim: “O Senado Federal, sensível à nova agenda e aos novos tempos...”
A rua já entendeu o resto.
Parafraseando o que dizia o ex-presidente americano Dwight Eisenhower , “Aquele que valoriza seus privilégios acima de seus princípios, acaba por perder as duas coisas”. E quem já tem déficit de princípios? Resposta na ponta da língua das passeatas: perde os privilégios.
07 de julho de 2013
Dorrit Harazim, O Globo
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