"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 7 de julho de 2013

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A HIGIENE E UMA MAIS BREVE POLÊMICA...


Para Theresa
 
Theresa:
 
Lamento que você tenha levado ao pé da letra o que eu falei sobre os hábitos de higiene dos europeus. Se por acaso a ofendi, não foi essa a minha intenção.
 
Eu só queria lembrar que quando você e eu dizemos que o “brasileiro é burro” - e já dissemos várias vezes aqui - de maneira nenhuma estamos ofendendo-nos mutuamente e nem tampouco aos nossos compatriotas que não usam a cabeça só para separar as orelhas. E foi usando essa mesma linha de raciocínio que eu me referi aos europeus que não são muito chegados ao banho, que são, histórica e estatisticamente, em número consideravelmente maior que os brasileiros porquinhos.
 
Achei que não precisaria explicar, mas infelizmente pude perceber por toda a sua indignação que você me tem numa conta abaixo das expectativas, de ser capaz de cometer leviandades ao ponto de você se dizer “desapontada” comigo.
 
Lamento que você não tenha levado em consideração para efeitos de raciocínio os milhares
de posts escritos por mim durante todos esses anos, com os quais você concordou ou discordou, sem levantar dúvidas sobre as minhas intenções. Lamento que você tenha me confundido com um petralha qualquer cujo único objetivo é denegrir tudo que não é PT por não ter nada de bom para apresentar sobre si mesmo.
Eu acho que eu tenho.
*** *** ***

Mais higiene, Theresa: O cristianismo representou um retrocesso na história da higiene

Vamos lá, Theresa:
 
Tem coisa que não bate nesse artigo sobre a Peste Negra. Olha só:
 
“Peste negra veio da Ásia há 2.600 anos.”
 
“Para chegar até os países do velho continente, a bactéria usou um caminho conhecido e bastante utilizado à época: a Rota da Seda (iniciada há mais de 600 anos).”
 
Erro meio estranho, esse, que remete a apenas 600 anos atrás, quando a Rota da Seda é, segundo alguns, conhecida há dez mil anos. “Eram transpostas por caravanas e embarcações oceânicas que ligavam comercialmente o Extremo Oriente e a Europa, provavelmente estabelecidas a partir do oitavo milênio a.C. – os antigos povos do Saara possuíam animais domésticos provenientes da Ásia – e foram fundamentais para as trocas entre estes continentes até à descoberta do caminho marítimo para a Índia.”
 
Outra coisa: Se a Peste Negra veio da Ásia há 2.600 anos, mas só se manifestou de forma contundente na Europa há 800 anos, foi porque as condições precárias de higiene da época assim permitiram, já que os hábitos dos ratos transmissores, mais domesticados e mais próximos das pessoas, criaram ambientes propícios para a rápida transmissão da doença.
 
A hipótese mais provável da peste ter se tornado uma pandemia, já que os primeiros relatos da epidemia na China também remetem a por volta do ano 1300 DC, foi a sua disseminação pelos mongóis que à época conquistaram tudo entre a Ucrânia a Manchúria.
 
Quanto ao nosso asseio de hoje eu quero dizer que também sou descendente de europeus de cabo a rabo, mas sou brasileiro e os meus hábitos higiênicos são bastante diferentes dos europeus de uma maneira geral. A Reckitt Benckiser, indústria inglesa que fabrica produtos de higiene e cuidados pessoais constatou através de pesquisa com 45 mil pessoas mundo afora que os brasileiros banham-se simplesmente 3,5 vezes mais que os ingleses, por exemplo. E três vezes mais que os franceses, americanos, alemães e italianos.
 
Portanto, eu não falei nenhum absurdo ao criticar o asseio dos europeus.
 
Mas isso, Theresa, não é denegrir, até porque você me conhece bem e sabe que eu sou um defensor intransigente da cultura portuguesa, principalmente, e rebato toda e qualquer crítica infundada à nossa colonização por eles. Estou falando de hábitos e como meu parâmetro de banhos é o brasileiro, considero a higiene pessoal do europeu, de um modo geral, precária.
 
Aliás, Katherine Ashenburg, a jornalista e autora de “The Dirt on Clean” discute no seu livro uma constatação polêmica e interessante: o cristianismo representou um retrocesso na história da higiene.

Praticamente todas as civilizações da Antiguidade deram grande valor ao cuidado com o próprio corpo e com o bem-estar físico. Os egípcios já fabricavam sabão. A religião grega previa uma série de libações antes de sacrifícios animais e refeições, e o banho era uma instituição cotidiana, registrada até nos mitos – em seu retorno da Guerra de Tróia, Agamenon é assassinado na banheira por sua mulher, Clitemnestra. O Império Romano criou aquedutos para abastecer suas principais cidades. O romano abastado frequentava diariamente os banhos públicos, onde o corpo era lavado em uma sucessão de piscinas com temperaturas variadas e esfregado vigorosamente – não se usava sabão – para retirar todas as sujeiras. Tudo isso desapareceu com a queda do império e a prevalência dos cristãos.
 
É claro que o banho não sumiu da paisagem européia da noite para o dia. Katherine Ashenburg observa que alguns dos primeiros patriarcas do cristianismo, como o teólogo Tertuliano e os santos Agostinho e João Crisóstomo, ainda freqüentavam a casa de banho. Aos poucos, porém, esses locais foram sendo associados ao pecado e à dissolução dos costumes pagãos. Mais voltado para a interioridade do que o judaísmo, o cristianismo desconfiava de qualquer atenção conferida ao próprio corpo. Místicos mais extremados como São Francisco de Assis consideravam a sujeira um modo de penalizar o próprio corpo, aproximando o espírito de Deus (o mesmo São Francisco, no entanto, era conhecido pelo desprendimento com que lavava as feridas de leprosos). Ao codificar no século VI algumas das regras da vida monástica, são Bento determinou que só os monges doentes ou muito velhos fossem autorizados a se banhar. Na maioria dos conventos e monastérios da Europa medieval, o banho era praticado duas ou três vezes ao ano, em geral às vésperas de festas religiosas como a Páscoa e o Natal. Supõe-se que a média de banhos entre a população que vivia fora do claustro não tenha sido muito superior.
 
Uma vez perdida na poeira medieval, a prática de lavar o corpo todos os dias demoraria séculos para se restabelecer (e em alguns países europeus ainda não se restabeleceu). O banho foi no máximo uma moda episódica – cavaleiros que voltaram das cruzadas, por exemplo, trouxeram o hábito do banho quente, comum entre os muçulmanos, então muito mais asseados do que seus contendores cristãos. No século XIII, o popular Romance de La Rose, poema francês repleto de conselhos eróticos, trazia uma série de recomendações para o asseio feminino. As mulheres deveriam manter unhas, dentes e pele limpos – e, sobretudo, deveriam zelar pela limpeza da “câmara de Vênus”. No século seguinte, jogos eróticos no banho também compareceriam no Decameron, do italiano Giovanni Boccaccio. O prestígio do banho, porém, parece ter sido apenas literário. O cristão europeu médio seguiu lavando o rosto e as mãos antes da refeição e esfregando seus dentes com paninhos – e a tanto se resumia sua higiene pessoal.
 
A transição para a era moderna não trouxe nenhuma melhora higiênica – pelo contrário, o progressivo inchaço das cidades gerou catástrofes sanitárias. Em Londres, Paris ou Lisboa, a disposição de lixo e de dejetos humanos era feita na rua mesmo. No suntuoso Palácio de Versalhes, um decreto de 1715, baixado pouco antes da morte do rei Luís XIV, estipulava que as fezes seriam retiradas dos corredores uma vez por semana – do que se deduz que o recolhimento era ainda mais esparso antes. Versalhes não tinha banheiros, mas contava com um quarto de banho equipado com uma banheira de mármore encomendada pelo próprio Luís XIV – objeto que serviria apenas à ostentação, caindo no mais absoluto desuso. Os médicos certa vez recomendaram banhos ao Rei Sol como forma de terapia para as convulsões que ele andava sofrendo – mas interromperam esse tratamento dramático quando o monarca se queixou de que a água lhe dava dor de cabeça. Acreditava-se então no poder de cura da imersão em água para certas doenças. Contraditoriamente, porém, também se atribuíam perigos ao banho: lavar o corpo todo abriria os poros, facilitando a infiltração de doenças (ironicamente, as práticas precárias da higiene pessoal facilitaram epidemias européias, como a peste e a cólera). Significativo é um caso de 1610 envolvendo o avô de Luís XIV, Henrique IV. Esse rei fez a deferência de dispensar o duque de Sully de uma convocação para comparecer ao Palácio do Louvre. Em vez disso, foi Henrique IV que visitou Sully, para tratar de assuntos de estado – isso tudo apenas porque o duque havia se banhado recentemente e, portanto, estaria suscetível demais para sair à rua.
 
Outra crença curiosa do mesmo período diz respeito ao poder purificador da roupa: acreditava-se que o tecido “absorvia” a sujeira do corpo. Bastaria, portanto, trocar de camisa todos os dias para manter-se limpinho. Já no século XIX, o rei português dom João VI – que estabeleceu sua corte no Rio de Janeiro – mostrava-se descrente até da troca de camisas, que ele literalmente deixava apodrecer no corpo. A porquice de dom João VI, extraordinária até para os baixos padrões sanitários de seu tempo, está bem descrita em outro livro lançado neste ano, Passado a Limpo – História da Higiene Pessoal no Brasil, do jornalista Eduardo Bueno. Mesmo coberto de feridas e contaminações na pele, dom João VI fugia da água.
 
Foi só no século XIX, com a propagação da água encanada e do esgoto e com o desenvolvimento de uma nova indústria da higiene – principalmente nos Estados Unidos –, que o banho foi reabilitado. O sabão, conhecido desde a Antiguidade, mas por muito tempo considerado um produto de luxo, foi industrializado e popularizado. Em 1877, a Scott Paper, companhia americana pioneira na fabricação de papel higiênico, começou vender seu produto em rolos, formato que se mostra até hoje insuperado. O século XX prosseguiria com a expansão da higiene. Os desodorantes modernos datam de 1907 e a primeira escova de dentes plástica é dos anos 50. A divulgação de produtos e práticas de higiene pessoal passou a contar com um aliado poderoso: a publicidade. Lançado em 1917, o Kotex, tido como o primeiro absorvente íntimo feminino, foi divulgado em 1946 por um filme de animação produzido pelos estúdios Disney. “O sabonete e a publicidade cresceram juntos”, diz Katherine Ashenburg em seu livro. Foi daí que surgiu a expressão em inglês que designa a telenovela: soap opera, “ópera de sabonete”, referência aos patrocinadores desses programas.
 
Katherine sugere que o avanço da assepsia pode ter chegado a extremos, especialmente nos Estados Unidos. Alguns cientistas já aventaram a hipótese de que a superproteção com que as crianças hoje são educadas está debilitando resistências imunológicas e aumentando a incidência de doenças alérgicas. A história dos séculos sujos que nos precederam pode ser uma lição moderadora: a humanidade, afinal, sobreviveu a toda essa imundície. As vantagens de viver na era do desodorante e do fio dental mentolado são auto-evidentes, mas convém lembrar sempre a frase de Henry J. Temple, nobre inglês da virada do século XVIII para o XIX: “Sujeira é só matéria fora do lugar”. 
 

Ainda a higiene...

Theresa:

Não posso deixar passar seu comentário sobre o trecho do livro do Eduardo Bueno que eu publiquei no post abaixo sem contestar quase tudo que você disse, só lembrando que os tempos são outros, muito embora os europeus (talvez à exceção dos nórdicos) continuem sendo porcos e fedidos para o padrão brasileiro.

Não acredito que os índios tomavam banho por serem higiênicos, vivendo nos trópicos é sempre gostoso entrar na água fresquinha.
 
Isso é óbvio pelo calor de um país tropical e pela abundância de água. Como seria óbvio que os europeus também fossem mais chegados a banho em função do aquecimento artificial exagerado nos lugares fechados.
 
Muito tendencioso, na minha opinião, o conto do autor, ademais todas as pestes que invadiram a Europa vieram da Ásia. Claro, com a falta a limpeza que reinava foi uma festa. As bactérias vieram sempre da Ásia, nos porões dos navios mercantes. Alias, as pestes continuam a vir da Ásia.
 
Não é um conto. É resultado de pesquisa séria. Pena que eu não tenha como publicar as fontes consultadas por Eduardo Bueno, mas vou citar apenas uma, a principal: os arquivos da Torre do Tombo, onde ele se praticamente se “internou” durante um ano. Outra coisa, as pestes não vieram da Ásia. Uma ou outra, irrelevantes, talvez, com muito boa vontade. O que mais matou na Europa foi a peste bubônica, que vinha dos ratos europeus mesmo.
 
Com certeza a higiene deveria ser precária, todos fediam no mesmo nível.
 
Jose de Alencar também fez dos índios ídolos de beleza com sorrisos de perolas, mas parece que realmente não era bem a verdade. Muitos índios eram totalmente “banguelas” ou desdentados. Pode ser que para os portugueses quem tinha um dente era algo magnífico, já que eles não tinham nenhum ahahahah. Em terra de cego quem tem um olho é rei.
 
José de Alencar nunca foi historiador e sim romancista. Nada mais normal que ele perfumasse seus romances. Não é assim que se faz em todos os países? Buffalo Bill e o General Custer não são herois?
 
Enfim, não sou experta na falta de higiene, mas o que sei é que na baixa idade media e na alta a falta de higiene era atroz, já todos sabemos que em Roma a coisa era outra, os banhos romanos, Pompeia que ate hoje podemos ver os banheiros das casas, magnífico, os sistemas de esgoto e outras maravilhas.
 
Os portugueses não eram mais sujos que qualquer outro europeu da época.
Eduardo Bueno não disse que eram.
 
Os petistas devem adorar este livro quanto mais denegrir os europeus melhor, principalmente os portugueses embora a verdade é que naquela época todos eram sujos para nossos padrões de hoje. Este livro caindo nas mãos dos poucos petistas que sabem é uma festa os bolivarianos ficam em êxtase. Provavelmente dirão aos outros que os europeus continuam sujos como antes e que nada mudou.
 
Não são só os petistas que porventura podem dizer que o europeu é porco. Eu digo! E sou testemunha disso pelas duas vezes que lá estive. As mulheres europeias com quem estive, à exceção das famosas prostitutas das vitrines de Amsterdam, cujo asseio é exigido por decreto, fedem. Quase todas, sem exagero. Se não é no sovaco é nos pés e se não é nos pés é “lá” mesmo. Habituado que sempre fui às mulheres brasileiras cheirosinhas, lá na Europa por algumas vezes o nojo foi mais forte que o desejo do fauno que incorporava em mim. Passar um inverno inteiro sem tomar banho, como me “recomendou” a gerente de um hotel em Frankfurt, não faz parte da minha cultura tupiniquim.
 
A propaganda é fogo. A história é a história, temos que aceitá-la e o melhor não seria usa-la para nada mais que informar como foi no passado, mas os exageros existem.
No relato de Eduardo Bueno não há exageros. Você pode confirmar isso em dois livros lançados na Inglaterra e nos Estados Unidos: Clean – A History of Personal Hygiene and Purity, da inglesa Virginia Smith, e The Dirt on Clean, da canadense Katherine Ashenburg, que relatam a história da higiene na civilização ocidental.
 
A Isabela de Castela tomava banho dizem uma vez ao ano e era considerada na época a mulher mais limpa da Europa, se é piada eu não sei, mas não é à toa que os franceses e os italianos eram e são exímios nos perfumes, eram obrigados...
Quanto a Isabel, pelo que me consta, ela só tomou dois banhos de corpo inteiro em toda a vida...

Um pouco da história da higiene pessoal no Brasil

Hoje é sexta-feira, dia de um pouco mais de amenidades. Se é que sujeira é amenidade, o jornalista Eduardo Bueno, um pesquisador incansável da História do Brasil, tem um livro que, embora se chame "Passado a Limpo", tem mais porcarias que qualquer outra coisa.

Em “Passado a Limpo – História da Higiene Pessoal no Brasil” ele revisa a evolução das práticas públicas e privadas de higiene no Brasil. O livro começa com um resumo da evolução da limpeza pessoal no mundo, para então examinar, com mais detalhes, as particularidades do Brasil.
O contraste entre a sujeira dos viajantes portugueses e a relativa limpeza dos índios, as péssimas condições sanitárias do Rio de Janeiro imperial e até o estilo de cabelo de Lula e de Collor na eleição de 1989 são alguns dos temas.

Um trecho do livro:

O Brasil descobre a sujeira
 
Os homens peludos estavam na proa. Os homens pelados estavam na praia. No instante em que se encontraram, no alvorecer de 22 de abril de 1500, o Brasil entrou socialmente no curso da história. Os homens peludos vinham do leste a bordo daquilo que os homens pelados julgaram ser “montanhas flutuantes”. Após 44 dias em alto-mar, os peludos estavam fatigados – e imundos, embora, como se verá, sua sujeira não estivesse ligada apenas àquela cansativa navegação.
Os pelados também tinham vindo do leste – mas haviam chegado àquela praia de areias faiscantes havia mais de quinze séculos.
 
Os peludos tinham barbas e vastas cabeleiras sebosas. Os pelados não estavam apenas desnudos, mas depilados. Os barbudos, quase todos, eram gordos ou magros demais e seus dentes, quando os tinham, estavam cariados. Os depilados exibiam dentes alvos, “bons rostos e bons narizes”, “cabelos corredios e bem lavados”, troncos, pernas e braços musculosos.
Os barbudos raramente tomavam banho, mas a óbvia ausência de chuveiros em suas embarcações nada tinha a ver com aquilo: mesmo quando se achavam em sua terra natal, costumavam lavar-se “de corpo inteiro” apenas duas vezes… por ano. Já os depilados pareciam anfíbios: banhavam-se nos rios, nas cachoeiras ou no mar de dez a doze vezes… por dia.
 
Não havia mulheres entre os peludos: elas haviam ficado em casa, a milhares de quilômetros dali, com seus afazeres e seus muitos pêlos. Para sorte delas, julgava-se que a presença feminina a bordo “dava azar”. Já os pelados que se amontoavam na praia - “obra de 60 ou 70” – eram de ambos os sexos, e as mulheres exibiam suas vergonhas “tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que nós, de as muito bem olharmos, não tínhamos vergonha alguma”.
 
Os peludos eram portugueses, e estavam sob o comando do rígido capitão que atendia pelo nome de Pedro Álvares Cabral. Os pelados se autodenominavam “tupis” (“os primeiros”, em sua língua), e os portugueses julgaram que eles não tinham “nem fé, nem lei, nem rei”. De seu encontro – e futuros desencontros – nasceria o Brasil.
 
O momento histórico foi registrado em minúcias pelo cronista Pero Vaz de Caminha. Em sua carta inaugural, tão plena de viço e vigor, Caminha fala da bondade das águas e dos ares, da salubridade do clima e da beleza virginal do território então descoberto. Seu texto soa como um cântico à saúde não só da nova terra – “de águas infindas e de tal maneira graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo” –, mas de seus habitantes nativos.
 
Dos homens pelados que circulavam pela praia, diria o cronista: “Andam muito bem curados e muito limpos. E nisso me parece que são como aves ou animais monteses, aos quais faz o ar melhores penas e melhor cabelo que aos mansos, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que mais não podem ser”.
Mas não eram apenas os bons ares que faziam os indígenas tão saudáveis; Caminha supôs que a dieta equilibrada também contribuísse para o bom estado dos nativos: “Não comem eles senão deste inhame (a mandioca), que aqui há muito, e das sementes e frutos que a terra e as árvores lançam de si. E com isso andam tais e tão rijos, que o não somos nós tanto, com tanto trigo e legumes comemos”.
 
Apesar da fertilidade luxuriante, a terra recém-encontrada não revelou, à primeira vista, possuir “ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal”. Mas tal constatação não pareceu perturbar Caminha, pois, segundo ele, “o melhor fruto” que dela se poderia tirar não eram lucros materiais, mas a conversão dos nativos à “verdadeira religião”, tarefa que, acreditava ele, seria facilitada pela própria saúde e evidente asseio de seus habitantes: “Creio que essa gente se há de se fazer cristã e crer em nossa santa fé, pois Nosso Senhor, que lhe deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, aqui nos trouxe, e creio que não foi por outro propósito”.
 
Tal viria a ser o impacto da carta de Caminha no processo de construção do imaginário nacional que, cinco séculos depois, o senso comum ainda julga que seu relato foi o único registro sobre o desembarque oficial dos portugueses em terras hoje brasileiras. Mas o fato é que várias outras missivas foram redigidas ao longo dos dez dias em que a frota de Cabral permaneceu ancorada nas águas translúcidas de Porto Seguro, no sul da Bahia. Ainda assim, apenas um outro relato sobreviveu à voragem do tempo: é a chamada Carta de Mestre João. Como o profético texto de Caminha, também ela faz alusão direta às questões de higiene pessoal – só que, nesse caso, a dos próprios portugueses… .
 
Após pesquisas meticulosas, os historiadores descobriram que mestre João era Juan Faras, um “bacharel em artes e medicina” que fora “cirurgião particular” de D. Manuel, rei de Portugal. Embora se detenha na análise do céu e das estrelas dos trópicos – a carta seria responsável pelo batismo do Cruzeiro do Sul –, Mestre João revela que estava com “uma perna muito mal, que de uma coçadura se me fez uma chaga maior do que a palma da mão”. O que pode ser mais revelador das condições higiênicas a bordo das naus e caravelas do descobrimento do que o fato de um médico, muito possivelmente cristão-novo, bem versado em questões de saúde, ter sido atingido por uma doença de pele, fruto, é certo, de contágio, mas também do desleixo pessoal?

Os imundos “quartéis flutuantes”
 
As narrativas da época de fato pintam um quadro aterrador da imundície e da falta de higiene a bordo dos autênticos quartéis flutuantes que eram os navios lusos dos séculos 15 e 16. Graças à rígida disciplina militar imposta pelos capitães, a vida organizava-se rotineira e regrada na promiscuidade hierarquizada das cobertas e entrecobertas das embarcações – que os enjôos e o relaxamento iam tornando progressivamente “sujas e infectas, porque a maior parte da gente não toma o trabalho de ir acima para satisfazer suas necessidades, o que em parte é causa de morrer ali tanta gente”, como atestou o viajante Pyrard de Laval.
 
Embora fidedigno, o depoimento de Laval é um tanto rigoroso: afinal, é bem conhecido o fato de que muitos dos homens a bordo eram marinheiros de primeira viagem; por isso, tão logo os navios venciam o banco dos Cachopos, na barra do Tejo, sacolejando nas ondulações do mar-oceano, os novatos começavam a vomitar, “sujando-se uns aos outros”. Vários deles passavam tão mal que sequer conseguiam se mexer, deixando-se ficar prostrados nos porões – e lá fazendo todas suas necessidades.
 
Além disso, não havia banheiros nas embarcações – o que, aliás, não consistia surpresa alguma, na medida em que tais instalações inexistiam nas próprias cidades européias. Se urinar não configurava problema – bastando, para tal, aproximar-se das amuradas e aliviar-se no mar –, o mesmo não ocorria no momento em que era chegada a hora de esvaziar os intestinos. Nesse caso, os marujos serviam-se de baldes deixados no convés para aquele fim. Depois de usados, eles eram atirados ao mar, presos por uma corda.
Girando na água à medida que os navios seguiam seu rumo, os baldes eram puxados para bordo e usados outra vez. Para limpar-se, não havia nada que se assemelhasse com papel higiênico: os marujos serviam-se de uma corda sempre suspensa na amurada, com a ponta desfiada dentro da água. Essa espécie de pincel encharcado era içado para bordo e, depois de cumprir sua função, voltava a ser mergulhado no mar.
 
Os problemas de higiene não se limitavam aos mais óbvios. Baseada nos “biscoitos de marear” – espécie de bolacha, dura e seca, “via de regra toda podre das baratas e com bolor mui fedorento” –, a alimentação a bordo revelava-se precária e deficiente, raramente ultrapassando 1500 calorias diárias.
Embora fidalgos e religiosos dispusessem de seus próprios víveres, não conseguiam protegê-los da podridão e dos vermes. Os animais vivos e aves de criação levados para bordo, bem como qualquer alimento fresco, esgotavam-se rapidamente, ao passo que o intenso calor equatorial ia rançando e estragando tudo o que já não apodrecera devido à umidade – flagelo permanente nos barcos de madeira.
 
“Os víveres que nos restavam encontravam-se podres e largavam um cheiro tão repugnante que o momento mais duro de nossos tristes dias eram aqueles em que a sineta de bordo tocava para anunciar as refeições”, anotou em 1769 o viajante francês Louis-Antoine de Bouganville. “Que alimentação era a nossa, Deus meu! Bolachas cheias de mofo, e carne que nem os mais intrépidos podiam suportar o odor depois que a dessalgavam”.
 
O lamento de Bouganville soa quase despropositado se comparado aos horrores vividos dois séculos e meio antes pela tripulação de Fernão de Magalhães. “Para não morrermos de fome”, narra o italiano Pigafetta, um dos poucos sobreviventes e o principal cronista da expedição que em 1521 se tornaria a primeira a dar a volta ao mundo, “chegamos ao terrível transe de comermos os couros que revestiam os mastros.
Estavam tão duros que os deixávamos de molho no mar por cinco dias e então os cozinhávamos por longas horas. Muitas outras vezes, comíamos apenas serragem; e até os ratos, tão repugnantes ao homem, se tornaram um manjar disputado, pelo qual havia quem pagasse meio ducado”.
 
Em meio à vastidão salgada do oceano – longe das plataformas continentais e dos bancos de pesca –, a água doce constituía uma dificuldade adicional: armazenada em tonéis, logo adquiria cor turva e péssimo gosto, pois a madeira reduzia os sulfatos, transformando-os em cloretos nauseabundos, sem falar do acúmulo de bactérias, responsáveis por diarréias e infecções. Quanto à água da chuva recolhida ao largo da costa da África, o padre Andrés de Cabrera não hesitou em afirmar, em 1564, que possuía a “virtude de se converter em larvas em menos de uma hora”.
 
Como não é difícil supor, em meio a condições de higiene tão precárias, pululavam as mais variadas pestes e moléstias. Embora atingissem aos marujos, a maioria deles já havia adquirido anticorpos e, por uma dramática ironia da história, as doenças iriam se revelar inestimáveis aliadas no processo da conquista colonial, já que dizimariam os nativos. Embora muitos marinheiros sobrevivessem às enfermidades inúmeros sucumbiam nos naufrágios, já que dois de cada três navios que zarpavam de Lisboa não retornavam.
 
Além disso, à medida que as viagens foram ficando cada vez mais “largas” – enquanto prosseguia a obsessiva busca dos portugueses pelas riquezas da Índia –, uma nova e devastadora doença irrompeu em cena. De início, a misteriosa moléstia, que parecia esconder-se na terrível cloaca do porão dos navios, não tinha nome.
Cerca de um século após ter eclodido pela primeira vez, foi batizada de “escorbuto” – palavra holandesa que significa “ventre aberto”. Sorrateiramente, em meio a tantas doenças de pele, chagas e misérias cotidianas, o “mal das embarcações” rompia a parede dos vasos sangüíneos, fazia inchar as gengivas, provocava a queda dos dentes e produzia insuportável mau hálito. Os horrores da moléstia foram cantados por Luís da Camões:
 
“E foi que de doença crua e feia
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, em terras estranhas e alheias
Os ossos para sempre sepultaram
Quem haverá que, sem o ver, o creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crescia
A carne, e juntamente apodrecia”
 
O escorbuto manifestava-se após 68 dias de alimentação desprovida de vitamina C, causando a morte depois de três meses de indizíveis sofrimentos As péssimas condições sanitárias a bordo e a virtual ausência de hábitos de higiene pessoal faziam com que a doença se espalhasse com espantosa velocidade.
Os marinheiros de Vasco da Gama foram os primeiros a sofrer da estranha moléstia que cessou, sem motivo aparente, tão logo a expedição aportou na costa oriental da África e lá recolheu frutas e legumes frescos.

Vasco da Gama malcheiroso na Índia
 
Naquela breve escala em Mombaça, no Quênia, ocorrida em 7 de abril de 1498, Vasco da Gama não obteve apenas víveres: ali capturou também um piloto árabe, cuja identidade se mantém controversa. Com a ajuda dele e das monções, os portugueses puderam cruzar o oceano Índico em apenas 41 dias, seguindo a rota que os muçulmanos dominavam há séculos. E assim, no entardecer de 18 de maio de 1498, Gama e seus homens avistaram o Monte Eli, “o trono do deus Shiva”, ponto culminante das montanhas vestidas de verde do Malabar. Tinham acabado de “descobrir” a Índia.
 
Aquele dia tem sido apontado como o do advento da Idade Moderna – ou, quando menos, o momento em que se iniciou o que já foi chamado de “a era da dominação européia na história”. Pois foi exatamente então que, após 80 anos de tentativas incessantes, os lusos desvendaram o caminho marítimo para as Índias, abrindo as portas para o mundo globalizado. Trata-se também do instante a partir do qual os costumes dos europeus e seus hábitos de higiene (ou a falta deles) foram observados pela primeira vez pelos hindus – e lhes causaram grande consternação.
 
“Jamais se viu gente tão inculta, bárbara e suja quanto aquela que acaba de desembarcar aqui”, informou um mercador árabe a seu patrão, sediado no Cairo. Mesmo levando-se em conta o fato de tal depoimento ter sido dado por um inimigo da cristandade, a verdade é que, após dez meses no mar, os recém-chegados estavam maltrapilhos e mal-cheirosos. E isso só fez aumentar o constrangimento que caracterizou o primeiro encontro entre Vasco da Gama e Glafer, o rajá de Calicute – cidade na qual os portugueses aportaram ao final de uma viagem épica.
 
Embora vestidos com suas melhores roupas – “mui bem ataviados”, como disse o cronista Álvaro Velho, testemunha ocular da história –, Gama e seus acompanhantes foram vistos como visitantes de segunda categoria assim que o altivo Samutri-raj, ou “senhor do mar” de Calicute, dignou-se a lhes conceder uma audiência. Para isso certamente contribuiu a mesquinhez dos presentes que os portugueses tinham a oferecer àquele soberano: quatro capuzes de lã, seis chapéus, quatro colares de coral, seis bacias de cobre, dois barris de azeite e dois de açúcar.
 
“Até o mais pobre mercador de Meca é capaz de ofertar mais” disseram os assessores do samorim, recusando-se a entregar as oferendas. “O que, afinal, vieram vocês descobrir aqui: pedras ou homens?”, perguntaram. “Se foram homens, porque trouxeram presentes tão pobres?”.
 
Embora os rubis, as esmeraldas e as pérolas da Índia – muitas das quais adornavam o corpo e as roupas de musselina e de seda do rajá – evidentemente interessassem aos lusos, eles na verdade não estavam ali em busca nem de pedras nem de homens. Como qualquer secundarista sabe, o que os levou até o Oriente foram as especiarias. Em meio à obsessão européia por temperos e ervas – então transformados em mercadorias de grande valor especulativo –, ressaltam-se questões de higiene (tanto pública quanto privada), uma vez que tal busca estava ligada diretamente à preservação de alimentos e à procura de medicamentos.
 
Fora para driblar a barreira imposta pelo Islã após a tomada de Constantinopla, em 1453, que os portugueses – financiados por capitais florentinos e genoveses – lançaram-se em sua aventura ultramarina. Mas não era só a pimenta que interessava àqueles aventureiros e a seus sócios. A noz-moscada, o cravo, a canela, o açafrão e o cardamomo – todas as especiarias, enfim – eram tidas em alta conta. Mais do que meros temperos e conservantes, eram remédios de reputado valor: o cravo mitigava a dor de dente, um dos tormentos mais freqüentes dos europeus desde o início da Idade Média; a canela era anti-séptica e boa para os pulmões; usado em pílulas o açafrão servia para combater a peste.
 
O contraste entre o estilo de vida europeu e o indiano não poderia ficar mais claro do que no encontro entre Vasco da Gama e o samorim, ocorrido a 29 de maio de 1498. Enquanto o primeiro exalava o odor acre de quem não se banhava há mais de ano e cuja alimentação não incluía produtos frescos, o samorim dispunha de fontes termais, ungüentos, cosméticos e perfumes, alimentando-se de peixe, arroz, laticínios e frutas. Sua cidade era limpa e ajardinada, repleta de fontes e cisternas que adornavam templos nos quais sacerdotes também desempenhavam funções médicas e distribuíam conselhos sobre higiene pessoal.
 
Quando o samorim enfim chamou os portugueses para o interior da salão real, os sacerdotes espargiram os estrangeiros com borrifos de um líquido perfumado, que os recém-chegados interpretaram como sendo “água benta”. Ao lhes servirem de água, os assessores de Glafer solicitaram que não tocassem com os lábios nos recipientes de prata – “por medo da sujidade de nossos beiços” – e determinaram que, ao dirigirem a palavra ao samorim, tapassem a boca com a mão esquerda, “para não o macular com seu bafo”, exigindo ainda que se abstivessem “de escarrar e arrotar”.
 
Na solene penumbra da sala, o rei de Calicute sentava-se no topo de um estrado drapeado de veludo verde, recoberto por uma túnica bordada com rosas de ouro e adornado com uma tiara reluzindo de pérolas e pedrarias. Seus longos cabelos negros cintilavam, sedosos. As unhas de suas mãos e pés estavam imaculadamente esmaltadas e ele mascava uma mistura aromática constituída de bétel, cânfora e âmbar utilizada para purificar o hálito.
 
07 de julho de 2013

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