Agora são temas ligados à vida concreta do cidadão: democracia participativa, trabalho para todos, direitos humanos pessoais e sociais, presença ativa das mulheres, transparência na coisa pública, rejeição a todo tipo de corrupção, um novo mundo possível e necessário.
Ninguém se sente representado pelos poderes instituídos que geraram um mundo político palaciano, de costas para o povo ou manipulando diretamente os cidadãos.
Representa um desafio para qualquer analista interpretar tal fenômeno. Não basta a razão pura; tem que ser uma razão holística, que incorpore outras formas de inteligência, dados racionais, emocionais e arquetípicos, além de emergências próprias do processo histórico e mesmo da cosmogênese.
Só assim teremos um quadro mais ou menos abrangente que faça justiça à singularidade do fenômeno.
Esse fenômeno pode representar um salto civilizatório que definirá um rumo novo à história, não só de um país, mas de toda a humanidade. As manifestações no Brasil provocaram atos de solidariedade em dezenas de outras cidades no mundo, especialmente na Europa. De repente, o Brasil não é mais só dos brasileiros. É uma porção da humanidade que se identifica como espécie, numa mesma casa comum, ao redor de causas coletivas e universais.
SATURAÇÃO
Por que tais movimentos massivos irromperam no Brasil agora? Muitas são as razões. Atenho-me apenas a uma.
Meu sentimento do mundo me diz que, em primeiro lugar, se trata de um efeito da saturação: o povo se saturou com o tipo de política que está sendo praticada no Brasil, inclusive pelas cúpulas do PT (o resguardo as políticas municipais do PT, que ainda guardam o antigo fervor popular).
O povo se beneficiou do Bolsa Família, do Luz para Todos, do Minha Casa, Minha Vida, do crédito consignado; ingressou na sociedade de consumo. E agora? Bem dizia o poeta cubano Ricardo Retamar: “O ser humano possui duas fomes: uma de pão, que é saciável; e outra de beleza, que é insaciável”.
Como beleza se entendem educação, cultura, dignidade humana e direitos pessoais e sociais, como saúde e transporte.
Essa segunda fome não foi atendida adequadamente pelo poder público. Os que mataram sua fome querem ver atendidas outras fomes, não em último lugar. Avulta a consciência das profundas desigualdades sociais, o grande estigma da sociedade brasileira.
Esse fenômeno se torna mais e mais intolerável na medida em que cresce a consciência de cidadania e de democracia real.
A democracia em sociedades desiguais como a nossa é meramente formal, praticada apenas no ato de votar (que, no fundo, é o poder de escolher seu “ditador” a cada quatro anos, porque, uma vez eleito, ele dá as costas ao povo e pratica a política palaciana dos partidos). É uma farsa coletiva. Essa farsa está sendo desmascarada. As massas querem estar presentes nas decisões dos projetos que as afetam.
Esse grito não pode deixar de ser escutado, interpretado e seguido. A política poderá ser outra daqui para a frente.
(transcrito de O Tempo)
07 de julho de 2013
Leonardo Boff
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