Sinto muito escrever algo que não entra na euforia pela visita do papa Francisco. No pânico ou arrebatamento, vale seguir Spinoza, para quem não devemos rir nem chorar com os fatos, mas compreender suas articulações, não raro despercebidas na hora. Qual lógica seguirá o simpático bispo de Roma na sua atuação mundial? Não erraremos em demasia ao retomar a História da Igreja nos últimos tempos.
"Toda nação europeia, sem a influência da Santa Sé, será levada invencivelmente à servidão ou à revolta" (De Maistre). O pensamento conservador do século 19 põe no pontífice a base da ordem social e política, premissas retomadas pelos líderes eclesiásticos em documentos e tratados diplomáticos. A síntese entre poder divino e secular permite entender os papas recentes.
Em carta ao cardeal Gasparri (1929), Pio XI diz sobre o Tratado de Latrão: a Igreja e o poder civil formam uma "ordem necessariamente determinada pelos respectivos fins". Logo, "a dignidade objetiva dos fins determina necessariamente a absoluta superioridade da Igreja". O Vaticano sustentou poderes estatais, mesmo quando eles prometiam barbárie, como na Concordata (Reichskonkordat) com Hitler.
O apoio ao Führer teve contrapartidas. O artigo 5.º do tratado indica: "No exercício de sua atividade sacerdotal, os eclesiásticos gozam da proteção do Estado, do mesmo modo que os funcionários do Estado". A Igreja proíbe atividades partidárias dos padres e movimentos leigos na Alemanha. Desarmados os católicos, o nazismo se fortifica. Hitler violou sistematicamente a Concordata.
No Vaticano II ocorre importante mudança na política acima. O apoio a Mussolini e a Hitler supunha extirpar liberais, socialistas e outros. A Gaudium et Spes proclama que "muitos e vários são os homens que integram a comunidade política e podem legitimamente seguir opiniões diversas (...) o exercício da autoridade política, seja na comunidade como tal, seja nos órgãos representativos do Estado, sempre deve ser realizado nos limites da ordem moral (...) de acordo com a ordem jurídica legitimamente estabelecida ou por estabelecer".
Cautela diante dos líderes autoritários: "Os cidadãos (...) evitem atribuir demasiado poder à autoridade pública e não exijam dela inoportunamente privilégios e proveitos exagerados, de tal modo que diminuam a responsabilidade das pessoas, das famílias e dos grupos sociais".
Depois de Paulo VI a política vaticana vai do Concílio à Realpolitik. João Paulo II colabora para o enterro da URSS, o que libera forças democráticas. Mas, como provam M. Politi e C. Bernstein (Sua Santidade), ele foi silente em face de regimes como o de Pinochet, aliando-se a Reagan em feitos pouco defensáveis. Wojtyla/Ratzinger lançam o Termidor. "É preciso", proclama o Concílio, "reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, se rege por princípios próprios".
A maioridade foi reconhecida aos leigos. João Paulo II tutela os fiéis na vida pública e na Igreja. À hierarquia foi atribuído poder inaudito. Logo, a direção da Igreja gira em torno de si mesma, tolera descalabros éticos e políticos que levam à renúncia de Bento XVI. Nada foi deixado aos padres e leigos. Aumenta o êxodo rumo à indiferença religiosa, ao ateísmo.
Segundo K. Mannheim, "a Igreja Católica é a grande instituição que, pela primeira vez, planificou o lado social da cultura. Ela exibe muito saber deixando que seus integrantes externos façam experimentos na sua periferia. Quando eles fracassam a Igreja os desaprova ou excomunga; mas formas bem-sucedidas de ajuste e mudança fazem por vezes suas organizações lutarem pela própria Igreja. Assim ocorreu com as ordens monásticas e grupos missionários como Cluny e os Jesuítas". Francisco ressuscita esperanças dos que seguem a Teologia da Libertação.
Mas os altares simultâneos para João XXIII e João Paulo II sinalizam uma complexa abertura pontifícia para várias saídas. Francisco mostra que não assume um discurso fechado, nem favorece a via progressista. O contentamento por seus gestos deve ser moderado pela prudência. Entusiastas não operam com a razão, mas com a vontade e o dogma, acolhidos como inquestionáveis. Quando publiquei meu doutoramento, defendido na França em 1978, João Paulo II era a esperança.
Em Brasil, Igreja contra Estado, apresento análises, documentos à vista, nas quais mostro a lógica que move a Igreja moderna: afirmar sua soberania espiritual acima de Estados e sociedades, como na tese de Pio XI. O livro alerta os que imaginavam uma Igreja catequizada pelo socialismo.
Como resposta alguém proclamou, baseado apenas no desejo, "uma inegável tendência da Igreja na direção do projeto socialista, como o verificou o insuspeito historiador da Igreja R. Aubert, e outros analistas sérios" (Clodovis Boff, A Igreja da Esperança).
O dito socialismo baseava-se no equívoco de identificar a tese marxista (a socialização dos meios de produção) e a Doutrina Social da Igreja (a propriedade social). Jogo semântico, para ser caridoso, o "socialismo" eclesiástico era desprovido de base histórica.
Na vida social, política, econômica ou religiosa, nada é "inegável", salvo para quem, em vez de pesquisar tendo a dúvida como corretivo, decreta, como o camarada Lyssenko, certezas catastróficas. A repressão de João Paulo II/ Bento XVI foi atenuada, mas nada indica que Francisco, que segue a Doutrina Social da Igreja, chegue ao socialismo ou prescreva heterodoxias morais ou místicas.
Os governos também se acautelem: a Igreja apoia a ordem civil, mas busca acima de tudo preservar sua missão e defender seus espaços. Como diz Elias Canetti, perto dela "todos os poderosos dão a impressão de serem modestos diletantes". E diletantes enxameiam nos palácios brasileiros.
31 de julho de 2013
Roberto Romano, O Estado de São Paulo
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