Na transmissão dos protestos, surge um novo tipo de jornalismo
À uma da manhã de 18 de junho, um painel da Coca-Cola com centenas de latas
vazias ardia em chamas na avenida Paulista, em São Paulo. Do lado esquerdo da
peça, o fogo avançava sobre a mensagem publicitária: “Vamos juntos colorir o
Brasil.” Do outro lado, um catador recolhia as latas arrancadas do painel, ao
lado do novo slogan rabiscado sobre o fundo vermelho: “queima copa.” Além do
agente da reciclagem e do fogo vândalo, a cena guardava um protagonista oculto:
o repórter ninja que documentou tudo.
Mas não se tratava de um guerreiro oriental: a expressão designa o coletivo de mídia Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, ou simplesmente NINJA. Naquela noite, Filipe Peçanha, integrante do grupo, era o único jornalista a cobrir ao vivo o protesto na esquina da Paulista com a rua da Consolação.
A transmissão via internet alcançou 80 mil acessos, o equivalente a pouco mais de 1 ponto no Ibope. Nenhum canal de tevê mostrava em tempo real o tumulto das manifestações. Os protestos haviam começado pacificamente na Sé, se convulsionaram no ataque ao prédio da prefeitura e terminaram sob bombas da polícia na Paulista.
Peçanha tem 24 anos e nasceu em Machado (MG), mas é conhecido como Carioca – culpa de uma temporada em que viveu entre Petrópolis e Teresópolis. Enquanto cobria outra manifestação na Paulista, alguns dias depois, ele se lembrou de como registrou a imagem do painel queimando, que se alastrou pelas redes sociais. Carioca viu uns quinze manifestantes brigando com seguranças junto ao painel publicitário. “Derrubaram o gradil e veio a polícia, que caiu de cassetete em cima de todo mundo. Eles se dispersaram e, nos vinte minutos que se passaram até uma viatura chegar, alguém meteu fogo”, contou.
Carioca disse que percebeu o gesto como “uma conquista do movimento”. Em vez de vandalismo, ele preferiu enxergar na cena um reflexo do “caos sígnico” que varreu as ruas brasileiras nos idos de junho. “Quando os caras atacam um signo de poder econômico que ocupava o espaço público, fazem um sequestro do simbólico”, avaliou. “Mas o poder segue vivo, como se vê no catador pegando as latinhas.”
cobertura engajada e em tempo real de
questões sociais é a marca do NINJA. O grupo atua há um ano e meio e funciona
como uma espécie de braço audiovisual do Circuito Fora do Eixo – rede de
coletivos catalisados pela figura magnética do ativista Pablo Capilé. A
iniciativa nasceu de uma série de discussões políticas que levou à criação da
Póstv, canal audiovisual de transmissão ao vivo pela internet. O primeiro tema
abordado pelo NINJA foi a Cracolândia do Centro paulistano. Depois disso, o
coletivo esteve presente nas marchas da maconha, em blocos de rua e eventos como
o “Existe Amor em SP”. Sua missão mais ambiciosa foi o envio de dois
correspondentes a Mato Grosso do Sul, para conferir se de fato os índios
guarani-kaiowá estavam prestes a praticar suicídio coletivo.
O líder natural do NINJA é o carioca Bruno Torturra, de 34 anos, que foi repórter, colunista e diretor da revista Trip por dez anos. Seu texto inventivo, povoado de trocadilhos e imagens bizarras, fornece a alta octanagem política e conceitual que move o coletivo. Enquanto caminhava pela Paulista fechada e vazia, à espera da próxima manifestação, Torturra explicou que o ativismo não funciona se for movido pela raiva, e que por isso defende transmissões bem-humoradas. “A disputa política não pode ser feita com medo ou dedos em riste”, argumentou. “Não é assim que se fecundam mentes. Tem que ser com humor.”
O NINJA se vale da facilidade com que as bandeiras sociais circulam na internet para impulsionar sua cobertura. “A rede e a rua se fundiram”, explicou Torturra. “A guerra agora é memética, de imaginários.” O jornalista se referia aos memes, nome dado aos vídeos, fotos, montagens e frases de efeito que se espalham de forma viral pelas redes. Originalmente, o conceito de meme foi proposto pelo biólogo Richard Dawkins como um análogo cultural dos genes. Assim como a seleção natural favorece a transmissão de alguns traços biológicos, a inteligência coletiva da internet define quais memes sobreviverão: “Passe livre”, “Vamos colorir o Brasil”, “Queima Copa”.
responsável por criar o “imaginário NINJA” é o fotógrafo e designer Rafael Vilela, que os colegas chamam de Pira (“Por ter morado em Piracicaba e também por ser meio pirado”). É ele quem edita fotos e vídeos e atualiza a página no Facebook com as imagens clicadas numa Canon 6D. Naquela noite, Pira estava publicando fotos do ato contra o deputado Marco Feliciano na praça Roosevelt. Dez minutos depois de postada, uma imagem já tinha sido curtida 400 vezes e compartilhada outras 200.
Enquanto postava as fotos, Pira disse que ativismo e comunicação são inseparáveis. “Por isso entramos em lugares que a mídia convencional não vai. Damos voz direta aos personagens, sem intermediários”, explicou. Com os protestos, foram parar inclusive na mídia convencional, entrevistados por revistas e jornais brasileiros, pelo New York Times, peloWashington Post e pela rede árabe de tevê Al Jazeera.
Para as situações de rua, um ninja tem dois kits: o individual e o de equipe. No primeiro, um celular com internet, um laptop funcionando e outros que servem como bateria, todos levados numa mochila. O segundo consiste num carrinho rosa-choque carregado com duas câmeras, mesa de corte, microfones, gerador e caixas de som. Tudo da Apple e comprado coletivamente (menos o carrinho, apropriado de um supermercado), com o dinheiro captado pelo Fora do Eixo nos festivais de música que promove pelo Brasil – e nos editais de cultura de que participam.
Para praticar jornalismo colaborativo, é preciso compartilhar existências. À exceção de Torturra, o núcleo duro – que incluiainda o cinegrafista cuiabano Thiago Dezan – mora todo ele na Casa Fora do Eixo, no bairro do Cambuci. “A vida coletiva faz com que você nunca fique em zona de conforto”, defendeu Pira. “Como estamos sempre em bandos, criamos canais o tempo todo”, explicou Carioca. “Somos mais porosos ao que acontece. Um ninja nunca está sozinho”, concluiu, pouco antes de se dissolver na multidão.
24 de julho de 2013
Ronaldo Bressane, Piaui
Mas não se tratava de um guerreiro oriental: a expressão designa o coletivo de mídia Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, ou simplesmente NINJA. Naquela noite, Filipe Peçanha, integrante do grupo, era o único jornalista a cobrir ao vivo o protesto na esquina da Paulista com a rua da Consolação.
A transmissão via internet alcançou 80 mil acessos, o equivalente a pouco mais de 1 ponto no Ibope. Nenhum canal de tevê mostrava em tempo real o tumulto das manifestações. Os protestos haviam começado pacificamente na Sé, se convulsionaram no ataque ao prédio da prefeitura e terminaram sob bombas da polícia na Paulista.
Peçanha tem 24 anos e nasceu em Machado (MG), mas é conhecido como Carioca – culpa de uma temporada em que viveu entre Petrópolis e Teresópolis. Enquanto cobria outra manifestação na Paulista, alguns dias depois, ele se lembrou de como registrou a imagem do painel queimando, que se alastrou pelas redes sociais. Carioca viu uns quinze manifestantes brigando com seguranças junto ao painel publicitário. “Derrubaram o gradil e veio a polícia, que caiu de cassetete em cima de todo mundo. Eles se dispersaram e, nos vinte minutos que se passaram até uma viatura chegar, alguém meteu fogo”, contou.
Carioca disse que percebeu o gesto como “uma conquista do movimento”. Em vez de vandalismo, ele preferiu enxergar na cena um reflexo do “caos sígnico” que varreu as ruas brasileiras nos idos de junho. “Quando os caras atacam um signo de poder econômico que ocupava o espaço público, fazem um sequestro do simbólico”, avaliou. “Mas o poder segue vivo, como se vê no catador pegando as latinhas.”
O líder natural do NINJA é o carioca Bruno Torturra, de 34 anos, que foi repórter, colunista e diretor da revista Trip por dez anos. Seu texto inventivo, povoado de trocadilhos e imagens bizarras, fornece a alta octanagem política e conceitual que move o coletivo. Enquanto caminhava pela Paulista fechada e vazia, à espera da próxima manifestação, Torturra explicou que o ativismo não funciona se for movido pela raiva, e que por isso defende transmissões bem-humoradas. “A disputa política não pode ser feita com medo ou dedos em riste”, argumentou. “Não é assim que se fecundam mentes. Tem que ser com humor.”
O NINJA se vale da facilidade com que as bandeiras sociais circulam na internet para impulsionar sua cobertura. “A rede e a rua se fundiram”, explicou Torturra. “A guerra agora é memética, de imaginários.” O jornalista se referia aos memes, nome dado aos vídeos, fotos, montagens e frases de efeito que se espalham de forma viral pelas redes. Originalmente, o conceito de meme foi proposto pelo biólogo Richard Dawkins como um análogo cultural dos genes. Assim como a seleção natural favorece a transmissão de alguns traços biológicos, a inteligência coletiva da internet define quais memes sobreviverão: “Passe livre”, “Vamos colorir o Brasil”, “Queima Copa”.
responsável por criar o “imaginário NINJA” é o fotógrafo e designer Rafael Vilela, que os colegas chamam de Pira (“Por ter morado em Piracicaba e também por ser meio pirado”). É ele quem edita fotos e vídeos e atualiza a página no Facebook com as imagens clicadas numa Canon 6D. Naquela noite, Pira estava publicando fotos do ato contra o deputado Marco Feliciano na praça Roosevelt. Dez minutos depois de postada, uma imagem já tinha sido curtida 400 vezes e compartilhada outras 200.
Enquanto postava as fotos, Pira disse que ativismo e comunicação são inseparáveis. “Por isso entramos em lugares que a mídia convencional não vai. Damos voz direta aos personagens, sem intermediários”, explicou. Com os protestos, foram parar inclusive na mídia convencional, entrevistados por revistas e jornais brasileiros, pelo New York Times, peloWashington Post e pela rede árabe de tevê Al Jazeera.
Para as situações de rua, um ninja tem dois kits: o individual e o de equipe. No primeiro, um celular com internet, um laptop funcionando e outros que servem como bateria, todos levados numa mochila. O segundo consiste num carrinho rosa-choque carregado com duas câmeras, mesa de corte, microfones, gerador e caixas de som. Tudo da Apple e comprado coletivamente (menos o carrinho, apropriado de um supermercado), com o dinheiro captado pelo Fora do Eixo nos festivais de música que promove pelo Brasil – e nos editais de cultura de que participam.
Para praticar jornalismo colaborativo, é preciso compartilhar existências. À exceção de Torturra, o núcleo duro – que incluiainda o cinegrafista cuiabano Thiago Dezan – mora todo ele na Casa Fora do Eixo, no bairro do Cambuci. “A vida coletiva faz com que você nunca fique em zona de conforto”, defendeu Pira. “Como estamos sempre em bandos, criamos canais o tempo todo”, explicou Carioca. “Somos mais porosos ao que acontece. Um ninja nunca está sozinho”, concluiu, pouco antes de se dissolver na multidão.
24 de julho de 2013
Ronaldo Bressane, Piaui
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