As revoltas de junho e os ventos conservadores no caminho de
Dilma
A popularidade de Dilma Rousseff está em declínio. Ouvidas em retrospecto, as
vaias dirigidas à presidente na tarde de 15 de junho, no estádio Mané Garrincha,
em Brasília, soam quase como um hino de abertura, uma espécie de trilha sonora
para as revoltas que já então ganhavam força pelo país.
Àquela altura, ainda não estava clara a conexão entre o protesto ruidoso da elite branca que chegou a pagar 300 reais para ver o Brasil derrotar o Japão e a onda de insatisfação que se espraiava pelas cidades, tendo como epicentro a atuação do Movimento Passe Livre em São Paulo – tudo por causa de 20 centavos.
Quarenta e oito horas depois que Joseph Blatter cobrou, em portunhol canhestro, “respecto e fair play” das arquibancadas na capital, foi como se a vaia ecoasse pelos quatro cantos do país: mais de 250 mil pessoas saíram de casa para protestar. Todos os políticos acordaram menores do que tinham ido dormir na véspera, mas quem entrava no olho do furacão com a nacionalização da revolta era a presidente da República. Não foi bem Dilma, “a presidenta”, quem passou ao centro do tiro ao alvo, mas a chefe do Executivo, a figura que encarna o poder e está à frente do sistema político contra o qual as pessoas decidiram investir.
Surgiram, então, o clamor antipartidário, o fervor nacionalista, o pessoal do “gigante que acordou” e que é “brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”, sem ou com violência. Todos durante algum tempo misturados e protegidos sob o guarda-chuva aberto pelo MPL.
vocação ao mesmo tempo pragmática e libertária do Movimento Passe Livre; a recusa em formar lideranças que possam comprometer sua organização horizontal e o espontaneísmo de seus atos; a resistência em canalizar a pressão social que exercem por vias institucionais, transformando-se, eles mesmos, num partido – todas essas características, que definem o MPL e o aproximam de grupos de mobilização anticapitalista em vários pontos do planeta, serviram, paradoxalmente, para dar combustível a aspirações conservadoras, estranhas à agenda da esquerda. Sem o impulso involuntário de um gauchisme pós-moderno, a nova direita não teria chegado às ruas de peito tão aberto.
Na pororoca política que se formou houve de tudo, do espírito francamente carnavalesco de muitos a exibições explícitas de boçalidade fascista de outros tantos. Durante alguns dias, teve-se a sensação de que o país havia entrado num acelerador de partículas – como se o tempo histórico tivesse disparado e houvesse uma concentração inédita de energia no ar. No auge da pororoca, mais de 1 milhão de pessoas em quase 400 cidades se reuniram nas ruas.
Quando o prédio do Itamaraty foi atacado, o destino original dos jovens não era nem o Congresso, por onde também passaram e foram dissuadidos pela polícia, mas o Palácio do Planalto. Não se tramava, é claro, a derrubada da presidente. Mas o que queria aquela gente cheia de som e fúria? Foi naquele momento que a ficha caiu para os manifestantes simpáticos ao governo. Eleitores de Lula e Dilma que acreditavam estar participando da Revolução Francesa passaram a denunciar histericamente a marcha da Restauração.
Pela primeira vez em sua história, o PT se viu do lado de lá do balcão diante de um movimento de massa. O único partido verdadeiramente popular que o Brasil já conheceu virou o representante do establishment, contra o qual as pessoas agora se insurgiam.
A tradução política imediata da atmosfera de Restauração foi captada pelo Datafolha: 30% dos manifestantes da avenida Paulista votariam para presidente em Joaquim Barbosa – o caçador de mensaleiros. Mas o neoudenismo reunido em torno do presidente do STF parece ser apenas a face epidérmica, e por ora folclórica, de algo mais concreto e estrutural.
ara além da reação afobadiça e das pantomimas da casta política, subitamente disposta a mostrar serviço e distribuir anéis no curto prazo, o que está em jogo, afinal, são os limites do lulismo, para usar os termos do cientista político André Singer. É menos da capacidade pessoal de Dilma de enfrentar o futuro que se trata, embora, desde que a crise eclodiu, ela tenha dado exemplos constrangedores de amadorismo político e sujeição à bola de cristal do marqueteiro João Santana (isso para não falar nos palpites do cara).
Em termos menos pessoais, como Singer assinalou à revista Época, o governo se vê agora diante do desafio de administrar duas pressões contrárias: a das ruas (por mais transporte, educação, saúde etc.), que joga a favor do aumento do gasto público; e a das circunstâncias econômicas e do capital, que o constrange pela redução do mesmo gasto público.
O lulismo foi, durante anos, um jogo de ganha-ganha: ganharam os mais ricos (“os bancos nunca faturaram tanto na história deste país”) e ganharam os mais pobres, beneficiados pelos programas de transferência, pela expansão do crédito, pelos aumentos reais e sucessivos do salário mínimo, pelo crescimento e suas consequências sobre o emprego.
Sem a bonança do período anterior, não é mais possível contentar a todos. Tudo indica que ingressamos numa fase nova de conflitos distributivos.
Uma parte dos que vão hoje às ruas é formada pela velha classe média, que viu seus sonhos de status e exclusivismo social abalados pela ascensão de uma nova horda de consumidores felizes. Outra parte é formada pelos próprios neoconsumidores, a quem a propaganda oficial chama de nova classe média. São jovens que se beneficiaram da expansão do ensino superior (o número de alunos dobrou nos últimos dez anos), mas não encontram emprego que os remunere à altura do que a posse do canudo prometia. Vivem, na prática, no fio da navalha, em condições de trabalho precárias e ultracompetitivas.
É impossível adivinhar o que acontecerá. Não se sabe também como o povão, responsável pelo grosso dos votos de Lula e Dilma, reagirá daqui em diante. Até agora, sua presença nas ruas foi residual. O mais provável até é que aqueles a quem André Singer chama de “subproletariado” daqui a pouco comecem a reclamar da bagunça nas ruas (eles costumam ter horror a tudo que se assemelhe a desordem e conflito).
Foi também num mês de junho que o escândalo do mensalão lançou o governo Lula em sua maior crise política. Como agora, em 2005 faltavam quinze meses para as eleições presidenciais. Não há nenhuma correspondência factual entre o junho passado e aquele vivido há oito anos, a não ser a coincidência de datas em que os presidentes foram apanhados no contrapé.
Lula perdeu popularidade, viveu seu inferno por mais de seis meses e renasceu das cinzas no início de 2006, quando quase ninguém acreditava que fosse possível. Era Lula. E os ventos da economia jogavam a seu favor. Não está escrito que Dilma seguirá em rota de declínio acentuado. Mas é Dilma. E os ventos da economia não indicam nenhum céu de brigadeiro pela frente.
24 de julho de 2013
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Àquela altura, ainda não estava clara a conexão entre o protesto ruidoso da elite branca que chegou a pagar 300 reais para ver o Brasil derrotar o Japão e a onda de insatisfação que se espraiava pelas cidades, tendo como epicentro a atuação do Movimento Passe Livre em São Paulo – tudo por causa de 20 centavos.
Quarenta e oito horas depois que Joseph Blatter cobrou, em portunhol canhestro, “respecto e fair play” das arquibancadas na capital, foi como se a vaia ecoasse pelos quatro cantos do país: mais de 250 mil pessoas saíram de casa para protestar. Todos os políticos acordaram menores do que tinham ido dormir na véspera, mas quem entrava no olho do furacão com a nacionalização da revolta era a presidente da República. Não foi bem Dilma, “a presidenta”, quem passou ao centro do tiro ao alvo, mas a chefe do Executivo, a figura que encarna o poder e está à frente do sistema político contra o qual as pessoas decidiram investir.
Surgiram, então, o clamor antipartidário, o fervor nacionalista, o pessoal do “gigante que acordou” e que é “brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”, sem ou com violência. Todos durante algum tempo misturados e protegidos sob o guarda-chuva aberto pelo MPL.
vocação ao mesmo tempo pragmática e libertária do Movimento Passe Livre; a recusa em formar lideranças que possam comprometer sua organização horizontal e o espontaneísmo de seus atos; a resistência em canalizar a pressão social que exercem por vias institucionais, transformando-se, eles mesmos, num partido – todas essas características, que definem o MPL e o aproximam de grupos de mobilização anticapitalista em vários pontos do planeta, serviram, paradoxalmente, para dar combustível a aspirações conservadoras, estranhas à agenda da esquerda. Sem o impulso involuntário de um gauchisme pós-moderno, a nova direita não teria chegado às ruas de peito tão aberto.
Na pororoca política que se formou houve de tudo, do espírito francamente carnavalesco de muitos a exibições explícitas de boçalidade fascista de outros tantos. Durante alguns dias, teve-se a sensação de que o país havia entrado num acelerador de partículas – como se o tempo histórico tivesse disparado e houvesse uma concentração inédita de energia no ar. No auge da pororoca, mais de 1 milhão de pessoas em quase 400 cidades se reuniram nas ruas.
Quando o prédio do Itamaraty foi atacado, o destino original dos jovens não era nem o Congresso, por onde também passaram e foram dissuadidos pela polícia, mas o Palácio do Planalto. Não se tramava, é claro, a derrubada da presidente. Mas o que queria aquela gente cheia de som e fúria? Foi naquele momento que a ficha caiu para os manifestantes simpáticos ao governo. Eleitores de Lula e Dilma que acreditavam estar participando da Revolução Francesa passaram a denunciar histericamente a marcha da Restauração.
Pela primeira vez em sua história, o PT se viu do lado de lá do balcão diante de um movimento de massa. O único partido verdadeiramente popular que o Brasil já conheceu virou o representante do establishment, contra o qual as pessoas agora se insurgiam.
A tradução política imediata da atmosfera de Restauração foi captada pelo Datafolha: 30% dos manifestantes da avenida Paulista votariam para presidente em Joaquim Barbosa – o caçador de mensaleiros. Mas o neoudenismo reunido em torno do presidente do STF parece ser apenas a face epidérmica, e por ora folclórica, de algo mais concreto e estrutural.
ara além da reação afobadiça e das pantomimas da casta política, subitamente disposta a mostrar serviço e distribuir anéis no curto prazo, o que está em jogo, afinal, são os limites do lulismo, para usar os termos do cientista político André Singer. É menos da capacidade pessoal de Dilma de enfrentar o futuro que se trata, embora, desde que a crise eclodiu, ela tenha dado exemplos constrangedores de amadorismo político e sujeição à bola de cristal do marqueteiro João Santana (isso para não falar nos palpites do cara).
Em termos menos pessoais, como Singer assinalou à revista Época, o governo se vê agora diante do desafio de administrar duas pressões contrárias: a das ruas (por mais transporte, educação, saúde etc.), que joga a favor do aumento do gasto público; e a das circunstâncias econômicas e do capital, que o constrange pela redução do mesmo gasto público.
O lulismo foi, durante anos, um jogo de ganha-ganha: ganharam os mais ricos (“os bancos nunca faturaram tanto na história deste país”) e ganharam os mais pobres, beneficiados pelos programas de transferência, pela expansão do crédito, pelos aumentos reais e sucessivos do salário mínimo, pelo crescimento e suas consequências sobre o emprego.
Sem a bonança do período anterior, não é mais possível contentar a todos. Tudo indica que ingressamos numa fase nova de conflitos distributivos.
Uma parte dos que vão hoje às ruas é formada pela velha classe média, que viu seus sonhos de status e exclusivismo social abalados pela ascensão de uma nova horda de consumidores felizes. Outra parte é formada pelos próprios neoconsumidores, a quem a propaganda oficial chama de nova classe média. São jovens que se beneficiaram da expansão do ensino superior (o número de alunos dobrou nos últimos dez anos), mas não encontram emprego que os remunere à altura do que a posse do canudo prometia. Vivem, na prática, no fio da navalha, em condições de trabalho precárias e ultracompetitivas.
É impossível adivinhar o que acontecerá. Não se sabe também como o povão, responsável pelo grosso dos votos de Lula e Dilma, reagirá daqui em diante. Até agora, sua presença nas ruas foi residual. O mais provável até é que aqueles a quem André Singer chama de “subproletariado” daqui a pouco comecem a reclamar da bagunça nas ruas (eles costumam ter horror a tudo que se assemelhe a desordem e conflito).
Foi também num mês de junho que o escândalo do mensalão lançou o governo Lula em sua maior crise política. Como agora, em 2005 faltavam quinze meses para as eleições presidenciais. Não há nenhuma correspondência factual entre o junho passado e aquele vivido há oito anos, a não ser a coincidência de datas em que os presidentes foram apanhados no contrapé.
Lula perdeu popularidade, viveu seu inferno por mais de seis meses e renasceu das cinzas no início de 2006, quando quase ninguém acreditava que fosse possível. Era Lula. E os ventos da economia jogavam a seu favor. Não está escrito que Dilma seguirá em rota de declínio acentuado. Mas é Dilma. E os ventos da economia não indicam nenhum céu de brigadeiro pela frente.
24 de julho de 2013
FERNANDO DE BARROS E SILVA
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