Há jornalistas perplexos com uma notícia do Corriere della Sera, edição de ontem, de que uma ONG, a Gherus92, quer banir a Divina Comédia das escolas na Itália. O recórter tucanopapista hidrófobo da Veja já está à beira de um edema de glote. Fala em Cristofobia e ódio ao Ocidente. Ora, em 05/02/2006 – há seis anos, portanto – comentando o protesto contra as charges sobre Maomé publicadas em um jornal dinamarquês, eu escrevia:
“Sem ir muito longe, dou dois passos até minhas estantes e apanho o Diccionario Literario Bompiani, editado em Barcelona, 1963. No segundo volume de Autores, no verbete Mahoma, há nove gravuras do profeta, na maioria da Universidade de Edimburgo, desde seu nascimento até a colocação da pedra negra na Caaba e o encontro com o arcanjo Gabriel. Estas duas últimas gravuras estão em miniaturas de manuscritos árabes. Há também uma miniatura persa do século XV, na qual Maomé monta um camelo ante sua mulher Khadigia. Ou seja, mesmo em universo muçulmano a imagem do profeta já era reproduzida. Este soberbo dicionário (15 volumes) está publicado nas principais línguas da Europa e nunca vi muçulmano algum condená-lo por blasfêmia. A julgar-se pela escalada da violência, vão acabar pedindo a proibição da Divina Comédia, onde Dante joga o profeta no oitavo círculo do Inferno, destinado aos semeadores de discórdia”.
Nada mais fácil que ser profeta nos dias de hoje. Se os muçulmanos do mundo todo se uniram contra a publicação de charges de Maomé, era óbvio que dirigiriam sua artilharia contra Dante. Escreve o homem que viu o inferno, no Canto XXVIII, vv. 28-36:
Mentre che tutto in lui veder m’attacco,
guardommi, e con le man s’aperse il petto,
dicendo: ‘Or vedi com’io mi dilacco!
vedi come storpiato è Maometto!
Dinanzi a me sen va piangendo Alì,
fesso nel volto dal mento al ciuffetto.
E tutti li altri che tu vedi qui,
seminator di scandalo e di scisma
fur vivi, e però son fessi così.
Segundo Valentina Sereni, presidente da Gherush92, o pilar da literatura italiana e pedra angular da formação dos estudantes italianos apresenta conteúdo ofensivo e discriminatório, tanto na substância e na linguagem e é oferecido sem qualquer filtro nem são fornecidas considerações críticas em relação ao anti-semitismo e racismo.
"Na parte XXVIII do Inferno - explica Sereni - Dante descreve a dor terrível que sofrem os semeadores da discórdia, ou seja, aqueles que em vida provocaram lacerações na vida política, religiosa e familiar. Maomé é representado como um cismático e o Islã como uma heresia. Ao Profeta foi dada uma punição terrível: seu corpo é dividido desde o queixo até o cóccix, para que as entranhas fiquem penduradas pernas abaixo, uma imagem que insulta a cultura islâmica. A cabeça de Ali, sucessor de Maomé, está dividida desde o queixo até o cabelo. O crime se torna mais evidente porque o corpo quebrado e aleijado de Maomé é comparado a um barril rompido, objeto que contém o vinho, proibido pela tradição islâmica”.
Ora, que Maomé gerou um cisma, disto não há como discordar. O islamismo é uma das ditas religiões abraâmicas, ou seja, cuja origem comum deriva de Abraão. Que é uma heresia, sem dúvida alguma. Da mesma forma que o cristianismo é outra heresia gerada pelo judaísmo. Já se o poeta pinta o profeta com cores fortes, isto é direito não só do poeta como de qualquer um. Ou então proiba-se a liberdade de expressão. No Ocidente, a ninguém causa escândalo insultar deuses ou profetas. Guerra Junqueiro, por exemplo, em A Velhice do Padre Eterno, arremete contra deus e o vice-deus:
Quem é o Papa? Um Deus inventado à socapa,
Um Deus para fazer o qual bastam apenas
Quatro coisas: cardeal, papel, tinteiro e penas.
Tampouco Jeová era poupado, para alegria de meus dias de guri:
Espalhou pelo mundo lívidos terrores,
Inventou Satanás; do amor fez um pecado...
Malditos sejais vós, ó bíblicos doutores!
Maldito sejas tu, ó velho deus castrado!
Por que não se pode insultar um Deus? Isto só é crime em sociedades teocráticas e, no Ocidente, Vaticano à parte, o Estado é laico. Mas Sereni vai mais longe. Acha que Dante insultou também os judeus. Segundo a moça, judeu virou termo depreciativo e indica um preconceito anti-semita antigo, a imagem de ávido por dinheiro, o emprestador de dinheiro pessoal, um traiçoeiro, um traidor.
Ora, o judeu usurário é conseqüência lógica do cristianismo. Sendo a usura o grande pecado durante a Idade Média, a função de agiota sobrou para o judeu. “Não sendo cristãos – diz Le Goff, em A Bolsa e a Vida, os judeus não tinham escrúpulos nesse sentido, pois não violavam as prescrições bíblicas ao fazer empréstimos a indivíduos ou instituições fora de sua comunidade”. Diga-se de passagem, Dante também os põe no Inferno:
Ma io m’accorsi
que dal collo a ciascun pendea una tasca
ch’avea certo colore e certo segno
e quindi par che’l loro occhio si pasca.
Onde reside o pecado do poeta?
“O Judas dantesco é a representação do Judas dos Evangelhos, fonte do anti-semitismo. No canto XXIII, Dante pune o Sinédrio que, de acordo com os cristãos, conspirou contra Jesus. Os conspiradores, o sumo sacerdote Caifás, Anna e os fariseus, todos sofrem a mesma pena, diferente no entanto do resto dos hipócritas: Caifás é crucificado nu no chão, de modo que todos os outros condenados possam pisoteá-lo”.
Ora, segundo os Evangelhos, foram os líderes supremos dos judeus que condenaram o Cristo. Ernest Renan, em A Vida de Cristo, vai mais longe. Para Renan, atrás de Caifás há um outro responsável, Hanã, sogro do Sumo Sacerdote. Se o evangelista põe na boca de Caifás as palavras que condenam Jesus à morte é porque se supunha que ele, como Sumo Sacerdote, teria dom de profecia. "Mas essas palavras, quem quer que fosse que as pronunciou, foram o pensamento de todo o partido sacerdotal". E Hanã era o cabeça do partido.
"Foi Hanã (ou, se assim o querem, o partido que ele representava) que matou Jesus. Hanã foi o principal ator nesse drama terrível, e muito mais que Caifás, muito mais do que Pilatos, deveria carregar com o peso das maldições da humanidade". Enfim, Hanã ou Caifás, ambos eram judeus e defendiam interesses da hierarquia judaica. Ainda segundo Renan, os sacerdotes viram como derradeira conseqüência daquela agitação "uma agravação do jugo romano e a destruição de suas riquezas e suas honras". Um mês antes da Páscoa, Jesus já fora condenado pelos sacerdotes judeus.
Isto é, pela suprema hierarquia da nação judaica. Povo nunca decide a morte de um homem. Quem decide são seus líderes. Claro que não houve um plebiscito para decidir o destino do crucificado. Para os sacerdotes judeus, Cristo, ao se anunciar como Deus e filho de Deus, era um herege. Para os romanos, politeístas, deus a mais ou deus a menos pouca diferença fazia.
Pelo jeito a moça quer, no fundo mesmo, a proibição dos textos bíblicos nas escolas italianas.
14 de março de 2012
janer cristaldo
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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