"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 14 de março de 2012

AUTORIZAÇÃO PARA MATAR

Artigos - Aborto

Se existe a permissão para matar, quem é a vítima é apenas um detalhe.

Um americano viajou à Irlanda, e lá ficou surpreso com a quantidade de pessoas com o que antigamente se chamava mongolismo e hoje é chamado “Síndrome de Down”.
Raríssimas na sociedade americana, estas pessoas a quem Morris West se referiu como “aqueles a quem Deus deu a graça da eterna inocência” são muito mais comuns na Irlanda.

A razão da diferença proporcional é simples: nos EUA, eles são mortos. Mortos em condições controladas e assépticas, em clínicas esterilizadas, assim que o pré-natal faz com que os pais saibam que o filho é assim. Já na Irlanda, onde o aborto é proibido, a pena de morte não é aplicada de modo tão automático.

Aqui no Brasil estamos no meio-termo: muitos – não todos – são mortos; ilegalmente, mas não menos fatalmente. Mas ressurge a ideia, já proposta pelo nazismo, de que o Estado pode declarar que há vidas humanas sem valor. Vários juízes já deram autorização para que fossem abortados bebês com má-formação do crânio ou do cérebro, considerando que a condição deles seria “incompatível com a vida”, e por isso a vida que eles têm pode ser exterminada. Agora, ao que se diz, a questão vai para o Supremo Tribunal.

Eu poderia citar casos, como o do funcionário francês que vive, trabalha e criou dois filhos apesar de ter uma má-formação cerebral que lhe valeria a pena de morte se seu caso houvesse sido julgado por um desses juízes, ou o da menininha Vitória, que nasceu sem crânio e vive, ri e alegra seus pais em São Paulo desde que nasceu, há um ano e meio. Mas não interessa.

O que apavora é que a possibilidade de problemas, ou mesmo de morte precoce, possa valer uma autorização automática para matar.

Ora, todos nós morreremos. O mais saudável dos seres humanos pode morrer amanhã, e pessoas com doenças graves podem viver longos anos, muitas vezes criando coisas que perduram para sempre. Matar agora por ser provável que se morra amanhã é um passo gigantesco e apavorante: é considerar que se pode matar, que se pode julgar que uma vida presente não tem valor. Hoje podem ser crianças doentes.
Amanhã podem ser idosos, como já ocorre na Holanda. Depois de amanhã, podem ser as crianças com o sexo “errado”, como já ocorre na China, podem ser os homossexuais, podem ser quaisquer pessoas que se julgue não serem “produtivas o bastante”. O céu, ou melhor, o inferno é o limite.


O perigoso é passar por esta primeira porta, é achar que se pode declarar que uma vida não tem valor. Se existe a permissão para matar, quem é a vítima é apenas um detalhe.

Publicado em julho de 2011 no jornal Gazeta do Povo.
Carlos Ramalhete é professor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário