A tese de que os ministros do Supremo Tribunal Federal marcaram o julgamento do mensalão para agosto cedendo à pressão da opinião pública, vocalizada pela mídia tradicional, que os petistas estão difundindo pelas redes sociais, foi mais uma vez gerada pelo criminalista Márcio Thomaz Bastos — ele que, quando ministro da Justiça de Lula, socorreu o governo com a tese de que o mensalão não passara de um crime eleitoral de caixa dois —, defensor de um dos réus do mensalão, e tem base em vários pareceres de juristas que circulam entre os petistas.
Entre eles, há um do criminalista Nilo Batista, que se refere a casos ocorridos nos Estados Unidos, em que julgamentos criminais foram anulados devido à influência da imprensa na opinião pública, gerando uma sentença que, segundo os defensores dessa tese, não passa de“averbação judicial de um veredicto já anteriormente ditado: a mídia já julgara”.
É a situação que se chama em inglês de trial by the media e que o ex-ministro Thomaz Bastos chamou de “não julgamento” ou “uma farsa”. O próprio Thomaz Bastos deu exemplos de casos acontecidos no Brasil, como a condenação do casal Nardoni pela morte da menina Isabella, que ele considera estar enquadrado nessa situação.
O ex-ministro da Justiça de Lula admitiu em sua entrevista que essa influência da mídia se verifica com maior intensidade em julgamento de primeira instância ou no júri popular, mas destacou que os ministros do STF “não vivem em Marte” e são influenciados pelo ambiente em que vivem e pelos comentários que ouvem de pessoas próximas. A mesma advertência que Nilo Batista em seu parecer faz, citando o jurista Martins de Andrade: “O juiz (togado ou leigo) é um membro integrado e ativo da sociedade (…) suscetível às influências culturais e ideológicas (… como) aquelas exercidas pelos órgãos da mídia.”
Sobre a imparcialidade dos juízes do Supremo e a capacidade de se manterem alheios às influências externas de motivação política, é importante ter conhecimento de um texto primoroso de um dos grandes juristas que o país já teve, Victor Nunes Leal, cassado em janeiro de 1969 com base no AI-5.
Seu depoimento está no livro “Umas lembranças do Supremo Tribunal Federal na Revolução”, que o jurista e historiador Alberto Venâncio Filho pesquisou no Instituto Victor Nunes Leal.
No Brasil, nos períodos autoritários, houve intervenções no STF, sendo que duas delas durante o regime militar: o Ato Institucional n, 2, de 27 de outubro de 1965 (e não 1967 como escrevi na coluna de sábado), aumentou o número de ministros de 11 para 16, na tentativa de controlar suas decisões, e em janeiro de 1969, com base no Ato Institucional n, 5, foram aposentados compulsoriamente os ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Em protesto, também renunciou ao cargo o então presidente do STF, ministro Gonçalves de Oliveira, e pediu aposentadoria o ministro Lafayette de Andrada, o mais antigo da Corte (decano).
Na sequência, o Ato Institucional nº 6, de 12 de fevereiro de 1969, reduziu o número de ministros para 11, que permanece até hoje. Pois Victor Nunes Leal, ainda no governo de Castello Branco, soube que havia um boato de que os militares estavam dispostos a intervir no Supremo devido a um suposto trabalho de três ministros no sentido de formar um bloco hostil ao governo militar.
Ele então escreveu uma carta a um amigo, em 16 de junho de 1964, que sabia ter boas relações com Castello Branco e lhe faria chegar suas observações.
“Quem chega ao Supremo Tribunal Federal tem um passado pelo qual zelar, na advocacia, na magistratura, no magistério, em funções administrativas ou políticas, e está atento ao julgamento dos contemporâneos e da posteridade. O juiz, mormente do Supremo Tribunal, não recompensa benefícios, mas exerce uma elevada função que exige espírito público e dignidade”, afirma Victor Nunes Leal.
Ele compara a imposição da toga à investidura do speaker da Câmara dos Comuns, “cuja tradição é o escrupuloso e voluntário desligamento de sua anterior atividade política. No juiz, com mais forte razão, essa desvinculação tem de ser completa. ( …) O dever do juiz é cumpri-las (as leis), em confronto com a Constituição”.
Na carta, Victor Nunes Leal faz a definição da missão de julgar: “Decerto, essa delicada tarefa não é um trabalho mecânico. Valemo-nos de nossa formação profissional, e da observação da realidade econômica, social e política. Mas nessa busca, por vezes tormentosa, nossa lealdade é para com a Constituição, as leis, o interesse coletivo e a nossa consciência, porque sem independência, que é o ônus e a prerrogativa do juiz, não se pode falar em autêntico Poder Judiciário.”
Para Victor Nunes Leal, “não estaria à altura do cargo quem pensasse em organizar maioria de juízes contra este ou aquele governo. Cada um de nós é cioso de sua responsabilidade pessoal, de sua reputação, do seu compromisso com o país, da sua autonomia no julgamento”.
Em sua carta, Victor Nunes Leal analisa “as vicissitudes normais do Supremo Tribunal, que não se pode engajar em contrário, nem a favor do governo”. Diz ele: “Quando rumores de todos os lados inquietavam nosso espírito e nos perturbavam o trabalho, era natural que nos preocupássemos com o destino de nossa instituição, que é fiel do equilíbrio federativo, da harmonia dos poderes, dos direitos individuais e, portanto, chave do regime democrático- representativo em que vivemos. (…)
Assumir posições políticas, num ou noutro sentido, seria totalmente contrário à missão constitucional do Tribunal, prestigiada pela venerável tradição que todos estamos empenhados em preservar”.
Victor Nunes Leal soube que sua carta chegara ao conhecimento do presidente Castello Branco, e talvez por isso sua cassação e a dos outros dois ministros só tenham acontecido anos depois, já no governo Costa e Silva, com base no Ato Institucional nº 5.
Merval Pereira
15 de junho de 2012
Fonte: O Globo
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