Banco Rural é protagonista das maiores fraudes dos últimos anos. Ex-dirigentes da instituição financeira foram condenados durante julgamento do mensalão
A condenação dos principais dirigentes do Banco Rural por gestão fraudulenta e lavagem de dinheiro no Supremo Tribunal Federal (STF) é o capítulo derradeiro de trajetória marcada por uma série de fraudes contra o sistema financeiro nacional e ocultação de recursos de grupos criminosos. Condenados por crimes cujas penas mínimas somam seis anos de reclusão, Kátia Rabello, dona do banco; Vinicius Samarane, o atual vice-presidente; e o ex-vice-presidente José Roberto Salgado ainda terão conduta analisada pelos ministros em função dos crimes de evasão de divisas e formação de quadrilha. Mas a decisão do STF já é a mais dura pena aplicada até agora ao banco mineiro, fundado há 47 anos oficialmente como especialista “no mercado de crédito para pequenas e médias empresas”.
Os tentáculos do Rural aparecem em alguns dos principais escândalos políticos dos últimos 20 anos, das CPIs dos Precatórios e dos Bancos aos mensalões tucano e petista. Do escândalo do Banestado à ocultação de transações para tesoureiros de ex-presidentes (Collor e Lula).
Em decisões de primeira instância em Minas Gerais, dirigentes do banco já foram condenados por sonegar CPMF para oferecer taxas de remuneração superiores à do mercado. O Ministério Público Federal recorreu para pedir aumento das penas impostas. Inquérito que tramita sob sigilo investiga pelo menos quatro grandes clientes do banco cujos saques e outras movimentações não eram registradas no extrato oficial das contas.
US$ 192 milhões com laranjas no exterior
Desde novembro de 2011, um processo contra seis diretores por gestão fraudulenta e formação de quadrilha está pronto para ser julgado na 4ª Vara da Justiça Federal em Belo Horizonte, que concentra os processos relacionados a crimes contra o sistema financeiro. O Ministério Público identificou fraudes no envio ao exterior de US$ 4,8 bilhões, entre 1996 e 2000. Pelo menos US$ 192 milhões enviados para fora circularam em nome de laranjas que tinham sido aliciados por pessoa ligada ao banco. Na peça inicial da ação, o ex-vice-presidente Salgado é citado por um depoente como idealizador no país das irregularidades envolvendo remessas de dinheiro para fora do Brasil por meio de contas CC5 (voltadas para brasileiros residentes fora do país).
Documentos que constam do processo do mensalão mostram que um terço (R$ 154 milhões) dos R$ 478 milhões mantidos oficialmente pelo Rural no exterior estavam aplicados na offshore Trade Link Bank, constituída nas Ilhas Cayman, paraíso fiscal. Em ofícios enviados ao Banco Central e depoimentos à CPMI dos Correios, dirigentes do banco sempre negaram qualquer vínculo estatutário com a offshore.
— Fora de cogitação — disse Kátia Rabello, então presidente do banco, ao ser perguntada pelo deputado ACM Neto sobre a participação de dirigentes do Rural na Trade Link.
A versão foi desmontada por documentos enviados pela Promotoria de Nova York à Procuradoria Geral da República no Brasil, que mostram serem os donos do banco os verdadeiros responsáveis pela offshore.
Foi por meio da Trade Link Bank que Marcos Valério, operador do mensalão, pagou boa parte dos R$ 10,8 milhões destinados ao publicitário Duda Mendonça, fato que ainda será objeto de análise no processo do mensalão. Peritos identificaram 3,6 mil registros de transações da Trade Link que somam R$ 1,7 bilhão, entre 1996 e 2004.
Escândalos desde a era Collor
A maior parte deste valor foi movimentada na segunda metade dos anos 1990, a partir do Banestado, cujas contas foram investigadas e se tornaram objeto de um escândalo de evasão de divisas. Uma nova ação contra os dirigentes do banco por gestão temerária e evasão de divisas foi aberta pelo Ministério Público Federal no Paraná e também está em vias de ser julgada.
O mensalão não é o primeiro escândalo de grande porte frequentado pelo Rural. Relatórios de CPIs do Congresso já citaram diversas vezes a instituição. A CPI que investigou o governo Collor e o esquema do ex-tesoureiro Paulo Cesar Farias concluiu que a história teria sido diferente se não existisse o Rural. Sem ele, diz o texto final do relatório, “as falsidades ideológicas e materiais perpetradas com o espúrio propósito de sonegar o fisco e ocultar a origem das receitas teriam sido impossíveis”.
O caso mais explosivo, estopim para a queda de Fernando Collor, envolveu a compra do Fiat Elba do ex-presidente. O cheque era do Rural. À época, a origem do documento foi identificada pelo Banco Bamerindus, que recebeu o depósito. A conta estava em nome de José Carlos Bonfim, fantasma usado pelo esquema de PC.
A partir de contas em nome de pessoas inexistentes, foram ocultados pagamentos de propina de empresas que tinham contratos com o governo. A CPI concluiu que o Rural era o “grande caixa de todo o esquema clandestino de PC Farias”. Além disso, foi por meio da Trade Link que PC Farias remeteu 2,6 milhões às suas contas na Suíça.
Quase uma década depois, o Rural voltou a surgir nas páginas de uma CPI, em 2001. A comissão que investigou irregularidades nas associações brasileiras de futebol identificou que uma representação do Banco Rural nas Bahamas, paraíso fiscal, estava no caminho de um empréstimo de US$ 7 milhões obtido pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) no Delta National Bank, de Nova York. De acordo com o relatório da CPI, os juros desse empréstimo teriam sido “extorsivos” e pagos antecipadamente. De Nova York até a conta corrente que a CBF tinha em agência do Banco Rural em Belo Horizonte, o dinheiro passou pelo Banestado de Nova York e depois para a representação do Rural em Nassau, nas Bahamas, caminho classificado pela CPI como “tortuoso”.
Empréstimos lesaram até a CBF
Marcelo Freire, hoje procurador regional da República da 1ª Região, ajuizou, à época, vários inquéritos a partir das denúncias da CPI. Os empréstimos foram considerados lesivos. Os inquéritos foram aceitos pela Justiça de primeiro grau e viraram ações penais, mas o Tribunal Regional Federal da 2ª Região arquivou todos:
— Segundo a denúncia, os empréstimos eram irregulares porque seriam lesivos à CBF, com juros superiores aos do mercado. No caso do Delta Bank, foram duas denúncias feitas contra pessoas ligadas à CBF. Não houve uma específica contra dirigentes do Rural. A CPI não individualizou.
Em nota, o Banco Rural informou que “nunca teve participação acionária na Trade Link Bank e vice-versa”. Negou qualquer irregularidade em relação à sonegação de CPMF, apesar de já ter sido condenado em primeira instância em função desta fraude. Disse também cumprir “rigorosamente as normas vigentes” à época de todos os fatos citados na reportagem, como as movimentações para PC Farias, para a CBF, via contas do Banestado e empresas de Marcos Valério.
15 de setembro de 2012
A condenação dos principais dirigentes do Banco Rural por gestão fraudulenta e lavagem de dinheiro no Supremo Tribunal Federal (STF) é o capítulo derradeiro de trajetória marcada por uma série de fraudes contra o sistema financeiro nacional e ocultação de recursos de grupos criminosos. Condenados por crimes cujas penas mínimas somam seis anos de reclusão, Kátia Rabello, dona do banco; Vinicius Samarane, o atual vice-presidente; e o ex-vice-presidente José Roberto Salgado ainda terão conduta analisada pelos ministros em função dos crimes de evasão de divisas e formação de quadrilha. Mas a decisão do STF já é a mais dura pena aplicada até agora ao banco mineiro, fundado há 47 anos oficialmente como especialista “no mercado de crédito para pequenas e médias empresas”.
Os tentáculos do Rural aparecem em alguns dos principais escândalos políticos dos últimos 20 anos, das CPIs dos Precatórios e dos Bancos aos mensalões tucano e petista. Do escândalo do Banestado à ocultação de transações para tesoureiros de ex-presidentes (Collor e Lula).
Em decisões de primeira instância em Minas Gerais, dirigentes do banco já foram condenados por sonegar CPMF para oferecer taxas de remuneração superiores à do mercado. O Ministério Público Federal recorreu para pedir aumento das penas impostas. Inquérito que tramita sob sigilo investiga pelo menos quatro grandes clientes do banco cujos saques e outras movimentações não eram registradas no extrato oficial das contas.
US$ 192 milhões com laranjas no exterior
Desde novembro de 2011, um processo contra seis diretores por gestão fraudulenta e formação de quadrilha está pronto para ser julgado na 4ª Vara da Justiça Federal em Belo Horizonte, que concentra os processos relacionados a crimes contra o sistema financeiro. O Ministério Público identificou fraudes no envio ao exterior de US$ 4,8 bilhões, entre 1996 e 2000. Pelo menos US$ 192 milhões enviados para fora circularam em nome de laranjas que tinham sido aliciados por pessoa ligada ao banco. Na peça inicial da ação, o ex-vice-presidente Salgado é citado por um depoente como idealizador no país das irregularidades envolvendo remessas de dinheiro para fora do Brasil por meio de contas CC5 (voltadas para brasileiros residentes fora do país).
Documentos que constam do processo do mensalão mostram que um terço (R$ 154 milhões) dos R$ 478 milhões mantidos oficialmente pelo Rural no exterior estavam aplicados na offshore Trade Link Bank, constituída nas Ilhas Cayman, paraíso fiscal. Em ofícios enviados ao Banco Central e depoimentos à CPMI dos Correios, dirigentes do banco sempre negaram qualquer vínculo estatutário com a offshore.
— Fora de cogitação — disse Kátia Rabello, então presidente do banco, ao ser perguntada pelo deputado ACM Neto sobre a participação de dirigentes do Rural na Trade Link.
A versão foi desmontada por documentos enviados pela Promotoria de Nova York à Procuradoria Geral da República no Brasil, que mostram serem os donos do banco os verdadeiros responsáveis pela offshore.
Foi por meio da Trade Link Bank que Marcos Valério, operador do mensalão, pagou boa parte dos R$ 10,8 milhões destinados ao publicitário Duda Mendonça, fato que ainda será objeto de análise no processo do mensalão. Peritos identificaram 3,6 mil registros de transações da Trade Link que somam R$ 1,7 bilhão, entre 1996 e 2004.
Escândalos desde a era Collor
A maior parte deste valor foi movimentada na segunda metade dos anos 1990, a partir do Banestado, cujas contas foram investigadas e se tornaram objeto de um escândalo de evasão de divisas. Uma nova ação contra os dirigentes do banco por gestão temerária e evasão de divisas foi aberta pelo Ministério Público Federal no Paraná e também está em vias de ser julgada.
O mensalão não é o primeiro escândalo de grande porte frequentado pelo Rural. Relatórios de CPIs do Congresso já citaram diversas vezes a instituição. A CPI que investigou o governo Collor e o esquema do ex-tesoureiro Paulo Cesar Farias concluiu que a história teria sido diferente se não existisse o Rural. Sem ele, diz o texto final do relatório, “as falsidades ideológicas e materiais perpetradas com o espúrio propósito de sonegar o fisco e ocultar a origem das receitas teriam sido impossíveis”.
O caso mais explosivo, estopim para a queda de Fernando Collor, envolveu a compra do Fiat Elba do ex-presidente. O cheque era do Rural. À época, a origem do documento foi identificada pelo Banco Bamerindus, que recebeu o depósito. A conta estava em nome de José Carlos Bonfim, fantasma usado pelo esquema de PC.
A partir de contas em nome de pessoas inexistentes, foram ocultados pagamentos de propina de empresas que tinham contratos com o governo. A CPI concluiu que o Rural era o “grande caixa de todo o esquema clandestino de PC Farias”. Além disso, foi por meio da Trade Link que PC Farias remeteu 2,6 milhões às suas contas na Suíça.
Quase uma década depois, o Rural voltou a surgir nas páginas de uma CPI, em 2001. A comissão que investigou irregularidades nas associações brasileiras de futebol identificou que uma representação do Banco Rural nas Bahamas, paraíso fiscal, estava no caminho de um empréstimo de US$ 7 milhões obtido pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) no Delta National Bank, de Nova York. De acordo com o relatório da CPI, os juros desse empréstimo teriam sido “extorsivos” e pagos antecipadamente. De Nova York até a conta corrente que a CBF tinha em agência do Banco Rural em Belo Horizonte, o dinheiro passou pelo Banestado de Nova York e depois para a representação do Rural em Nassau, nas Bahamas, caminho classificado pela CPI como “tortuoso”.
Empréstimos lesaram até a CBF
Marcelo Freire, hoje procurador regional da República da 1ª Região, ajuizou, à época, vários inquéritos a partir das denúncias da CPI. Os empréstimos foram considerados lesivos. Os inquéritos foram aceitos pela Justiça de primeiro grau e viraram ações penais, mas o Tribunal Regional Federal da 2ª Região arquivou todos:
— Segundo a denúncia, os empréstimos eram irregulares porque seriam lesivos à CBF, com juros superiores aos do mercado. No caso do Delta Bank, foram duas denúncias feitas contra pessoas ligadas à CBF. Não houve uma específica contra dirigentes do Rural. A CPI não individualizou.
Em nota, o Banco Rural informou que “nunca teve participação acionária na Trade Link Bank e vice-versa”. Negou qualquer irregularidade em relação à sonegação de CPMF, apesar de já ter sido condenado em primeira instância em função desta fraude. Disse também cumprir “rigorosamente as normas vigentes” à época de todos os fatos citados na reportagem, como as movimentações para PC Farias, para a CBF, via contas do Banestado e empresas de Marcos Valério.
15 de setembro de 2012
Thiago Herdy - O Globo
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