Em abril de 1989, fomos bombardeados, por dezenas de fotos e filmes, vindos da Argentina, mostrando filas de gente com fome, supermercados saqueados e vitrines em estilhaços. Tais fotos e filmes, somadas à queda brutal do austral e a uma inflação projetada de 24 mil por cento ao ano, davam-nos a idéia de um país falido. O telespectador tupiniquim, ante tal quadro, era até capaz de sorrir com seus botões: cá no Brasil, só estão faltando leite, filé e azeite. Acontece que, entre fatos e fotos, há mais distância do que sonha nossa vã fotografia.
Entrei na Argentina no dia 14 de maio daquele ano, data das eleições que levaram ao poder, sem necessidade de segundo turno, o peronista Carlos Menem. Diga-se de passagem, lá tive de enfrentar minha única restrição aos regimes democráticos: a cada cinco ou seis anos, a gente fica um dia sem beber. Estava em Bariloche e, para beber, o melhor que havia era água. Macaco velho, conhecedor dessas esporádicas falhas da democracia, no Chile eu me muniria de uma botellita de bom vinho. Às oito da noite, os peronistas com seus bumbos tomaram as ruas celebrando a vitória e pedindo a renúncia de Alfonsín. Dia seguinte, acelerava-se a queda do austral. Nos supermercados, os argentinos olhavam os novos preços com desalento.
Dia 19 de maio, guiado por um portenho apaixonado por sua cidade, percorri a noite buenairense. “Quero mostrar-te as diferentes faces da crise”, disse-me. Jantamos na Costanera, onde os restaurantes se sucedem, um ao lado do outro. A fome ali era uma realidade palpável: apesar dos salões imensos com duzentas ou mais mesas, os argentinos se amontoavam em filas esperando uma mesa vaga. Giramos depois pelos cafés de Belgrano, Palermo e La Recoleta. Passava de meia-noite e Buenos Aires nada ficava a dever a Madri numa noite de verão.
Mostrar a fome em um país é a melhor forma de condenar seu sistema econômico. Fome desde há muito há em Cuba. Fome, eu a vi na Romênia, com meus próprios olhos. No entanto, jamais vi reportagens sobre a fome em Cuba ou na Romênia. As reportagens sobre fome são sempre sobre a fome em países capitalistas.
Ora, em Paris ou Nova York – ou mesmo aqui em São Paulo, para não ir mais longe – todos os dias, milhares de pessoas entram em filas para receber comida de graça. Jamais vi fotos dessas filas, e isso que leio dois ou três jornais por dia. E mesmo que as visse, jamais me ocorreria pensar que a França ou os Estados Unidos passaram a integrar, do dia para a noite, o time do Terceiro Mundo. Da Argentina também nos chegaram fotos de saques em supermercados, na época. Impossível negar a evidência de tais saques, se bem que me soa estranho ver pessoas famintas levando terminais de computadores para comer em casa.
Volto aos dias de hoje. As esquerdas têm a Europa engasgada na garganta. Velhos e novos comunistas – inclusive aqueles que jamais leram Marx e sequer sabem que o são – ostentam um ar feliz em seus rostos quando ouvem falar da crise no velho continente. Se a Europa está em crise, é porque o capitalismo não funciona. Urge tentar mais uma vez o socialismo.
O ódio à Europa está na primeira frase do Manifesto Comunista. Claro que as esquerdas adoram as cidades, a gastronomia, o luxo europeus. O problema é que os europeus chegaram lá não via marxismo, mas via capitalismo. Seria bem mais fácil, para as viúvas do Kremlin, gostar da Europa se a prosperidade do continente fosse decorrência da doutrina aquela que morreu no século passado.
Ainda este ano, Luís Fernando Verissimo via, no naufrágio do transatlântico Concordia, nas costas italianas, um símbolo da decadência do continente. Calma, companheiro. A Europa precisa ainda decair muito para um dia empatar com o Brasil.
(Falar nisso, repassei outro dia todas as crônicas deste ano do filho do Erico no Estadão. Nenhuma menção, por mínima que fosse, ao mensalão. Até parece que o julgamento da corrupção maior já acontecida no Brasil está ocorrendo na Cochinchina).
Em abril passado, comentei uma notícia insólita publicada pelo jornal. Que muitos holandeses, para enfrentar a crise, estão vendendo o que sobra da comida feita em casa ou freqüentando bares onde se pode levar a própria refeição. Consegue alguém acreditar nisto? Quem vende restos de comida? Para começar, se a comida é escassa, cozinha-se de modo a não sobrar nada. Continuando, restos de comida nunca vão constituir fonte de renda. E quem vai bater de casa em casa para comprar restos de comida?
Mais insólita ainda é a idéia de freqüentar bares onde se pode levar a própria refeição. Se tenho comida em casa, por que iria deslocar-me até um bar para comê-la? Não faz sentido. Que mais não seja, algo o bar vai cobrar-me pelo uso de mesas, toalhas, pratos, talheres. Se me falta dinheiro para comer, por que iria eu encarecer o pouco de comida que me resta? O repórter fala de um bar no qual os clientes trazem sua própria comida, que é aquecida pelos funcionários de graça. Só é preciso pagar pelas bebidas. Até pode ser. Mas se trata de UM bar. Que encontrou uma fórmula de vender bebidas. É de supor-se que os holandeses tenham como aquecer a comida em casa.
Agora, foi Portugal quem entrou na berlinda. Segundo a CartaCapital, o governo português anunciou nesta última quarta-feira um aumento de 4% do imposto de renda em 2013, entre outras medidas do novo pacote de austeridade que substitui o plano anterior de cortes.
Devido a esta política de austeridade para combater a crise, dezenas de moradores de Lisboa procuram formas alternativas para sobreviver. Entre as alternativas está cavar a lama da margem do rio à procura de amêijoas, um molusco conhecido no Brasil por seu nome italiano: vongola (vongole, no plural).
Só o que faltava. A reportagem dá a idéia que amêijoas são moluscos inferiores aos quais se recorre quando bate a fome. Ora, na verdade constituem um dos pontos altos da culinária portuguesa. Amêijoas à Bulhão Pato é um dos pratos mais difundidos em Portugal. E já as comi em uma combinação insólita e deliciosa, o leitão à além-tejana. A reportagem nos traz a foto de uma moça – que de faminta nada tem – juntando amêijoas com um balde na praia. A notícia é da AFP. O redator titula com gosto:
PORTUGUESES DESEMPREGADOS CAÇAM MOLUSCOS À BEIRA DO RIO TEJO
Uma moça solitária na praia, sem mais nem menos, virou portugueses desempregados. A bem da verdade, a fome é crônica na Europa e eu nem havia notado. Desde há muito, os europeus têm apelado aos vôngoles para matar a fome. Mais ainda, na França e Espanha, há muito se come até tripas: as andouilletes, tripes à Caen e callos à madrileña. Quando uma nação recorre a tripas, a situação chegou à calamidade. Eurocêntrico, desde há muito tenho visto – sem perceber – esta trágica realidade. Velhinhos aposentados, pescando lambaris às margens do Sena e do Tevere, para reforçar a panela em casa.
Tanto na Itália como na França, a fome não é destes dias de crise, como podemos supor. Há décadas, italianos e franceses vêm utilizando até porcos e cães para catar trufas na floresta. Não entendo como até hoje CartaCapital não denunciou esta tragédia.
05 de outubro de 2012
janer cristaldo
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