"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 21 de outubro de 2012

OS TRÊS PRATOS DA BALANÇA

Os pensadores da véspera do Renascimento preferiam duas imagens para definir o Estado: a do relógio e a da balança. O Estado pode ser como a maquinaria de um relógio, com suas engrenagens bem lubrificadas, o pêndulo oscilando corretamente para marcar o tempo, e alguém, é claro, para suprir a corda com a energia necessária. Esse é o estado da ordem.

A ordem pode ser imposta pelo despotismo manhoso, por um estado teocrático, pelo terror policial ou pela legitimidade das leis – como deveria ser o estado democrático. Ainda que a etimologia seja a mesma, as leis nunca são absolutamente legítimas ou se fundam no espírito da justiça. Elas jamais são iguais para todos: conforme a denúncia do Abade Seiyès, elas são cúmplices dos privilégios.

Contrapondo-se à idéia do relógio, há a idéia de que o Estado deve ser como a balança, sempre em busca do equilíbrio. Melhor seria imaginá-lo como uma balança de três pratos, cada um deles significando um dos poderes republicanos. O equilíbrio entre os três é o que assegura “a verdadeira justiça”, na qual se assenta a ordem real do estado republicano, conforme o conservador Cícero em seu estudo sobre o tema. De acordo com seu texto, a verdadeira justiça se expressa na lei que assegura o bem estar comum – objetivo final do Estado.

Entre os três poderes do Estado, qual deve prevalecer? Ao restabelecer a idéia romana da República, os intelectuais que pensaram os Estados Unidos, alguns deles homens práticos que viviam da agricultura e do comércio, e outros legítimos representantes do povo comum, como Thomas Payne, decidiram que o poder legislativo prevaleceria sobre os outros dois poderes. Acompanhavam Locke: o parlamento não é um ramo do governo, mas a nação, em seu povo, que – mediante seus delegados – para garantir o Estado, legisla, fiscaliza e julga o poder executivo.

Com um pleito comum – o do cidadão Marbury, nomeado nas últimas horas da presidência Adams para juiz de paz, e cuja posse foi vetada pelo Secretário Madison, por ordem do novo presidente, Jefferson – levado à Suprema Corte (Marbury contra Madison) pelo prejudicado, seu presidente, John Marshall, ao negar o pedido, estabeleceu o direito do alto tribunal de decidir o que é e o que não é constitucional. Esse sistema foi seguido em quase todos os estados modernos, em alguns deles exercido por tribunais que só cuidam da constitucionalidade das leis.

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CONTESTAÇÃO

Não foram poucos, nem privados de autoridade, que contestaram esse poder assumido pela Suprema Corte. Dois deles se destacaram como chefes de Estado: Andrew Jackson, no caso da primeira roubalheira bancária (o famoso Banking Veto), e Franklin Roosevelt, que se confrontou com o alto tribunal, a fim de assegurar a política social do New Deal.

Jackson argumentou que o mesmo juramento de cumprir a Constituição, de acordo com a sua consciência, que Marshall fizera, ele também fizera, e nada assegurava, na Constituição e nos princípios republicanos, que a consciência do juiz fosse maior, ou melhor, do que a dele.
O veto presidencial de Jackson permaneceu e o monopólio do Banco de Filadélfia foi rompido.
Jackson agira em nome do povo trabalhador contra o Congresso, que lhe determinara renovar a patente do banco, e usou o argumento de que o sol e a chuva caiam igualmente sobre os ricos e os pobres, e a República não podia privilegiar uns cidadãos contra os outros.

O confronto entre Roosevelt e a Suprema Corte – então presidida pelo político republicano Charles Hughes, que havia sido nomeado em 1930, pelo presidente Hoover – também se deu na defesa do povo. Tal como ocorrera a Jackson, Roosevelt tomara medidas fortes em defesa do povo (e, assim, do capitalismo, como se veria depois) e Hughes as contestou.

Roosevelt, que dispunha de maioria no Congresso, em 1937, anunciou que tomaria medidas fortes, entre elas a da nomeação de juiz suplementar para cada um daqueles juízes que tivessem mais de 70 anos (nos EUA o cargo é vitalício), o que elevaria o número de membros do tribunal e lhe permitiria maioria. Apenas com a ameaça, Roosevelt conseguiu salvar as medidas sociais mais importantes de seu programa de governo.

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EQUILÍBRIO

Para que um estado republicano tenha equilíbrio é necessário que nenhum dos três poderes avance sobre as prerrogativas dos outros. Mas, conforme as reflexões constitucionais de Publius (pseudônimo comum a Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, em homenagem a Publius Plubícola, criador, com Junus Brutus, da República Romana), no sistema republicano o poder legislativo prevalece naturalmente.

É o poder legislativo que faz as leis e limita, constitucionalmente, as prerrogativas dos outros dois poderes. Sendo assim, é impensável que qualquer um dos outros dois poderes substitua o dever indelegável de legislar do Parlamento. Quando o eleitor vota no parlamentar, é para que ele o represente, não para que transfira aos outros o poder recebido do povo.

Há grande desencanto popular com os deputados e senadores, tendo em vista a fraca legitimidade do mandato de muitos, que ali não representam o povo, e sim, grandes interesses econômicos e corporativos. Isso sem falar na preguiça mental de um grande número de representantes.

Uma das medidas para corrigir essa deformação do estado democrático é a tão esperada e nunca obtida reforma política, que, com o financiamento público das campanhas, atrairá para a atividade política alguns dos milhões de brasileiros honrados e intelectualmente preparados para legislar.

Muitos parecem pensar que o ideal seria trocar de povo, já que o nosso, em seu juízo, não sabe votar. São os ideólogos de uma “democracia perfeita”, onde a “ordem” seja absoluta, como a do mecanismo dos relógios. Foi o que pensaram algumas elites brasileiras em 1964, e ainda não desistiram da idéia.

A experiência histórica nos mostra que é melhor equilibrar os três pratos da balança: que nenhum deles tenha mais peso do que o necessário à República, e nenhum deles deixe de exercer o seu próprio dever. É importante que o Poder Judiciário não se arrogue o direito de árbitro político, nem de legislador soberano. Limite-se a julgar, conforme as leis e o testemunho das provas.

Assim, tem razão o romano Cícero, ao estabelecer, como base real da ordem do Estado, a verdadeira justiça, que se expresse na lei e assegure o bem-estar a todos.

21 de outubro de 2012
Mauro Santayana

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