Vejamos aqui, que novidades há, neste que espero ser um domingo ensolarado e
ameno, em que o distinto leitor e a cativante leitora (cartas sobre como estas
designações são machistas devem, por caridade, ser encaminhadas ao editor)
possam tirar muito proveito do que ainda nos dadiva a Natureza? Não muitas, acho
eu.
Talvez as novidades mesmo estejam nas páginas de medicina ou ciência dos jornais, onde sempre anunciam o sensacional estudo que desmente outro sensacional estudo de anos atrás, como acontece principalmente em relação a alimentos.
A notícia mais recente, se não me trai outra vez a vil memória, é a respeito do camarão. Parece que aboliram a vingança do camarão. A vingança do camarão estava em que o freguês podia comê-lo, mas, em compensação, o colesterol entrava em órbita. Agora não mais, pelo menos até realizarem novo estudo. Periodicamente, a verdade científica vira mentira e, pensando bem, não há grandes novidades nem nas páginas de ciência.
E, infelizmente, não são tampouco grande novidade os acontecimentos terrificantes em hospitais. De cabeça, lembro agora o da senhora que mataram, injetando-lhe café com leite na veia. Anteriormente, em outro hospital, um paciente morreu, após lhe darem sopa também por via endovenosa.
Mataram um terceiro, trocando por glicerina o soro que receberia. Administraram a recém-nascidos remédio contra verrugas por via oral, causando lesões horrendas e permanentes. Amputaram por engano o braço de um bebê.
E, como é de nossa prática de povo cordial, tolerante e compreensivo, não vai haver responsáveis em qualquer desses casos e de inúmeros outros como eles, muito menos reparação para as vítimas. Nenhuma novidade.
No setor das grandes questões nacionais, o julgamento do mensalão se aproxima do fim, grande parte do suspense inicial já se foi e agora o que se espera é, no interessante dizer do comentarista que escutei no rádio de um táxi, a customização das penas, ou seja, a definição das punições que receberá cada um dos réus condenados, por sinistro desígnio da zelite.
Acho difícil haver um problema que não tenha sido causado pela ação da zelite, é um grande achado. E talvez nele esteja, afinal, uma novidade.
Não muito importante, quiçá, mas, na falta de outra, quebra o galho.
Creio que já podemos cogitar da inclusão de "zelite" nos dicionários como mais um coletivo da lavra popular, com a observação de que por enquanto leva o predicado ao plural, mas no futuro talvez perca essa peculiaridade. Acredito que logo estaremos dizendo coisas como "a zelite não vai aceitar" ou "ele pertence à zelite paulista". Não deixa de ser uma contribuição ao vocabulário da perseguida língua portuguesa.
Resta, porém, definir direito o que é zelite. Não é muito fácil, pelo menos para quem acompanha o noticiário brasileiro. Por enquanto, lembra um pouco o que sucede com a palavra "democracia" e cognatas. Qualquer regime - e tem sido assim em toda a História contemporânea - pode apregoar ser uma democracia.
A Alemanha Oriental era a República Democrática Alemã e a Coreia do Norte é oficialmente a República Democrática Popular da Coreia. Fenômeno semelhante acontece com a zelite, na direção oposta. É desejável ser democrático e é odioso ser da zelite; elogia-se com o primeiro e xinga-se com a segunda.
Além disso, a zelite vem desempenhando um papel comparável ao dos comunistas de antigamente. No Brasil, com a notável exceção de Oscar Niemeyer e Zecamunista, sofremos de uma lastimável escassez de comunistas sobre os quais fazer recair a culpa de tudo o que diabo apronta.
Os comunistas, como testemunharão os mais velhos, tinham muita serventia e até moças de conduta avançadex, como se dizia, eram fruto da doutrinação dos comunistas.
A zelite e seu braço direito, a imprensa venal, corrupta e a serviço de interesses tenebrosos, vêm preenchendo essa lacuna, tão aflitiva para quem não tem nada de substancial a dizer em sua defesa, a não ser, talvez, o inconfessável.
Mas que diabo é a zelite? Sabemos que a palavra vem de "elite". No caso, elite política e econômica. Imagina-se que a elite política seja composta por quem está no poder. Presidente da República é zelite política, assim como os que exercem alguma fatia do poder. Que outro critério haveria? Ou a elite política está diretamente no governo ou o exerce mediante fantoches e paus-mandados, caso em que, ao denunciar a zelite, estaria denunciando a si mesma.
Qual a zelite que se opõe aos que estão no poder? A zelite financeira está com eles, os bancos prosperando e ganhando dinheiro como nunca, como já comentou o próprio ex-presidente Lula. A zelite empresarial também não parece descontente, a não ser quanto a um ponto ocasional ou outro. A zelite das empreiteiras, então, nem se fala.
A zelite artístico-intelectual, além de não ter poder concreto para nada, não costuma pensar uniformemente. Não me ocorre nenhuma outra zelite à qual se possa atribuir a culpa dos infortúnios enfrentados pelos réus do mensalão. Quem aprontou a trapalhada foram eles, mas a culpa não é do despreparo e dos erros deles, é da zelite.
A palavra já cria raízes em nossa terminologia política e, ao que tudo indica, terá vida longa, porque serve para fingir que se está explicando alguma coisa. Foi pegado com a boca na botija ou mentindo deslavadamente, os planos deram errado? Distribua uma nota ou faça um discurso, mostrando como a responsável é a zelite.
O pessoal ganha, chega ao poder já pela terceira vez, está no topo da zelite governante e, no entanto, a zelite, até mesmo através do voto, fica atrapalhando. É por essas e outras que dá vontade de arrolhar a zelite e sua imprensa e estabelecer aqui uma verdadeira democracia, igual à da Coreia do Norte.
21 de outubro de 2012
JOÃO UBALDO RIBEIRO - O Estado de S.Paulo
Talvez as novidades mesmo estejam nas páginas de medicina ou ciência dos jornais, onde sempre anunciam o sensacional estudo que desmente outro sensacional estudo de anos atrás, como acontece principalmente em relação a alimentos.
A notícia mais recente, se não me trai outra vez a vil memória, é a respeito do camarão. Parece que aboliram a vingança do camarão. A vingança do camarão estava em que o freguês podia comê-lo, mas, em compensação, o colesterol entrava em órbita. Agora não mais, pelo menos até realizarem novo estudo. Periodicamente, a verdade científica vira mentira e, pensando bem, não há grandes novidades nem nas páginas de ciência.
E, infelizmente, não são tampouco grande novidade os acontecimentos terrificantes em hospitais. De cabeça, lembro agora o da senhora que mataram, injetando-lhe café com leite na veia. Anteriormente, em outro hospital, um paciente morreu, após lhe darem sopa também por via endovenosa.
Mataram um terceiro, trocando por glicerina o soro que receberia. Administraram a recém-nascidos remédio contra verrugas por via oral, causando lesões horrendas e permanentes. Amputaram por engano o braço de um bebê.
E, como é de nossa prática de povo cordial, tolerante e compreensivo, não vai haver responsáveis em qualquer desses casos e de inúmeros outros como eles, muito menos reparação para as vítimas. Nenhuma novidade.
No setor das grandes questões nacionais, o julgamento do mensalão se aproxima do fim, grande parte do suspense inicial já se foi e agora o que se espera é, no interessante dizer do comentarista que escutei no rádio de um táxi, a customização das penas, ou seja, a definição das punições que receberá cada um dos réus condenados, por sinistro desígnio da zelite.
Acho difícil haver um problema que não tenha sido causado pela ação da zelite, é um grande achado. E talvez nele esteja, afinal, uma novidade.
Não muito importante, quiçá, mas, na falta de outra, quebra o galho.
Creio que já podemos cogitar da inclusão de "zelite" nos dicionários como mais um coletivo da lavra popular, com a observação de que por enquanto leva o predicado ao plural, mas no futuro talvez perca essa peculiaridade. Acredito que logo estaremos dizendo coisas como "a zelite não vai aceitar" ou "ele pertence à zelite paulista". Não deixa de ser uma contribuição ao vocabulário da perseguida língua portuguesa.
Resta, porém, definir direito o que é zelite. Não é muito fácil, pelo menos para quem acompanha o noticiário brasileiro. Por enquanto, lembra um pouco o que sucede com a palavra "democracia" e cognatas. Qualquer regime - e tem sido assim em toda a História contemporânea - pode apregoar ser uma democracia.
A Alemanha Oriental era a República Democrática Alemã e a Coreia do Norte é oficialmente a República Democrática Popular da Coreia. Fenômeno semelhante acontece com a zelite, na direção oposta. É desejável ser democrático e é odioso ser da zelite; elogia-se com o primeiro e xinga-se com a segunda.
Além disso, a zelite vem desempenhando um papel comparável ao dos comunistas de antigamente. No Brasil, com a notável exceção de Oscar Niemeyer e Zecamunista, sofremos de uma lastimável escassez de comunistas sobre os quais fazer recair a culpa de tudo o que diabo apronta.
Os comunistas, como testemunharão os mais velhos, tinham muita serventia e até moças de conduta avançadex, como se dizia, eram fruto da doutrinação dos comunistas.
A zelite e seu braço direito, a imprensa venal, corrupta e a serviço de interesses tenebrosos, vêm preenchendo essa lacuna, tão aflitiva para quem não tem nada de substancial a dizer em sua defesa, a não ser, talvez, o inconfessável.
Mas que diabo é a zelite? Sabemos que a palavra vem de "elite". No caso, elite política e econômica. Imagina-se que a elite política seja composta por quem está no poder. Presidente da República é zelite política, assim como os que exercem alguma fatia do poder. Que outro critério haveria? Ou a elite política está diretamente no governo ou o exerce mediante fantoches e paus-mandados, caso em que, ao denunciar a zelite, estaria denunciando a si mesma.
Qual a zelite que se opõe aos que estão no poder? A zelite financeira está com eles, os bancos prosperando e ganhando dinheiro como nunca, como já comentou o próprio ex-presidente Lula. A zelite empresarial também não parece descontente, a não ser quanto a um ponto ocasional ou outro. A zelite das empreiteiras, então, nem se fala.
A zelite artístico-intelectual, além de não ter poder concreto para nada, não costuma pensar uniformemente. Não me ocorre nenhuma outra zelite à qual se possa atribuir a culpa dos infortúnios enfrentados pelos réus do mensalão. Quem aprontou a trapalhada foram eles, mas a culpa não é do despreparo e dos erros deles, é da zelite.
A palavra já cria raízes em nossa terminologia política e, ao que tudo indica, terá vida longa, porque serve para fingir que se está explicando alguma coisa. Foi pegado com a boca na botija ou mentindo deslavadamente, os planos deram errado? Distribua uma nota ou faça um discurso, mostrando como a responsável é a zelite.
O pessoal ganha, chega ao poder já pela terceira vez, está no topo da zelite governante e, no entanto, a zelite, até mesmo através do voto, fica atrapalhando. É por essas e outras que dá vontade de arrolhar a zelite e sua imprensa e estabelecer aqui uma verdadeira democracia, igual à da Coreia do Norte.
21 de outubro de 2012
JOÃO UBALDO RIBEIRO - O Estado de S.Paulo
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