Esse título não é compatível com a decisão do STJ – dirão os ministros da
Terceira Turma que recentemente obrigaram um pai a pagar indenização à sua filha
por abandono afetivo.
Mas é, sim. Embora tenha havido um enorme esforço dos prolatores do voto para mascarar o cerne da questão posta em julgamento, não foi possível obscurecer a verdade ali estampada de que o tema sub judice apenas dizia respeito ao afeto ou à falta dele.
O dever de cuidar, como salientam os ministros, se não é material, consiste então nas “obrigações paternas” de dedicação e de afeto. Por isso, sem querer, o julgado tornou mais convincente um antigo adágio popular (politicamente incorreto) de que “o dinheiro compra até amor verdadeiro”.
Os ministros do STJ pretenderam, com certa onipotência, compensar ressentimento com verba indenizatória. Assim, a pessoa que se sente rejeitada pelos pais, ou por um deles, e tem ciúmes dos seus irmãos, mais queridos, não deve procurar socorro para os seus tormentos em algum livro de auto-ajuda, ou com um psiquiatra, um psicólogo, quem sabe uma terapia de apoio, talvez um sacerdote, até mesmo um amigo. Não, melhor buscar a Justiça que dá conforto aos aflitos em troca de uma boa soma de reais.
Freud e Jung ficariam pasmos com uma solução tão simples e frustrados por não terem pensado nesse singelo e pragmático remédio para a cura dos males da alma.
O Superior Tribunal de Justiça parece trazer também inovações inéditas para o Direito de Família; na petição de dissolução do matrimônio não se irá regular somente o direito de visita, mas o dever de visita, isto sem olvido do tratamento equânime para os filhos; ou seja, os mesmos carinhos, os mesmos sorrisos, a mesma atenção e cuidado.
Não importa se prepondera o afeto por um dos filhos. Os pais, ainda que lhes custe, hão de ser fingidores – “tire a sua dor do caminho que quero passar com o meu sorriso amarelo”. Sequer se sensibilizaram os ministros com o exemplo do próprio Cristo que amava um dos seus discípulos (Thiago) mais do que aos outros.
Nesse mesmo compasso, o pai, ou a mãe, que doa para um dos filhos, em detrimento dos demais, a parte disponível dos seus bens, será condenado pelo STJ por parcialidade injustificada. A ingratidão recairá sobre o doador.
Os ministros acreditam que a sua decisão humanizou a Justiça. Ledo engano. A decisão do Tribunal prostituiu o sentimento, vulgarizou a dor, transformou em mercadoria a tristeza.
A presença paterna não é vacina contra o desamor. O dever de cuidar não é suprido pela farsa. Um mero desvio no olhar é suficiente para rasgar o peito de uma criança para o resto da sua vida.
A solene expressão usada pelo Tribunal para justificar a sua decisão, “dever de cuidar”, não significa absolutamente nada nas relações familiares. Cabe esse dever às babás, às professoras, às enfermeiras, aos bombeiros, aos guarda-vidas, aos policiais etc.
Para os pais, fica a esperança do zelo, mas só pelo desvelo, do amor incondicional, do afeto sem mentira ou subterfúgio. O ato de cuidar vem de dentro, emerge naturalmente, despercebido, sem pressão, sem coerção, sem uma lágrima de esforço. O gesto de cuidar só se legitima quando não há nele, embutido, o dever.
Milhões de crianças são criados apenas por sua mãe, ou apenas por seu pai, por que os respectivos companheiros se escafederam pelos caminhos e esconderijos da terra. Não é só. Filhos e pais abandonam e são abandonados uns pelos outros. Essas são tragédias do mundo. Para isso não há reparação, mas superação e comiseração.
A Justiça deve compartilhar o seu choro com o choro da humanidade. Ela não tem o poder de expurgar dos homens o seu desencanto com as pessoas do mesmo gene. A sua atitude, até louvável, irá mais agravar o conflito do que saná-lo.
A decisão de que aqui se cuida não buscou a conciliação, ao contrário, perpetuou o distanciamento entre filha e pai. Todos perderam; o pai, que pagou, e, por isso, de mais longe, menos ainda reconhece a filha, e esta, que recebeu uma moeda como compensação para o seu sentimento de mágoa, logo irá perceber que trocou um coração doído por outro sem esperança. A Justiça perde por que presumiu estar semeando o futuro, mas colheu o atraso.
As crianças de todo o mundo, depois de crescerem, transformam-se em adultos bons ou maus, magníficos ou trapaceiros, felizes ou infelizes, tudo por causa dos pais ou independentemente deles. Ninguém sabe. Nada é seguro. Ninguém imagina por que um de dois irmãos vira padre e o outro bandido. O homem tem a pretensão de desvendar o mundo para depois submetê-lo ou corrigi-lo à sua vontade, porém o mundo, sabiamente, esconde os seus mistérios.
Recentemente, em decisão infame, uma das Câmaras do STJ absolveu um cidadão que estuprara três meninas, todas de doze anos, sob o argumento de que não se caracterizava o crime tendo em mira que as jovens eram meretrizes contumazes, conhecidas e reconhecidas, e não seria legítimo punir alguém só por que devorava lixo.
Fica aqui apenas uma pergunta: a quem caberá o “dever de cuidar” dessas três “pivetes” e, também, de compensá-las, pecuniariamente, como defende a Terceira Câmara do Tribunal? Estando elas na companhia ou não de seus pais, é razoável sugerir que, neste específico caso, talvez se deva abrir uma exceção para atribuir tais ônus aos ministros de mãos lavadas, responsáveis pela absolvição do estuprador.
Ah, Brasil hipócrita, até quando?
Francisco de Assis Chagas de Mello e Silva
19 de maio de 2012
Mas é, sim. Embora tenha havido um enorme esforço dos prolatores do voto para mascarar o cerne da questão posta em julgamento, não foi possível obscurecer a verdade ali estampada de que o tema sub judice apenas dizia respeito ao afeto ou à falta dele.
O dever de cuidar, como salientam os ministros, se não é material, consiste então nas “obrigações paternas” de dedicação e de afeto. Por isso, sem querer, o julgado tornou mais convincente um antigo adágio popular (politicamente incorreto) de que “o dinheiro compra até amor verdadeiro”.
Os ministros do STJ pretenderam, com certa onipotência, compensar ressentimento com verba indenizatória. Assim, a pessoa que se sente rejeitada pelos pais, ou por um deles, e tem ciúmes dos seus irmãos, mais queridos, não deve procurar socorro para os seus tormentos em algum livro de auto-ajuda, ou com um psiquiatra, um psicólogo, quem sabe uma terapia de apoio, talvez um sacerdote, até mesmo um amigo. Não, melhor buscar a Justiça que dá conforto aos aflitos em troca de uma boa soma de reais.
Freud e Jung ficariam pasmos com uma solução tão simples e frustrados por não terem pensado nesse singelo e pragmático remédio para a cura dos males da alma.
O Superior Tribunal de Justiça parece trazer também inovações inéditas para o Direito de Família; na petição de dissolução do matrimônio não se irá regular somente o direito de visita, mas o dever de visita, isto sem olvido do tratamento equânime para os filhos; ou seja, os mesmos carinhos, os mesmos sorrisos, a mesma atenção e cuidado.
Não importa se prepondera o afeto por um dos filhos. Os pais, ainda que lhes custe, hão de ser fingidores – “tire a sua dor do caminho que quero passar com o meu sorriso amarelo”. Sequer se sensibilizaram os ministros com o exemplo do próprio Cristo que amava um dos seus discípulos (Thiago) mais do que aos outros.
Nesse mesmo compasso, o pai, ou a mãe, que doa para um dos filhos, em detrimento dos demais, a parte disponível dos seus bens, será condenado pelo STJ por parcialidade injustificada. A ingratidão recairá sobre o doador.
Os ministros acreditam que a sua decisão humanizou a Justiça. Ledo engano. A decisão do Tribunal prostituiu o sentimento, vulgarizou a dor, transformou em mercadoria a tristeza.
A presença paterna não é vacina contra o desamor. O dever de cuidar não é suprido pela farsa. Um mero desvio no olhar é suficiente para rasgar o peito de uma criança para o resto da sua vida.
A solene expressão usada pelo Tribunal para justificar a sua decisão, “dever de cuidar”, não significa absolutamente nada nas relações familiares. Cabe esse dever às babás, às professoras, às enfermeiras, aos bombeiros, aos guarda-vidas, aos policiais etc.
Para os pais, fica a esperança do zelo, mas só pelo desvelo, do amor incondicional, do afeto sem mentira ou subterfúgio. O ato de cuidar vem de dentro, emerge naturalmente, despercebido, sem pressão, sem coerção, sem uma lágrima de esforço. O gesto de cuidar só se legitima quando não há nele, embutido, o dever.
Milhões de crianças são criados apenas por sua mãe, ou apenas por seu pai, por que os respectivos companheiros se escafederam pelos caminhos e esconderijos da terra. Não é só. Filhos e pais abandonam e são abandonados uns pelos outros. Essas são tragédias do mundo. Para isso não há reparação, mas superação e comiseração.
A Justiça deve compartilhar o seu choro com o choro da humanidade. Ela não tem o poder de expurgar dos homens o seu desencanto com as pessoas do mesmo gene. A sua atitude, até louvável, irá mais agravar o conflito do que saná-lo.
A decisão de que aqui se cuida não buscou a conciliação, ao contrário, perpetuou o distanciamento entre filha e pai. Todos perderam; o pai, que pagou, e, por isso, de mais longe, menos ainda reconhece a filha, e esta, que recebeu uma moeda como compensação para o seu sentimento de mágoa, logo irá perceber que trocou um coração doído por outro sem esperança. A Justiça perde por que presumiu estar semeando o futuro, mas colheu o atraso.
As crianças de todo o mundo, depois de crescerem, transformam-se em adultos bons ou maus, magníficos ou trapaceiros, felizes ou infelizes, tudo por causa dos pais ou independentemente deles. Ninguém sabe. Nada é seguro. Ninguém imagina por que um de dois irmãos vira padre e o outro bandido. O homem tem a pretensão de desvendar o mundo para depois submetê-lo ou corrigi-lo à sua vontade, porém o mundo, sabiamente, esconde os seus mistérios.
Recentemente, em decisão infame, uma das Câmaras do STJ absolveu um cidadão que estuprara três meninas, todas de doze anos, sob o argumento de que não se caracterizava o crime tendo em mira que as jovens eram meretrizes contumazes, conhecidas e reconhecidas, e não seria legítimo punir alguém só por que devorava lixo.
Fica aqui apenas uma pergunta: a quem caberá o “dever de cuidar” dessas três “pivetes” e, também, de compensá-las, pecuniariamente, como defende a Terceira Câmara do Tribunal? Estando elas na companhia ou não de seus pais, é razoável sugerir que, neste específico caso, talvez se deva abrir uma exceção para atribuir tais ônus aos ministros de mãos lavadas, responsáveis pela absolvição do estuprador.
Ah, Brasil hipócrita, até quando?
Francisco de Assis Chagas de Mello e Silva
19 de maio de 2012
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