Quando ouço falar em cultura, puxo o revólver – teria dito Goebbels. De minha parte, quando ouço falar em cultura nacional, tenho vontade de chamar a polícia. Não chamo porque não vai adiantar nada mesmo. Ainda há pouco, eu falava das corrupções perfeitamente legais. Aquelas das quais ninguém fala, encontradiças no mundo acadêmico e artístico. Artes, no Brasil, virou uma questão de Estado.
Há milhares de escritores que ninguém leria – a começar pelo Machadinho – vendendo milhões de exemplares porque o Estado os empurra nos currículos. Mais milhares de atores encenando peças graças à lei Rouanet. Mas dezenas, senão centenas de cineastas fazendo filmes com o dinheiro do contribuinte. Os filmes não precisam vender. Não precisam nem mesmo ser vistos. O que importa é que o cineasta receba o seu. Claro que os beneficiários de tais benesses não podem dizer a menor palavrinha contra o governo. Stalin sabia disto e cultivava carinhosamente seu plantel de escritores e cineastas.
Leis para isso é o que não falta: lei Rouanet, Lei Mendonça, lei do Audiovisual, Fazcultura, e por aí vai. Por cultura, de modo geral, entendem os pedintes espetáculos, filmes ou publicações ligados ao show business, todos com finalidades lucrativas. É como se o artista - ou agente cultural, como parece soar melhor - mandasse um recado ao contribuinte: "em nome da cultura, me repassa teus impostos, que eu quero passar bem".
Fernando Collor de Mello, o Breve, pode não ter agradado as estruturas nacionais de poder. Mas no dia de sua posse, em 1990, deu uma grande alegria, não só a mim como a todos os contribuintes do país: extinguiu a Embrafilme. De uma penada, acabou com a festa de um setor privado que adora o conforto garantido com o dinheiro do Estado. Isto é, com o dinheiro nosso, já que Estado nada produz e nada ganha. Entre outras, esta terá sido uma das razões de sua queda. A gigolagem cinematográfica permaneceu quatro anos em jejum, mas não perdeu a vocação. Em 1994, através da Lei do Audiovisual, meteram de novo a mão no bolso de quem ganha honestamente seu sustento. O mecenato é tão atraente, que até as redes televisivas já pensam em também meter a mão nesse bolso inexaurível, o do povo, para produzir suas baixarias.
No governo Lula, os gigolôs se tornaram ainda mais ousados. Através do decreto 4.945, publicado na calada do réveillon de 2003, cada uma das 1800 salas de exibição do país foram obrigadas a dedicar 63 dias de sua programação ao cinema nacional. Em 2003, os dias de exibição obrigatória eram 35. A gigolagem conseguiu revogar essa reacionária lei da oferta e da procura para enfiar goela abaixo do espectador seus abacaxis. O que sobra do mercado é reserva dos abacaxis americanos. Só por milagre você hoje consegue ver um filme alemão, italiano ou finlandês.
Em fevereiro de 2010, comentei o projeto de lei do senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que estava então prestes a ser examinado na Comissão de Educação do Senado, propondo que os estudantes brasileiros das escolas públicas e privadas assistissem no período de um mês a pelos menos duas horas de filmes nacionais. A medida é de caráter obrigatório.
Rosalba Ciarlini, senadora do DEM, partido tão venal como o PT, deu na época dois pareceres totalmente diferentes sobre o projeto. Em maio daquele ano, defendeu sua rejeição. “Esse tipo de norma, por sua rigidez, conquanto possa servir a interesses diversos e estranhos à escola, pouco ou nada contribui para a melhoria do ensino. Ao contrário, pode diminuir a margem de autonomia e de flexibilidade dos estabelecimentos de ensino".
Em novembro, por ocasião do lançamento de O Filho do Brasil, hagiológio ao analfabeto-mor, a senadora só teve elogios para a proposta, sob a alegação de que a obrigatoriedade das escolas exibirem filmes nacionais "será benéfica para ambos, estudantes e indústria cinematográfica. A produção nacional, com raras exceções, tem qualidade plástica e conteudista irretorquível, diversidade temática e de público-alvo". O que a senadora propunha, no fundo, era a exibição obrigatória de uma ficção sobre o presidente mais analfabeto, mais incoerente, mais mentiroso, mais corrupto e o maior acobertador da corrupção que o Brasil jamais teve em seus dias de república. Mesmo assim, o filme de louvor a Lula deu com os burros n'água.
Pois bem, o projeto infame de Cristóvão Buarque foi agora examinado na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados. E acaba de ser aprovado. Segue para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara. Onde obviamente será também aprovado.
As artes nacionais, de tão excelentes, vivem hoje de esmolas do poder. Tanto escritores como cineastas, artistas plásticos, atores de teatros, são humildes pedintes de verbas governamentais, que estendem o chapéu ao Planalto. Desde há quatro décadas, não assisto cinema nem teatro nacionais. Poderia eventualmente assistir. Mas além de ingresso gratuito, quero limusine na porta de casa. Afinal, se há anos venho financiando estes parasitas com meus impostos, sem limusine nada feito. E mesmo com limusine, sei lá! Tampouco leio autor cuja leitura seja obrigatória nas escolas. Quer dizer: não leio praticamente nada da literatura que se faz no Brasilejan.
Esta corrupção, com patrocínio do Legislativo, jornal algum denuncia. Os jornais são cúmplices. Suas páginas abrigam e louvam escritores, atores e artistas que são gigolôs do poder. Que nada valem por suas obras e que só são conhecidos porque impostos a um público indefeso. A União Soviética morreu há duas décadas. E o Brasil continua financiando escritores e artistas venais, como faziam os comunistas no século passado.
A meu ver, o projeto do senador Cristovam Buarque é tímido. Bem que podia ir mais longe. Mais duas horas obrigatórias de teatro nacional. Mais outras duas de Rede Globo. Mais outras tantas de Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil. Mais duas de Xuxa e Sílvio Santos. E mais duas – por que não? – de Edir Macedo e R. R. Soares. Isto é Brasil. Isto é brasilidade. Isto é cultura nacional.
Nem só negros querem cotas. Cineasta também é gente.
19 de maio de 2012
janer cristaldo
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