No próximo dia 20 de março transcorrerá o 10º aniversário do colossal desastre estratégico, militar e político do governo do ex-presidente George W. Bush: a invasão do Iraque por tropas americanas em 2003. Trata-se de uma efeméride amarga para os Estados Unidos. A retirada das últimas unidades de combate, oito anos após o triunfal assalto a Bagdá, se deu na calada da noite, de fininho, sem olhar para trás. Só houve perdas. Foram 4.400 os soldados mortos em combate, sequelas em todos os veios da vida americana e será de mais de US$ 3 trilhões a conta final da empreitada.
Sem falar no rombo moral provocado na nação, que minimizou, tolerou ou aceitou o recurso à tortura em nome de uma cruzada civilizatória em terra estrangeira. Essa conta, ao contrário do que gostariam os mandantes de hoje, permanece em aberto. É assim em todos os países com porões ainda escuros, mas a História mostra que faxinas superficiais não resistem ao tempo.
Exatamente quatro anos atrás, com Barack Obama recém-empossado na Casa Branca, o Departamento de Justiça foi obrigado pela ONG União das Liberdades Civis a liberar alguns memorandos da era Bush autorizando as polêmicas “técnicas duras de interrogatório”.
Obama já havia proibido o recurso a esses procedimentos e acreditou poder colocar uma pá no assunto. Seguir em frente. No dia da liberação dos memorandos, declarou: “Atravessamos um sombrio e doloroso capítulo de nossa história”, disse à época, “mas não ganharemos nada se gastarmos tempo e energia apontando culpados do passado”.
Não é tão simples assim. Esse tipo de passado costuma reaparecer sem pressa, fica rondando. Um levantamento ainda sigiloso de seis mil páginas sobre detenções e interrogatórios na era Bush, produzido recentemente pela Comissão de Inteligência do Senado, concluiu que durante anos agentes da CIA iludiram o Executivo, o Legislativo e o Judiciário sobre as técnicas que usavam em prisioneiros suspeitos de serem terroristas.
Passado incômodo para John Brennan, que esta semana foi confirmado como novo diretor da CIA. Brennan trabalha na agência há quase um quarto de século, ocupou dois cargos de combate ao terrorismo no governo Bush e foi o responsável pelo briefing diário de 20 agências de inteligência americanas. No primeiro mandato de Obama foi seu assessor para assuntos de segurança nacional e o arquiteto da atual política de eliminação seletiva de terroristas.
Apesar de biografia tão imbricada às práticas adotadas pela CIA, o novo diretor declarou desconhecer os fatos listados no relatório. “Não sei qual é a verdade. Preciso me inteirar dos fatos com cuidado e ver qual a resposta da agência”, declarou durante sua sabatina no Capitólio.
Tem mais “passado” batendo às portas do presente neste 10º aniversário da guerra. Esta semana, o jornal britânico “The Guardian” publicou o resultado de uma investigação que levou quinze meses para ser concluída e contou com a colaboração da BBC Arabic. Ela revela a existência de um elo entre o Pentágono e os centros de detenção e tortura que funcionaram no Iraque durante a guerra.
O elo se chama James Steele. Veterano das Forças Especiais que conduziram as chamadas “guerras sujas” dos Estados Unidos na América Central dos anos 1980, Steele se movimentava nas sombras de sua aposentadoria de coronel quando foi pinçado pelo secretário de Defesa Donald Rumsfeld para mudar o curso do insucesso americano no Iraque. Sua missão: montar, financiar e supervisionar comandos paramilitares iraquianos capazes de impor o medo, obter informações e acabar com a insurreição contra a ocupação dos Estados Unidos.
Em El Salvador, Steele já havia cumprido missão semelhante com grande sucesso, comandando unidades locais que se transformaram rapidamente em esquadrões da morte.
Ao término do conflito, havia 17 mil civis e guerrilheiros mortos e um milhão de refugiados num país de pouco mais de 6 milhões de habitantes.
Steele aportou em Bagdá como “Consultor para Assuntos de Energia”. Seus despachos confidenciais para Rumsfeld eram repassados ao presidente Bush e ao vice Cheney, que naquele ano de 2004 corriam o risco de não se reeleger se a guerra no Iraque degringolasse. A prioridade passou a ser uma só: evitar a qualquer custo que o claudicante governo provisório iraquiano fosse derrotado pela insurreição.
Em pouco tempo, perto de 15 centros de interrogatório clandestino operados pelas milícias paramilitares começaram a funcionar. Steele tinha acesso a todas essas unidades.
Além dele, outro coronel da reserva, James Coffman, também tinha entrada livre nos centros. Coffman era o principal assessor do general David Petraeus, comandante das operações no Iraque na era Bush, diretor da CIA no governo Obama e recentemente envolvido em ruidoso e ruinoso triângulo amoroso que o jogou na aposentadoria.
Oito anos atrás, o repórter do “New York Times” Peter Maas e o fotógrafo Gilles Peress haviam publicado um longo e fundamentado artigo sugerindo a cumplicidade de Steele com o que ocorria nos centros de interrogatório montados por ele. Testemunharam, inclusive, um filete de sangue ainda escorrendo de uma das mesas da sala onde foram recebidos pelo americano.
Mas em 2005 a opinião pública dos Estados Unidos ainda não queria ouvir relatos desse tipo. O artigo caiu no vazio, e Steele, encerrada sua missão no Iraque, retornou condecorado ao Texas, de onde administra ocasionais palestras sobre combate ao terrorismo.
Agora, com o relatório do Senado e a investigação do “Guardian”, começa a ser mais difícil colocar o gênio de volta na garrafa. A reportagem do jornal londrino veio acrescida de um documentário de 51 minutos com entrevistas de vítimas e testemunhas daqueles porões, além de depoimentos de parceiros daqueles tempos. Esse passado sombrio, do qual só apareceram pontículas até agora, não ronda apenas o presente. É a autoridade moral futura dos Estados Unidos que está atrelada a ele.
11 de março de 2013
Dorrit Harazim é jornalista
O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário