QUEM É ESSE CARA?
Um cara reservado, generoso, que ri de si – e, após uma fase difícil, feliz. No embalo de Esse Cara
Sou Eu, Roberto Carlos enfrenta o TOC, curte a solteirice e persegue novos sucessos
Roberto Carlos adora seus carros: quando compra um, beija o capô. A última aquisição, de junho de 2012, é um Lamborghini Gallardo LP 570-4 Spyder Performante, branco e conversível. Vale 1,5 milhão de reais e chega a 324 km/h, mas é mais fácil vê-lo parado nos sinais no bairro da Urca, no Rio de Janeiro, no trajeto entre a cobertura e o estúdio do Rei.
A paixão automobilística, porém, não se resume a modelos de luxo. Em São Paulo, ele circula em um Escort Guarujá de 1993 - 6 792 reais na tabela Fipe. Sua frota, de tamanho não divulgado, inclui também dois Audi R8 (um azul e um vermelho), um Fusca 1965 (seu primeiro zero-quilômetro) e um calhambeque reformado por Emerson Fittipaldi.
Mas não se trata de uma coleção. Ele simplesmente não consegue se desfazer dos carros que compra: mantém, basicamente, todos os que adquiriu até hoje.
É tentador, baseado em uma curiosidade como essa, traçar um perfil psicológico que amarre e explique todas as facetas de Roberto Carlos, que fracassou na bossa nova e triunfou no rock, compôs temas para motéis e criou hinos para missas, frustra velhos críticos e inspira novos músicos, estreou no rádio aos 9 anos e agora, com quase 72, é líder das paradas com um hit em que afirma: Esse cara sou eu. Foram 2 milhões de cópias vendidas e 700 mil downloads legais em plena era da pirataria.
Sua vida pessoal parece um contrapeso ao sucesso. A perna direita foi esmagada por um trem aos 6 anos, seu filho nasceu com deficiência visual, a primeira e a terceira esposa morreram de câncer e sua enteada, Ana Paula, que ele criou desde os 3, foi vítima de um ataque cardíaco em 2011.
Sem falar no obstáculo que enfrenta diariamente: o TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), que faz com que só vista azul ou branco, saia sempre pela mesma porta por onde entrou e tenha excluído de seu repertório canções com palavras consideradas negativas.
Tudo isso faz com que ele desperte uma curiosidade sem paralelos na história da cultura pop brasileira. Uma curiosidade que ele não se preocupa em satisfazer. Você nunca vai ver Roberto Carlos abrindo sua casa para uma revista de celebridades, trocando beijos na balada, opinando sobre o mensalão ou reclamando da campanha do Vasco da Gama – time para o qual torce com moderação.
Mas, se você pretende saber quem é esse cara, há quem possa lhe dizer – ao menos, dar uma ideia.
Seus filhos, confidentes, novos e antigos parceiros traçam o retrato de um sujeito extremamente reservado, generoso e talentoso. Cheio de manias, mas capaz de rir delas. E que finalmente supera a fase mais difícil que já enfrentou.
PRECISO ACABAR LOGO COM ISSO
Só agora, 12 anos depois, Roberto está saindo do luto pela morte de sua terceira esposa, Maria Rita. Separado em 1989 da segunda, Miryan Rios, e viúvo em 1990 da primeira, Nice Rossi, ele viveu com Maria Rita entre 1991 e 1999. Roberto diz que nunca amou tanto alguém. Sua perda aprofundou as obsessões decorrentes do TOC, tendo impacto na sua vida pessoal e profissional. Ainda mais isolado do que o normal, não fazia mais shows e não conseguia compor.
Quem acompanhou esse período de perto foi seu filho, Dudu Braga. Batizado de Roberto Carlos Braga II (daí Segundinho, e daí Dudu), ele nasceu em 1969 com glaucoma congênito e ficou praticamente cego aos 22 anos – o que não o impediu de aprender a surfar e tentar ser cantor (“Eu era uma porcaria”, admite o herdeiro).
Hoje, é radialista. Em 2000, com seus 5% de visão do olho esquerdo, leu uma matéria sobre uma doença que transformava suas vítimas em reféns de pensamentos recorrentes e atitudes repetitivas.
Imaginou que fosse isso que atormentava seu pai e lhe entregou o recorte de jornal. “Ele se deu conta de que não tinha superstição: tinha TOC”, lembra. Além de Dudu, Roberto também é pai de Luciana, filha de Nice, que é jornalista de moda, e Rafael Carlos, fruto de um namoro em 1964, quando era solteiro.
Em 2004, Roberto Carlos procurou a terapia cognitivo-comportamental. Em uma das primeiras sessões, teria dito: “Tudo bem que eu vou mudar, mas vai ser difícil eu deixar de usar azul pra usar marrom”. Teve início um tratamento para controlar o TOC, que não tem cura. São longas sessões semanais em sua casa, com uma terapeuta cuja identidade é segredo de Estado.
E QUE TUDO MAIS…
O primeiro sinal de melhora foi voltar a receber amigos em casa. Roberto gosta de entrar noite adentro bebendo vinho e jogando conversa fora. “Ele sofreu calado, teve seus momentos. Mas agora eu ligo pra ele, a gente se encontra no estúdio, conta coisas”, diz Dedé, percussionista da sua banda. Trata-se de um dos maiores amigos do Rei: os dois se conheceram em 1962, quando Roberto tocava em circos de subúrbio.
Seis anos antes, Roberto Carlos havia chegado ao Rio de Janeiro, vindo de Cachoeiro do Itapemirim (ES), sonhando em ser um cantor famoso. Tentou o rock, a bossa nova e lançou um álbum que tinha também bolero e samba. Foi um fracasso.
Esnobado pela panelinha da Zona Sul – Ronaldo Bôscoli o chamava de “João Gilberto dos pobres” -, voltou a conviver com sua primeira turma carioca, da Tijuca. Mais especificamente com um rapaz alto e bonachão, fã de Elvis Presley e de Roberto – tanto que havia mudado seu nome de Erasmo Esteves para Erasmo Carlos.
Uma versão de Erasmo para um hit de Bobby Darin seria o primeiro sucesso de Roberto: Splish Splash, de 1962. A parceria logo rendeu composições originais: vieram Parei na Contramão, É Proibido Fumar e, em 1965, o convite para que eles e Wanderléa apresentassem o programa Jovem Guarda, na TV Record.
Em novembro daquele ano, lançaria a música revolucionária que incendiou o Brasil e o transformaria em Rei: Quero que Vá Tudo pro Inferno.
“Meu pai só estará curado no dia em que cantar de novo Quero que Vá Tudo pro Inferno“, diz Dudu Braga. A música está banida do repertório de seu pai desde o começo dos anos 1980. Muita gente acha que o motivo é a religião. Mas é TOC mesmo. Ele já prometeu retomar “aquela música” quando melhorar. Essa melhora ainda não veio. Mas outras sim.
TUDO VAI SER DIFERENTE
Graças ao tratamento, É Proibido Fumar está permitida, Negro Gato não dá mais azar, Imoral, Ilegal ou Engorda não é mais ameaça tripla e É Preciso Saber Viver perdeu o trecho absurdo “se o bem e o bem existem” (voltou “e o mal”). Todas estão de volta aos shows após anos banidas.
Suas manias agora são tratadas com leveza: ele ri de sua veneração por plantas (cumprimenta e conversa com elas) e animais (dedica um tempo precioso para evitar brigas entre as lagartixas da sua varanda). Até quem trabalha com ele já se permite tirar um sarro. “Eu brinco: olha, essa camisa tá meio marrom, tem que trocar”, conta o maestro Eduardo Lages, com Roberto desde 1977. “Eu não enxergo, mas me falaram que ele já vem usando um amarelinho, um verde”, diz Dudu.
Não que a cor tenha deixado de importar: após fazer os retratos do Rei que estão nesta edição, o fotógrafo Jorge Bispo pediu um autógrafo em um LP. Quando viu que Bispo lhe alcançou um pincel atômico preto, sacou de uma gaveta outro, azul, e assinou o disco. “Não fica mais bonito assim, bicho?” Sim, boa notícia aos imitadores: ele fala “bicho” bastante.
Com a vaidade em alta, Roberto veste Ricardo Almeida, faz escova progressiva e anda malhando muito. “O cara tem um braço do tamanho da minha perna”, exagera seu novo amigo, o DJ Marcelo Memê Mansur.
Os passeios de conversível com direito a tchauzinho para os fãs são novidade. Antes, a regra eram deslocamentos discretos em sedãs com vidro fumê. A agenda lotada de shows mostra que a Urca ficou pequena.
“Ele está numa fase inspirada e feliz, o que nos estimula a pensar em grandes eventos, projetos internacionais”, diz Dody Sirena, seu empresário desde os anos 1990. Para 2013, estão engatilhados um disco de remixes e outro com versões em espanhol, além do disco do final de ano com inéditas. E há grandes chances de Roberto cantar na abertura da Copa de 2014, no Itaquerão: as negociações estão adiantadas.
Outra mudança importante – a religiosidade. “Eu fazia curso para santo. Era súper, superpraticante da Igreja Católica. Hoje não sou tanto”, disse ele no Programa do Jô em 2011, onde também apoiou o casamento gay.
Quando Maria Rita adoeceu, ele tinha a convicção de que a fé a salvaria. Sem mencionar diretamente a morte dela, Roberto diz: “Hoje me considero um cara realista. A fé não move montanhas. Não muda o curso das coisas, muda você. Não me iludo”.
Especula-se muito sobre sua vida amorosa. Desde que ficou solteiro, a imprensa de celebridades já ventilou nomes como a bailarina Ana Botafogo, a assessora política Maria de Fátima Barbosa, a atriz Luciana Vendramini, a socialite carioca Manoela Ferretti, a dermatologista Márcia Ramos e a cantora Paula Fernandes. Cavalheiro que é, Roberto sempre nega todos os boatos. Ao ser perguntado se estava namorando, disse: “Não dá pra viver sem beijo na boca e sem sorvete”.
DETALHES
Há coisas sobre Roberto que nunca vão mudar. Uma delas é o zelo por sua privacidade. Em 1979, ele conseguiu na Justiça o recolhimento do livro O Rei e Eu, memórias de seu ex-mordomo Nichollas Mariano. Em 1983, processou o jornalista Ruy Castro por uma reportagem na revista Status que detalhava seus namoros – “É a primeira vez que alguém é processado por chamar o outro de garanhão”, disse Ruy na época.
Em 1993, impediu uma série sobre a sua infância no jornal Notícias Populares. E, em 2007, selou um acordo com a Editora Planeta que tirou de circulação a biografia Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo César Araújo. “Imagine você viver desde 1965 com o seu staff fazendo tudo como você deseja. E aí apareço eu contando histórias que você não quer que as pessoas saibam. Ele busca ter controle absoluto das coisas dele”, diz Paulo César, que em 15 anos de pesquisa para o livro não conseguiu entrevistar seu biografado.
A questão do controle se estende aos estúdios e ensaios, quando é perfeccionista ao extremo. “Com Esse Cara Sou Eu, foram três meses de ida e volta. Às vezes, é enlouquecedor. Mas são estresses profissionais, e não pessoais”, diz o maestro Eduardo Lages, que ressalta o conhecimento e a intuição musical do Rei.
Sua confiança é conquistada a conta-gotas. Tome-se como exemplo a relação de Roberto com o DJ Memê. Em 1994, ele fez um remix de Se Você Pensa e soube que o Rei havia gostado. Vários anos e remixes de Roberto Carlos depois, em 2012, ele foi chamado para participar do especial de TV de fim de ano, com uma versão dançante de Fera Ferida.
No dia da gravação, arriscou uma dancinha com o cantor e, mesmo trajando preto e cinza, foi correspondido. Em seguida, foi convocado para shows no Maracanãzinho e então convidado para o cruzeiro de Roberto, que teve sua nona edição em janeiro. “Quando me chamaram para conhecê-lo, eu travei”, conta Memê, que já trabalhou com Lulu Santos, Shakira e Yoko Ono. Agora, se considera parte da corte. “O Rei bateu no meu ombro com a espada. É a condecoração de sir Memê!”
QUANDO EU ESTOU AQUI
Uma vez admitido no círculo de confiança de Roberto Carlos, a fidelidade é eterna. Músico que entra pra banda dele nunca sai. Em sua primeira temporada no Canecão, em 1970, ele chegou a tocar com dois bateristas para não mandar embora o antigo – Dedé, que depois passou à percussão. “Considero Roberto um irmão. Se ele ganha, eu também ganho”, diz Dedé. Sobra para mais gente: o Rei não gosta de divulgar, mas já bancou o tratamento de vários doentes em situação grave.
Quando a Jovem Guarda acabou e Erasmo ficou sem eira nem beira, Roberto estava lá. Contra sua gravadora, que não queria abrir mão de um hit, fez o parceiro gravar Sentado à Beira do Caminho. A balada romântica ressuscitou a carreira do roqueiro. Aliás, não estranhe se Erasmo foi pouco citado: eles não são tão próximos. Ligam-se nos aniversários e na hora de compor. “É por isso que dá certo”, já disse Erasmo Carlos.
Um caso recente de generosidade envolve um nome menos conhecido da Jovem Guarda. Ed Carlos, do hit Edifício de Carinho, estava justamente com um problema imobiliário. Seu restaurante, o Ed Carnes, tradicional churrascaria do Cambuci, em São Paulo, teria que mudar de endereço: o imóvel onde se localiza seria vendido. Quando o Rei soube, pediu que Ed fizesse uma proposta em seu nome. Roberto Carlos agora é o dono do sobrado onde fica o Ed Carnes, e Ed Carlos pode continuar servindo o famoso Costelão do Edão.
O cara que usa a fortuna para ajudar os amigos se parece bastante com o que Alfa fotografou e encontrou em uma coletiva no fim de janeiro. Quem estava ali, a poucos metros dos jornalistas, não era o entrevistado inacessível, protegido pela corte. Era um sujeito tímido e carismático, falando como se estivesse na sala de casa – da nossa casa. Um cara de olhar triste e acolhedor, capaz de tocar algo dentro de todo mundo. É arriscado definir Roberto Carlos, mas não custa tentar: um rei com olhos de plebeu.
05 de maio de 2013
Reportagem de Emiliano Urbim, publicada na revista Alfa
Nenhum comentário:
Postar um comentário