Nestes dias em que os “jovens” saem às ruas para denunciar a corrupção, em que deputados põem as barbas de molho e até mesmo um deles – condenado em 2010 a 13 anos de prisão – teve sua prisão finalmente pedida às pressas pelo STF para mostrar serviço, faltou um cartaz nas manifestações que denunciasse os preconceitos do Ministério da Cultura em relação à pornografia. Pois o MinC recusou autorizar a captação de recursos via lei Rouanet para a publicação da obra Lasciva conta tudo, de Helena de Almeida Cardoso Brandi, na qual a autora narra suas relações com diferentes homens na rua.
Leio no Estadão que a escritora enviou um projeto para se habilitar a captar recursos por meio da lei de incentivo à cultura para um livro e um blog. Foi recusada duas vezes. Ao ler o texto que justificava a negativa, deparou-se com alegações que considera moralistas, como a de que seja "baladeira". Outra alegação é que ela é estreante - o que não é comum como critério do MinC. Helena denuncia que está sendo vítima de preconceito por parte do Estado brasileiro - mais especificamente, do sistema de incentivo às artes do MinC.
A lei Rouanet é o mais eficaz instrumento oficial de corrupção, uma corrupção legalmente permissível e até mesmo simpática – sempre visa favorecer essa coisa que se chama cultura nacional. Há bem mais década venho denunciando este recurso legal usado por luminares das letras pátrias para pôr a mão no bolso do contribuinte.
Em outubro de 1997 – há 16 anos, portanto – eu já denunciava esta farra obscena com "o meu, o teu, o nosso”, nas Jornadas Literárias de Passo Fundo. Em comunicado intitulado justamente de “A Indústria Textil” (assim mesmo, sem acento, a indústria do texto), dediquei um item aos amigos do Rei. Na época, Rubem Fonseca, Patrícia Mello, João Gilberto Noll e Chico Buarque desembarcaram em Londres, onde fizeram leituras públicas de suas obras e lançaram livros não só na capital britânica, como também na Escócia e no País de Gales.
Em um primeiro momento, poderíamos pensar: que maravilha, o Reino Unido se interessa por nossa literatura. Nada disso. É o Ministério da Cultura brasileiro que promove tais turismos e financia as traduções dos autores brasileiros.
Uma vez amigo do Rei, para sempre amigo do Rei. Em maio do ano passado, comentei a notícia de que Chico Buarque iria receber financiamento da Biblioteca Nacional para a tradução de seu livro Leite Derramado para o coreano. Mais uma ajuda financeira indireta do MinC, comandado pela mana Ana. Chico quer empurrar sua “obra” ao mercado asiático. Quem a paga a tradução da obra do vate na Coréia? Você, leitor, que é coagido a pagar e cinicamente chamado de contribuinte.
As prostitutas literárias – regiamente pagas para dormir com o poder – nem de longe se sentem prostitutas. Pelo contrário, sentem-se embaixadores da tal de cultura nacional, a vaca de mais túrgidas tetas ordenhada por escritores, cineastas, gente de teatro, artes hoje manipuladas pelo Estado no Brasil. Não é pois de espantar que moças que giram bolsinha nas ruas julguem merecer os mesmos subsídios que seus colegas de alto bordo. Volto ao Estadão:
Seguindo a trilha aberta por Bruna Surfistinha, Helena Monteiro resolveu aventurar-se na literatura com uma persona realista, e publica contos eróticos e conteúdo sobre sexualidade. Helena crê que alguns de seus textos escandalizaram o parecerista. Um trecho citado: "Comecei a me relacionar com diferentes homens na rua, para testar a minha reação e o que achava disso. Bati meu recorde: sete caras num mês. Vi que tinha gostado mesmo de poucos. Além do mais, nem cheguei a cobrar de nenhum", ela escreve, em Lasciva Conta Tudo.
Jornalista formada pela UnB e especialista em Relações Públicas pela Universidade de São Paulo, Helena se pergunta quando é que o Estado vai passar a considerar a literatura erótica como parte do escopo da literatura mundial. Tal incompreensão, ela considera, não teria nunca permitido que surgissem obras como a de Anaïs Nin, e Cassandra Rios (das quais ela é fã).
Helena está perplexa e indignada. Sente-se vítima de preconceito e brande em sua defesa escritoras de uma outra época, em que escritores não exigiam ajuda do Estado – isto é, do contribuinte – para publicar pornografia. Cassandra Rios, lésbica assumida, cuja obra era sempre recheada de reticências e gemidos, era dos dias da pornografia literária - anterior à pornografia em policromia dos livrinhos suecos -, que exigia algo da imaginação para ser curtida. Livreiros daqueles dias me contaram que foi campeã de vendas de livros, embora jamais tenha sido citada entre os mais vendidos, por pudor de jornais e revistas.
Anaïs Nin já é farinha de outro saco. Filha de um cubano nascida na França, foi amante de Henry Miller e tornou-se famosa pela publicação de seus diários, que abrangem quarenta anos, começando quando tinha doze. O relacionamento de Miller e Nin foi transposto ao cinema em um filme de 1990, Henry & June, dirigido por Philip Kaufman.
Se a literatura de Cassandra Rios era pornografia barata para uso de adolescentes, os livros de Nin, impregnados de conteúdo erótico foram influenciados pela obra de James Joyce e pela psicanálise. Delta de Vênus (1977) foi traduzido para todas as línguas ocidentais - inclusive para o português - e fez fortuna junto à crítica americana e européia. Dona Helena, além de comparar uma escritora de alto nível à rasteira pornógrafa tupiniquim, quer equiparar sua vida lasciva ao talento da francesa.
Com uma diferença fundamental: tanto Anaïs como Cassandra jamais pensaram em captar financiamento estatal para seus livros. Havia pudor na época: pornografia era assunto particular, jamais questão de Estado. Anaïs nem precisava pensar em dinheiro. Era casada com um banqueiro complacente, Hugh Guiler – que aliás financiava Henry Miller – e só permitiu que seus diários fossem publicados após a morte do marido.
Mas Helena não se engana ao falar em seguir a trilha de Bruna Surfistinha, que teve o relato de suas trepadas financiado pelo MEC. Em 2007, o Ministério da Cultura liberou o filme O doce veneno do escorpião, baseado no livro autobiográfico da profissional – doravante, “ex-garota de programa Bruna Surfistinha” - para captar R$ 3.998.621,65 por meio de mecanismo de renúncia fiscal. A decisão foi publicada no Diário Oficial do dia 16 de julho daquele ano.
Não bastasse o financiamento da transposição ao cinema desta obra seminal das letras nacionais, mais tarde a autora foi beneficiada com mais 2 milhões de reais para a produção da peça Doce Veneno, dirigida pelo crítico de cinema Rubens Ewald Filho.
Se o MinC autorizou a captação de dinheiro público para a narração da vida sexual da Bruna Surfistinha, por que não autoriza captação para a divulgação urbi et orbi das trepadas da Heleninha? Puta por puta, por que Bruna e não Helena? Por que prostitutas das Letras e não as da rua?
Preconceito, puro preconceito.
01 de julho de 2013
janer cristaldo
Nenhum comentário:
Postar um comentário