"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 1 de julho de 2013

SMELLS LIKE TEEN SPIRIT


          Artigos - Cultura 
HÁ POUCO MAIS de vinte anos, saíamos às ruas com o mesmo entusiasmo e o mesmo grito ensandecido: “Ética na Política! Punição aos corruptos!”. Não nos indignavam as PEC’s, mas as CPI’s. O país todo juntava forças, juntava vozes, juntava escrúpulos e destituía do cargo o escroque da vez.
 
Estávamos certos e, a um só tempo, estávamos errados. O resultado de tal mobilização foi justamente este que hoje nos denuncia: os justiceiros de então tomaram todos os espaços, ocuparam todas as cadeiras, roubaram nosso vocabulário.
 
Como quem repetisse dezenas de vezes uma mesma palavra e percebesse que ao som não correspondia mais nenhum sentido, nós hoje repetimos 'ética' quando já não sabemos o que seja. Confundimos ética com jogging.
 
A geração de caras pintadas elegeu os ‘mensaleiros’ e, mais do que elegê-los, concedeu-lhes plenos poderes. Não foi outra coisa. A mim, chega a ser assustador que não se perceba. A muitos outros, isso tudo é o “despertar da consciência política”. Mais um. E de despertar em despertar seguimos adiante, satisfeitos, rumo ao coma. Eu sei o que vocês fizeram num verão passado.
 
Mas importa é que a PEC 37 acaba de ser rejeitada com votação expressiva: quatrocentos e trinta nobilíssimos deputados a rechaçaram, orgulhosíssimos de si mesmos, contra nove outros que a endossavam e duas abstenções. Falavam de manobra política para anular o mensalão? Pois eu acho muito bem. ‘Manobra’ desfeita. Às favas com a institucionalidade, com os princípios, com a equanimidade nos julgamentos e com a limitação do poder.
 
Os brasileiros, à esquerda e à direita, não queremos exatamente justiça: queremos ganhar do inimigo, custe o que custar. Contentamo-nos com vencer batalhas, nem que para isso tenhamos de subverter – ou perverter – as regras do jogo. Muitas vezes nem batalhas são, mas apenas rinhas de galo. Exato: as controvérsias políticas no país não são mais do que rinhas de galo.
 
E, talvez por isso, tentativas de golpe de estado terminem por ser atraentes, aqui, porque mesmo os conservadores preferem pequenas vitórias a derrotas honrosas, que criariam condições de possibilidade para que a guerra, de fato, fosse ganha mais à frente.
 
Nestes tempos tão, como direi?, sinestésicos, o analista político Josias de Souza – contrário à ‘PEC da Impunidade’ – registra a frase que define muito do que somos, do que nos tornamos: o “Hálito das ruas produziu bom senso na Câmara”. Para o meu gosto, mau hálito é o que tem vindo das ruas. A Câmara fede. Mas não só. A falta de bom senso é a coisa mais bem distribuída no país. Sempre pode piorar.
 
Revolução bolivariana à parte, o Senado também parece ter sentido o tal ‘hálito das ruas’ e, cambaleante, aprovou o projeto de lei que torna hediondos crimes de corrupção passiva e ativa, estelionato, etc. A votação seguirá na Câmara dos Deputados e, considerado o zeitgeist – que, no Brasil, é mais conhecido como ‘próximas eleições’ – a proposta deve ser acolhida. É o que o povo aparentemente quer.
 
Pois agora sabemos que os crimes contra o patrimônio público são tão graves quanto – ou mais graves que – estupro, sequestro, homicídio qualificado, tortura. E isso revela muito das nossas virtudes – ou da falta delas. Porque a percepção moral, quando educada, reconhece, quase que intuitivamente, a incomensurabilidade entre esses crimes.
 
Se, de repente, por conta de um inaudito surto de hipersensibilidade, nós passamos a equiparar a fraude num contrato de licitação ao sofrimento cruciante e à agonia de uma mulher incendiada por conta de trinta reais, em pouco tempo o resultado será justamente o contrário daquele desejado: um déficit seríssimo na própria capacidade de perceber os valores morais e, consequentemente, de julgá-los com rigor. Dizer que tudo é igualmente ruim equivale a dizer que nada é especialmente ruim.
 
Nós estamos intoxicados com o ‘hálito que vem das ruas’. Nossa indignação é política, nossa indignação é pública, nossa indignação é televisiva. Essa grita por ética, a cada dia que passa, assume de forma inequívoca suas feições farisaicas, escrupulosas, simiescas. Isso é a perversão diabólica da virtude. Estamos tão preocupados em parecer bons que não temos tempo de ser bons, realmente. SMELLS LIKE TEEN SPIRIT.

01 de julho de 2013
Gustavo Nogy

Publicado no site Ad Hominem.

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