Na sala de interrogatórios já estava reunida uma considerável quantidade de pessoas. Divisei o militar de alto posto que desempenhava as funções de juiz e os dois secretários que olhavam seus blocos em branco. Ao lado do juiz estavam pessoas em uniforme policial-militar – provavelmente conselheiros especialistas em diferentes matérias, psicólogos, eticistas, economistas e outros – em frente às quais sentavam-se em semicírculo os participantes de meu curso, como também do curso do próprio Rissen, em uniforme de trabalho. No início vi seus rostos como manchas cor da pele, indistintas de seus uniformes. Ocorreu-me a idéia de observar como reagiam. Fitei com esforço algumas faces, uma após outra, mas elas pareciam máscaras. Abandonei-as, e elas se tornaram indistintas como antes. No mesmo instante a porta foi aberta e Rissen foi introduzido algemado.
Olhou em torno da sala, sem fixar-se especialmente em ninguém, nem mesmo em mim. E por que se fixaria em mim? Ele não podia saber que eu o denunciara, nem tampouco que eu devorava, mergulhado no desespero, todos os seus movimentos e gestos. Uma sombra de esperança me perpassou: talvez não só eu – talvez algum outro dos que ali estavam – portasse sob a máscara o mesmo meu desespero? Talvez muitos?
Quando ele se ajeitou na cadeira – muito civil, como era seu costume –, parecia-me às vezes quase sumir em sua sólida corporalidade, talvez porque ele não impunha mais às pessoas do que o faz um objeto, uma árvore, um animal; fechou os olhos e sorriu levemente. Era um sorriso triste e sem esperanças, dirigido a ninguém, como se ele tivesse sido todo tempo consciente de sua solidão absoluta e se encerrado e até mesmo procurado repouso nela, assim como eu imaginava um viajante polar sonolento buscando repouso no frio, mesmo sabendo que dormiria para sempre.
Enquanto a kalocaína agia, seu sorriso desesperado espalhou-se sereno em seu rosto cheio de rugas. E mesmo que demorasse horas para falar, não se poderia desviar o olhar dele. Onde estariam antes pousados meus olhos que não viam a dignidade singular deste civil, suave e simples homem, que eu sempre achara ridículo! Uma dignidade totalmente distinta da rígida dignidade militar, precisamente porque consistia em uma completa indiferença ante o que ele fazia. Quando abriu os olhos e começou a falar, tinha-se a impressão de que ele muito bem podia estar ali recostado em qualquer cadeira, olhando as luzes brancas no teto e falando sem uma gota de kalocaína em si, nos mesmos termos que agora, pois o medo e a vergonha, que nos emudeciam, nele haviam sido consumidos pela solidão e desesperança. Eu poderia ter-lhe pedido para falar, e ele talvez o fizesse voluntariamente, como Linda, como um presente.
Ele teria dito tudo o que eu queria saber, teria falado dos loucos e de suas tradições secretas, da Cidade Deserta, sobre si mesmo, como fora impelido ao desconhecido à sua maneira, da mesma forma que Linda fora a seu modo – tudo; se eu não tivesse escolhido brincar de inimigo em meu medo selvagem, quando descobri que algo proibido em mim respondia sua melodia com o mesmo timbre e jamais se deixaria silenciar novamente. Ele falaria então muito mais do que agora que o obrigavam a falar, talvez sobre coisas mais importantes, e me tornaria consciente da realidade de mim mesmo, que agora eu jamais descobriria. Não sentia nenhuma compaixão pelo fato de que ele seria condenado e morto, mas estava terrivelmente amargurado por ter-me maculado ao denunciá-lo. E eu o escutava tão avaramente como havia escutado Linda, apenas mais angustiado.
Queria saber algo dele mesmo. Mas ele nada dizia de pessoal. Perguntas gerais ele respondia até os últimos detalhes.
– Perfeito – disse ele –, perfeito. Cá estou eu. Como devia acontecer. Uma questão de tempo. Para dizer a verdade. Vocês podem ouvir a verdade, vocês? Nem todos são suficientemente sinceros para ouvir a verdade, isto é o lamentável. Ela poderia ser uma ponte entre cada ser humano – enquanto voluntária, é claro – enquanto é oferecida como um presente e recebida como um presente. Não é estranho que tudo perca seu valor tão logo deixe de ser um presente, inclusive a verdade? Não, isto vocês evidentemente não entendem, pois senão se sentiriam despidos, se veriam como um esqueleto nu; e quem aguenta ver isso! Ninguém quer ver sua miserabilidade, enquanto não é forçado! Forçado não por homens. Forçado por um vazio absoluto e pelo frio, pelo frio glacial que ameaça a todos nós. Vocês falam em comunidade. Em comunhão. E falam um de cada lado de um abismo. Não existirá um ponto, um único ponto ao menos, no longo desenvolvimento das gerações, por onde se pudesse escolher um outro caminho? Precisará o caminho passar sobre o abismo? Nenhum ponto onde se pudesse impedir que o tanque do Poder rolasse em direção ao vazio? Passará sobre a morte algum caminho rumo a uma nova vida? Existirá algum lugar sagrado, onde o destino é outro? Perguntei-me durante anos onde estaria este lugar. Se chegarmos lá, teremos absorvido as fronteiras, ou as fronteiras terão nos absorvido? Surgirão caminhos entre os homens tão facilmente como surgem caminhos entre cidades e distritos? Que surjam logo então. Surgirão com todos os seus terrores? Ou isto tampouco adianta? Terá o tanque do Poder crescido tanto que não permite ser transformado de deus em utensílio? Poderá alguma vez um deus, mesmo sendo o mais morto de todos os deuses, renunciar voluntariamente a seu poder? Gostaria de acreditar na existência de um abismo verde no ser humano, um mar de seiva intacta, que funde todos os restos mortos em seu colossal reservatório e os purifica e recria eternamente... Mas eu não o vi. O que sei é que pais doentes e professores doentes educam crianças ainda mais doentes, até que a doença se torna normal, e a saúde um pesadelo. De seres solitários nascem outros mais solitários ainda, de temerosos outros mais temerosos... Onde poderia um último resquício de saúde ter-se escondido ainda para crescer e perfurar a carapaça? Aqueles pobres homens, que chamamos de loucos, brincam com seus símbolos. Algo deve ter existido... Eles pelo menos sabem que havia algo que lhes faltava. Por mais que soubessem o que faziam, restava ainda algo ignoto. Mas isto não conduz a lugar nenhum! Aonde pode algo conduzir? Se eu fosse até uma estação de metrô onde as multidões se comprimem, ou até um grande encontro festivo com alto-falantes à minha frente, meus gritos não repercutiriam mais longe que alguns poucos tambores no imenso Estado Mundial, e reboariam como sons ocos. Sou uma engrenagem. Sou um ser do qual retiraram a vida... E no entanto: exatamente agora sei que isto não é verdade. É a kalocaína, é claro, que me torna absurdamente esperançoso... Tudo se torna fácil e claro e calmo. Seja como for, vivo, apesar de tudo que extraíram de mim, e exatamente agora sei, que o que sou leva a algum lugar. Vi o poder da morte espalhar-se sobre o mundo em círculos amplos e cada vez mais amplos; mas não terão os poderes da vida também seus círculos, embora eu não pudesse vislumbrá-los?... Sim, sim, eu sei, é a kalocaína que está agindo, mas será por isso que não é verdade o que digo?
A caminho da sala de interrogatórios, fantasias loucas me confundiam o cérebro – todos os ouvintes de uma vez, por alguma razão misteriosa, dirigiriam sua atenção para algum outro lugar e eu poderia segredar minha pergunta no ouvido de Rissen... Mas desde então eu sabia ser isto um sonho diurno, que não poderia realizar-se, e ocorreu naturalmente que nem um único dos ouvintes, menos ainda todos de uma vez, afastou de Rissen seu olhar atento. Curiosamente, mesmo se tivesse oportunidade, eu nada teria a perguntar. Pouco me importava mais a Cidade Deserta, pouco me importavam as tradições dos loucos! Nenhuma Cidade Deserta era tão inacessível e tão segura como aquela para qual eu me dirigia, que não estava a milhas de distância em rumo desconhecido, mas próxima, próxima. Linda ainda existia. Pelo menos ela, ainda existia.
Rissen suspirou e fechou os olhos, mas abriu-os novamente.
– Eles pressentem! – murmurou, e seu sorriso brilhou mais e tornou-se menos desesperado. – Eles têm medo, colocam-se numa atitude de defesa, porque pressentem. Minha mulher pressente, quando não quer ouvir e faz-me ficar quieto. Os participantes do curso pressentem, quando tomam o mais superior dos ares e me ridicularizam. Deve ter sido um deles que me denunciou, minha mulher ou um deles. Quem quer que tenha feito isso, pressentiu. Quando falo, eles ouvem a si mesmo. É a eles mesmos que temem, quando me movo e existo. Ah, se fosse possível encontrá-lo, o abismo verde, o indestrutível... E agora creio que existe. Certamente é a kalocaína, mas mesmo assim sinto-me alegre... Por... Poder acreditar nisto...
12 de julho de 2013
* Kalocaína, de Karin Boye. Tradução do sueco de Janer Cristaldo
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