"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 1 de agosto de 2013

ENTREVISTA: ANTROPÓLOGO E ESCRITOR ROBERTO DAMATTA

“O governo Lula atuou com hipocrisia”


Profissional de múltiplas atividades – conferencista, professor, consultor, colunista de jornal, produtor de TV – Roberto DaMatta é acima de tudo antropólogo.
 
Estudioso do Brasil, de seus dilemas e de suas contradições, mas também de seu potencial e de suas soluções, DaMatta não se afasta de seu país mesmo quando desenvolve outros temas.
A comparação com o Brasil é inevitável.
 
DaMatta revela o Brasil, os brasileiros e sua cultura através de suas festas populares, manifestações religiosas, literatura e arte, desfiles carnavalescos e paradas militares, leis e regras (quando respeitadas e quando desobedecidas), costumes e esportes. Daí surge um Brasil complexo, que não se submete a uma fórmula ou esquema único.
 
Para DaMatta, o Brasil é tão diversificado como diversificados são os rituais, conjunto de práticas consagradas pelo uso ou pelas normas, a que os brasileiros se entregam. Todos esses temas são abordados em sua relação com duas espécies de sujeito, o indivíduo e a pessoa, e situados em dois tipos de espaço social, a casa e a rua. A distinção entre indivíduo e pessoa é bem demarcada em seu original trabalho sobre a conhecida e ameaçadora pergunta: Você sabe com quem está falando?.
Os seres humanos que se sentem autorizados a se dirigir dessa forma aos outros, colocam-se na posição de pessoas: são titulares de direito, são alguém no contexto social. Os seres humanos a quem tal pergunta é dirigida são, para as pessoas, meros indivíduos, mais um na multidão, um número.
 
A rua é o espaço público. Como é de todos, não é de ninguém, logo, tem-se ali um espaço hostil onde não valem as leis e os princípios éticos, a não ser sob a vigilância da autoridade. A convivência na rua depende de uma negociação constante, entre iguais e desiguais.
A casa, considerada num sentido amplo, é o espaço privado por excelência, onde estão “os nossos”, que devem ser protegidos e favorecidos, e aqui DaMatta retoma e atualiza o conceito de homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda.
 
Com 18 livros lançados, entre os quais o famoso “Carnavais, malandros e heróis” de 1979, o antropólogo é um dos grandes debatedores da situação nacional. Além de sua obra em livro, DaMatta tem centenas de artigos e ensaios em revistas científicas e coletâneas, bem como verbetes em dicionários e enciclopédias, no Brasil e no exterior, publicados a partir de 1963.
 
Mantém uma coluna semanal no O Globo, do Rio de Janeiro.
Na entrevista a seguir, ele discorre de Lula a Marx, com uma grande capacidade de reflexão.
 
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Panorama Mercantil – O senhor foi professor por quase duas décadas na Universidade de Notre Dame, nos EUA. Com essa experiência adquirida, poderia nos dizer como anda a qualidade do ensino nas universidades brasileiras se compararmos com as norte-americanas?
 
Roberto DaMatta - Nas universidades americanas nas quais estudei e ensinei (Harvard, Wisconsin-Madison, Califórnia-Berkeley e Notre Dame), a comparação fica um tanto quanto fora de ordem, porque não se pode comparar com devido bom-senso uma Harvard (fundada no século 16 e com um fundo de bilhões de dólares) com uma pequena universidade Federal ou estadual do Brasil. Essas universidades nas quais os professores são funcionários públicos e não há promoção por obra ou mérito, mas por tempo de serviço e idade, numa negação absoluta da boa meritocracia universitária estabelecida na Idade Média, na Europa que produziu um Lutero, um Newton e, nos Estados Unidos, a modernidade tecnológica na qual vivemos bem como os ideais de democracia aplicados na política e na sociedade. Mas mesmo assim, é preciso ressaltar que em certos campos vamos bem, e temos centros que se igualam aos seus irmãos no exterior. Refiro-me especialmente ao campo das Ciências Sociais e da Literatura com os seus devidos descontos.
 
Panorama – O senhor disse que a corrupção no Brasil é um mal que tem raízes muito antigas. Então isso quer dizer que a corrupção infelizmente sempre existirá, de uma forma ou de outra?
 
DaMatta - Em todo grupo humano a corrupção. E, além de antiga, uma possibilidade e existe ao lado da dimensão transparente, clara e honesta do ser humano. Sobretudo quando ele não é mais governado somente pela religião mas igualmente pelo “estado democrático de direito” como se diz aqui no Brasil e, assim, por normas impessoais, escritas e que devem valer para todos. No Brasil a malandragem, a esperteza relativamente aos bens e cargos públicos, vem de longe, e o nosso problema não é saber desse fato, mas não tomar as providências devidas, reagindo a ele de modo proativo. Estou certo que a luta entre o bem e o mal sempre vai existir nos universos humanos. Sem ela não existiria consciência humana que é feita de oposições definidas no combate entre o que sabemos claramente e o que nos é ocultado seja pelo destino, pela história e pelas forças que atuam no nosso inconsciente. As próprias relações sociais promovem o “mal” ou o mal-entendido, mesmo quando queremos que elas sejam boas. Agora, não punir, e aceitar o mal como um valor é uma outra coisa! No nosso caso, precisamos começar tornando todos iguais perante a lei: inclusive e, sobretudo, os governantes.
 
Panorama – Muitos dizem que o problema para o Brasil progredir de fato,é ser menos dependente do Estado em suas ações. O senhor concorda com essa afirmação?
 
DaMatta Eu diria que a resposta passa pelo papel do Estado. Temos atualmente um Estado que não administra. Ele gerencia os seus aliados e aristocratiza seus agentes ou funcionários. A rigor não é um Estado republicano, mas monárquico-escravocrata como, aliás, não poderia deixar de ser já que a monarquia dos Bragança, foi o seu modelo e sua inspiração cultural e social. Os escravos não existem mais formalmente mas os funcionários públicos, dependendo do seu segmento, são nobres. Entram no Estado e dele jamais saem como ocorre com as grandes famílias patriarcais descritas por Gilberto Freyre. É uma vergonha, como se dizia. Agora dizer isso não significa liquidar o Estado. De modo algum. O Estado precisa, isso sim, cumprir o seu papel de gerenciar oportunidades e de criar igualdade de modo perene, dirimindo injustiças antigas e modernas. Em suma, é preciso democratizar também o Estado.
 
Panorama – Alguns políticos que entrevistamos recentemente, nos disseram que Lula foi uma fraude. O senhor também acredita que ele foi uma fraude?
 
DaMatta - Eu acho que ele foi a mais importante experiência do sistema político brasileiro precisamente, porque ajudou a liquidar com a teoria que ligava o Estado a mudança social e a um ideal de justiça e honestidade. Lula demonstra que há um longo caminho a percorrer porque o seu governo foi o que mais se atuou com mendacidade no Brasil. Ele não é uma fraude, é uma prova concreta de que as utopias enganam.
 
Panorama – Afinal, esquerda e direita ainda existem no Brasil?
 
DaMatta Existem. A “esquerda” diz respeito a quem quer mudar sem medir consequências e imaginando que a sociedade não exerce nenhum papel no processo de transformação. Basta um decreto ou uma lei e tudo muda. A “direita” sabe do volume e do peso das forças sociais em jogo e das suas reações. Falar em mudança é mais fácil do que efetivá-las sem despotismos ou força. Hoje, felizmente, há um enorme ponto de encontro entre esses lados e todos têm consciência do problema e do ideal que é juntar o lado positivo da esquerda, com o da direita. Ademais, pode-se ser de direita para certas coisas (por exemplo, para prender, fuzilar e exilar os inimigos da democracia) e ser de esquerda para outras (por exemplo: fornecer escolas impecáveis para todos).
 
Panorama – O PT ainda pode ser considerado um partido de esquerda, ou isso se esfacela quando a legenda se junta a figuras como José Sarney e Paulo Maluf?
 
DaMatta Não conheço bem o PT, conheço e quero bem a muitos petistas. Penso que devemos diferenciar o PT do lulismo. Mas, por outro lado, o lulismo é o petismo na sua prática não antevista pelos seus fundadores: o exercÌcio do poder Federal. Nessa prática cujo lema sempre é deter o poder e ampliá-lo, as alianças são um ponto chave. E se os meios justificam os fins que jamais chegam e não são ditos claramente, o Rei está sempre certo e ele faz as alianças com quem quer, inclusive com o Diabo (que tem mais caráter do que muitos políticos brasileiros) o que desmancha, adia ou destrói as propostas mais sérias ou ideológico-religiosas do partido. E aí voltamos ao ponto de partida. E o PT passa a ser um partido normal com bons e maus momentos como todos os outros.
 
Panorama – O senhor disse uma certa vez, que nós de uma forma geral, temos uma verdadeira alergia ao igualitarismo, segundo o qual todos dão a largada do mesmo ponto e cada um, chega a um determinado lugar dependendo do seu esforço. Brasileiro não gosta de uma palavrinha mágica chamada meritocracia?
 
DaMatta Temos uma formação histórica aristocrática e burocrática no sentido de garantir desigualdades. Toda a nossa história até 1889, foi monárquica e os padrões de conduta e relacionamento de nossas elites e do sistema em geral era hierarquizado como tenho dito na minha obra. Mas não ficamos somente nisso. Adotamos a igualdade republicana e a levamos a sério em muitos momentos. Temos então um movimento de modernização semelhante ao de outros sistemas: um diálogo quase sempre tenso e conflituoso entre um ideal do cada coisa em seu lugar e o ideal da igualdade de todos perante leis universais. Reconheço que a fórmula é simples demais, mas a caricatura ajuda a definir o caráter. E o nosso cerne contem isso que chamei de dilema brasileiro em “Carnavais, malandros e heróis” que é um livro de 1979 e portanto velho. Todos os estudos sobre meritocracia dizem o seguinte: de boca, todos a desejam, na prática todos a consideram um veneno porque ela estimula a competição. Agora, por que a competição é lida como negativa no Brasil? Porque, digo eu, separamos recursos públicos (da rua) e íntimos (casa) de modo radical. Não temos uma tradição de participação política local. Nossa tendência é entregar tudo ao Estado ou ao Governo. Não conseguimos, exceto no esporte, compreender como a meritocracia é uma fonte positiva de inovação e de igualdade.
 
Panorama – O cantor Lobão recentemente afirmou, que o Brasil nunca daria certo mesmo, tendo como herói Macunaíma. Isso veio de encontro, quando o senhor disse que, quem ambiciona produzir algo verdadeiramente original e relevante para a sociedade, não deve se ater apenas ao expediente profissional padrão. O brasileiro na média, é um trabalhador preguiçoso?
 
DaMatta - Confesso que não entendi a pergunta. 
 
Panorama – Por gentileza, nos explique o porque de no Brasil ainda termos a ridícula e infeliz frase: “Você sabe com quem está falando?” A mesma se dá apenas em nosso país, ou em outras parte do mundo ela também ocorre?
 
DaMattaLeia o meu livro “Carnavais, malandros e heróis”, onde eu explico a expressão como um rito autoritário, usado em situações igualitárias e radicais, para revelar dentro do aparente cidadão comum, o nobre (filho de Sicrano ou marido de Fulana, etc…). Trata-se do dilema entre ser igual ou distinguir-se para cima.
 
Panorama – O senhor fez uma pesquisa sobre o comportamento do brasileiro no trânsito, onde diz que a igualdade poderia solucionar os problemas nesse setor. Como conseguir essa igualdade?
 
DaMatta - Por meio de debates, entrevistas, seminários e campanhas. O Brasil precisa de uma campanha para a igualdade. Ele precisa livrar-se de uma carga aristocrática que permeia o fundo do nosso sistema social.
 
Panorama – O senhor acredita que a religião é o ópio do povo como disse Karl Marx?
 
DaMatta - Sem ópio não haveria humanidade. Marx acreditava que a razão levava a uma vida livres de outras crenças, inclusive as religiosas e não tinha paciência com desvios ou semi-soluções para os problemas da sociedade, centrados na luta de classe. Eu penso que Marx era tão religioso quanto os religiosos que ele criticava. Penso que hoje, temos o uso da razão tanto quanto tememos sistemas de crenças absolutos. 
 
Panorama – A descriminalização das drogas é uma saída benéfica para o país?
 
DaMattaSem dúvida. A questão é como realizar isso num país continental, com a Polícia e com as demais autoridades brasileiras.
 
Panorama – “Brasil, o país do futuro”, essa frase está com os dias contados?
 
Da MattaA frase não tem mais sentido num mundo que não se vê mais com um futuro. E com um Brasil cansado de promessas.

01 de agosto de 2013
Colaboração de Éder Fonseca, jornalista, Diretor-Executivo do Portal Panorama Mercantil

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