Nossa maneira de nos relacionar com a imagem foi absolutamente modificada pelo YouTube, cujos vídeos crus e desordenados já estão mudando o cinema e a TV
Crítico das normas e dos mecanismos de poder, Michel Foucault apontou as armadilhas do registro memorial simplista. Em sua obra póstuma Dits e écrits, acusava o cinema de bloquear a memória popular: “Mostramos às pessoas não o que elas foram, e sim o que elas deveriam se lembrar que foram”.
Essa arte impura entre “o telescópio e o microscópio” (como diria Godard), poderia muito bem ser vista como um instrumento científico destinado a medir, apreender e sintetizar a memória humana.
Paul Virilio, aliás, já descreveu a sétima arte como uma arma de guerra.
Mas o fato é que o cinema e os meios de distribuição vivem uma profunda revolução com a proliferação das câmeras digitais e a disseminação das imagens na internet. Uma revolução que nos leva a repensar as relações de poder entre espectador e imagem.
Hoje, qualquer um pode gravar e exibir seu vídeo na internet para milhões de pessoas. Não é impossível afirmar que, no futuro, a função memorialista do cinema e da TV seja substituída por esse infinito repositório de memória coletiva que é o YouTube.
Não quero dizer com isso que o cinema e a televisão serão esquecidos; digo apenas que as pessoas talvez se sintam menos representadas por eles do que pelas imagens íntimas que se multiplicam a cada dia no banco de dados da internet.
Nossa maneira de nos relacionar com a imagem foi absolutamente modificada pelo YouTube: há um desencanto evidente nesses vídeos crus e desordenados, mais próximos de um rascunho do que de uma totalidade. Lembro agora desse vídeo extraordinário que assisti outro dia no YouTube.
De autor desconhecido, mostra uma típica família brasileira da nova classe média que se deslumbra ao perceber, no meio de uma calma floresta, a ação de um redemoinho. A câmera gira a todo momento tentando captar o espetáculo da natureza, enquanto a mãe religiosa do protagonista entra e sai do quadro bradando proselitismos religiosos. “Isso é Deus falando ‘eu estou aqui’, eu tenho poder, olha o que eu faço”, prega a voz da senhora, enquanto o vento produz efeitos estranhos no rio e no céu.
Um rapaz também tenta narrar o acontecimento num vocabulário cheio de gírias, como uma espécie de corifeu pós-moderno (que insiste em chamar o redemoinho de “redemunho”). Nos minutos finais, a câmera se atém num casal deitado na rede, depois numa criança gordinha, de sunga, ouvindo música gospel no banco de um carro – e então a gravação é interrompida bruscamente.
Mesmo feito por amadores (?), o vídeo de 6 minutos (uma eternidade para o YouTube) é de uma poesia visual e uma expressividade absurdas, que me lembram alguns filmes do Rogério Sganzerla (penso na cena com o Luiz Gonzaga de Sem essa aranha – a história de uma aranha que se destrói em silêncio – em que Helena Ignez passa de um lado para o outro xingando “sistema solar de lixo” e Zé Bonitinho surge declamando “Somente agora que eu vejo que são seis milhões de anos de fome/ Blefar a fome e a rotação universal”). Pouco importa se a complexidade do vídeo é intencional ou involuntária.
O fato é que ele registra um momento e uma identidade do Brasil que nenhum filme, livro ou música brasileira recente conseguiu fazer até agora. Todo um pedaço do Brasil aparece ali, fervendo no mesmo caldeirão: a religiosidade, a nova classe média, o novo poder de consumo, a influência da publicidade (em determinado momento, um dos membros da família mostra uma garrafa de cerveja e repete o slogan da marca), a relação do novo homem urbano com a natureza…
Vídeos caseiros como o “Redemunho de Deus” passam uma estranha sensação de verdade – e não apenas porque documentam momentos “reais”, mas porque colocam uma relação intrínseca dos “personagens” com o momento, o instante fugaz registrado milagrosamente, e que nunca vai se repetir (um segundo é sempre um milagre que não se repete, assim como cada redemoinho é um redemoinho).
Na verdade, o que resulta desses instantes soltos e inconsequentes, sem início nem fim, é muito mais uma ilusão de concretude do que de realidade. E isso se choca completamente com um outro tipo de ilusão narrativa, a que vemos na “magia falsa” do cinema de estúdio que sobreviveu às imagens dos campos de Auschwitz e ao neo-realismo.
É preciso lembrar, obviamente, que, pelo menos até agora, esses vídeos auto-publicados ainda não se firmaram como uma nova espécie de arte ou narrativa – não no senso comum. Todavia, creio que já começaram a alterar, de forma inconsciente, nossa percepção de narrativa.
O cinema sentiu o golpe e absorveu essa ânsia por concretude. Seu sintoma estético é evidente em diversos filmes de alto orçamento que tentam simular ou reproduzir a mesma espontaneidade das produções caseiras, diletantes e auto-publicadas.
Entre os inúmeros exemplos, posso citar os primeiros títulos que me vêm a cabeça (Cloverfield e Chronicle), mas é possível que Redacted, de Brian de Palma, rodado como um falso documentário sobre a guerra do Iraque (e profundamente marcado pelas imagens que os próprios soldados americanos registram no seu cotidiano com sua câmeras digitais) seja a experiência mais interessante e radical nesse sentido.
Mas, voltando a Foucault, confesso que não consigo afirmar se as relações de poder entre espectador e produtor serão realmente alteradas dentro do novo contexto em que vivemos. O fato de que as fronteiras entre produtor e espectador estejam cada vez mais apagadas depois das câmeras digitais e da internet (hoje, todo mundo é ao mesmo tempo produtor e espectador) também não impede que nossa memória seja, de alguma forma, apreendida ou simplificada pelas imagens.
No futuro, estaremos representados de uma forma mais complexa pelo banco de memórias do YouTube do que no passado fomos pelo cinema? É uma pergunta difícil de responder.
Essa arte impura entre “o telescópio e o microscópio” (como diria Godard), poderia muito bem ser vista como um instrumento científico destinado a medir, apreender e sintetizar a memória humana.
Paul Virilio, aliás, já descreveu a sétima arte como uma arma de guerra.
Mas o fato é que o cinema e os meios de distribuição vivem uma profunda revolução com a proliferação das câmeras digitais e a disseminação das imagens na internet. Uma revolução que nos leva a repensar as relações de poder entre espectador e imagem.
Hoje, qualquer um pode gravar e exibir seu vídeo na internet para milhões de pessoas. Não é impossível afirmar que, no futuro, a função memorialista do cinema e da TV seja substituída por esse infinito repositório de memória coletiva que é o YouTube.
Não quero dizer com isso que o cinema e a televisão serão esquecidos; digo apenas que as pessoas talvez se sintam menos representadas por eles do que pelas imagens íntimas que se multiplicam a cada dia no banco de dados da internet.
Nossa maneira de nos relacionar com a imagem foi absolutamente modificada pelo YouTube: há um desencanto evidente nesses vídeos crus e desordenados, mais próximos de um rascunho do que de uma totalidade. Lembro agora desse vídeo extraordinário que assisti outro dia no YouTube.
De autor desconhecido, mostra uma típica família brasileira da nova classe média que se deslumbra ao perceber, no meio de uma calma floresta, a ação de um redemoinho. A câmera gira a todo momento tentando captar o espetáculo da natureza, enquanto a mãe religiosa do protagonista entra e sai do quadro bradando proselitismos religiosos. “Isso é Deus falando ‘eu estou aqui’, eu tenho poder, olha o que eu faço”, prega a voz da senhora, enquanto o vento produz efeitos estranhos no rio e no céu.
Um rapaz também tenta narrar o acontecimento num vocabulário cheio de gírias, como uma espécie de corifeu pós-moderno (que insiste em chamar o redemoinho de “redemunho”). Nos minutos finais, a câmera se atém num casal deitado na rede, depois numa criança gordinha, de sunga, ouvindo música gospel no banco de um carro – e então a gravação é interrompida bruscamente.
Mesmo feito por amadores (?), o vídeo de 6 minutos (uma eternidade para o YouTube) é de uma poesia visual e uma expressividade absurdas, que me lembram alguns filmes do Rogério Sganzerla (penso na cena com o Luiz Gonzaga de Sem essa aranha – a história de uma aranha que se destrói em silêncio – em que Helena Ignez passa de um lado para o outro xingando “sistema solar de lixo” e Zé Bonitinho surge declamando “Somente agora que eu vejo que são seis milhões de anos de fome/ Blefar a fome e a rotação universal”). Pouco importa se a complexidade do vídeo é intencional ou involuntária.
O fato é que ele registra um momento e uma identidade do Brasil que nenhum filme, livro ou música brasileira recente conseguiu fazer até agora. Todo um pedaço do Brasil aparece ali, fervendo no mesmo caldeirão: a religiosidade, a nova classe média, o novo poder de consumo, a influência da publicidade (em determinado momento, um dos membros da família mostra uma garrafa de cerveja e repete o slogan da marca), a relação do novo homem urbano com a natureza…
Vídeos caseiros como o “Redemunho de Deus” passam uma estranha sensação de verdade – e não apenas porque documentam momentos “reais”, mas porque colocam uma relação intrínseca dos “personagens” com o momento, o instante fugaz registrado milagrosamente, e que nunca vai se repetir (um segundo é sempre um milagre que não se repete, assim como cada redemoinho é um redemoinho).
Na verdade, o que resulta desses instantes soltos e inconsequentes, sem início nem fim, é muito mais uma ilusão de concretude do que de realidade. E isso se choca completamente com um outro tipo de ilusão narrativa, a que vemos na “magia falsa” do cinema de estúdio que sobreviveu às imagens dos campos de Auschwitz e ao neo-realismo.
É preciso lembrar, obviamente, que, pelo menos até agora, esses vídeos auto-publicados ainda não se firmaram como uma nova espécie de arte ou narrativa – não no senso comum. Todavia, creio que já começaram a alterar, de forma inconsciente, nossa percepção de narrativa.
O cinema sentiu o golpe e absorveu essa ânsia por concretude. Seu sintoma estético é evidente em diversos filmes de alto orçamento que tentam simular ou reproduzir a mesma espontaneidade das produções caseiras, diletantes e auto-publicadas.
Entre os inúmeros exemplos, posso citar os primeiros títulos que me vêm a cabeça (Cloverfield e Chronicle), mas é possível que Redacted, de Brian de Palma, rodado como um falso documentário sobre a guerra do Iraque (e profundamente marcado pelas imagens que os próprios soldados americanos registram no seu cotidiano com sua câmeras digitais) seja a experiência mais interessante e radical nesse sentido.
Mas, voltando a Foucault, confesso que não consigo afirmar se as relações de poder entre espectador e produtor serão realmente alteradas dentro do novo contexto em que vivemos. O fato de que as fronteiras entre produtor e espectador estejam cada vez mais apagadas depois das câmeras digitais e da internet (hoje, todo mundo é ao mesmo tempo produtor e espectador) também não impede que nossa memória seja, de alguma forma, apreendida ou simplificada pelas imagens.
No futuro, estaremos representados de uma forma mais complexa pelo banco de memórias do YouTube do que no passado fomos pelo cinema? É uma pergunta difícil de responder.
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