"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 23 de junho de 2012

HULA GARU


Com a idade, fica cada vez mais difícil encontrar autor ou leitura que fascine. Já não consigo encontrar em um livro o deslumbramento com que li Fédon, o Quixote ou as Viagens de Gulliver. Verdade que nos últimos 2.300 anos não surgiu um novo Platão, faz meio milênio que não surge um novo Cervantes e pelo menos uns quatro séculos que não ocorre um novo Swift. Nosso século não produziu ainda outro Orwell ou Fernando Pessoa. José Hernández morreu há mais de 100 anos e ainda não surgiu no continente poeta que se lhe equipare. Nietzsche morreu com o século passado e a humanidade ainda não o repôs.

Enfim, o século recém está começando. Mas tendo a desconfiar que tão cedo não teremos gênios de tal porte. Olho em torno, e não vejo nada de mais importante na área da literatura ou poesia. Ou nosso século é estéril, ou talvez necessitemos de um bom distanciamento no tempo para reconhecer o gênio.

O gênio, de modo geral, tem consciência de seu gênio. No prólogo a Novelas Ejemplares, Cervantes faz seu auto-retrato. Nesta confissão de um homem machucado pela vida, lamenta seus dentes, "ni menudos ni crecidos, porque no tiene sino seis y son mal acondicionados y peor puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros". Também glorifica a mão perdida em Lepanto, "herida que, aunque parece fea, él la tiene por hermosa, por haberla cobrado en la más memorable y alta ocasión que vieron los pasados siglos ni esperan ver los venideros". Ali está o homem, mutilado pela vida, mas inteiro e orgulhoso de seus feitos. Mais tarde, ciente da grandeza de sua obra, Cervantes dirá de Cervantes:

"tú, que en la naval dura palestra
perdiste el movimiento de la mano
izquierda, para gloria de la diestra!"

Swift, que curiosamente é mais conhecido no Brasil como um autor de histórinhas infantis, não foi exatamente um homem benquisto pelos seus contemporâneos. Deão de Saint Patrick, em Dublin, Irlanda, escreveu anonimamente a maior parte de suas obras. Diz a lenda que sua obra maior, As Viagens de Gulliver, teria sido jogada de uma carruagem pela janela adentro do editor. Mas seu estilo era inconfundível. Para que se tenha uma idéia do humor do deão e de seu conflito com a própria época, bastaria citar esta reflexão sua: "Quando um verdadeiro gênio aparece no mundo, podeis conhecê-lo por este sinal: todos os cretinos se aliam contra ele".

Pessoa se revela em um de seus ensaios, Heróstrato:

“A avassaladora produção literária tornará a seleção igualmente avassaladora, pela reação. A verdadeira produção abundante de livros bem escritos fará com que muitos livros antigos pareçam menos bons do que quando se destacam de um pano de fundo de nada. (...) A competição entre os mortos é mais terrível do que a competição entre os vivos; os mortos são mais numerosos”.

Aqui o homem já diz ao que vem. Quando afirmava que o gênio é o mais comum dos homens, tão comum a ponto de passar despercebido em sua época, obviamente falava de si mesmo. Hostil à celebridade, Pessoa morreu quase inédito e considerava ser editado uma ofensa à genialidade.

Depois de ler estes autores – e outros menores mas nem por isso menos importantes – fica difícil encontrar pensamento novo na literatura contemporânea. Existem é claro reflexões sobre os dias que correm, que não poderiam ter sido feitas por quem não os viveu. Mas muitas vezes os homens do passado demonstram mais conhecimento do presente que nossos coetâneos.

Em minha idade, o mesmo está acontecendo com as demais artes, particularmente com o cinema. Fui iniciado com Chaplin, Bergman, Louis Malle, Fellini, Kurosawa, Peckinpah, cineastas personalíssimos, cujas obras eram sempre esperadas com sofreguidão. Hoje, está difícil encontrar quem os substitua. Depois destes, vi obras interessantes, dessas que jamais encherão várias salas ao mesmo tempo.

Sempre me comovem La Strada e Noites de Cabíria, de Fellini. Como aliás quase todos seus filmes. Adoro Bas Fond, do Kurosawa (vi o filme em Paris, não sei qual o título brasileiro), como também seus demais filmes. Curto muito também o Buñuel, particularmente O Anjo Exterminador. Falando nisso, alguém viu J'irais comme un cheval fou, do Arrabal? Vale a pena. Pelo que sei, não passou no Brasil.

O dileto entre os diletos, que vejo e revejo com prazer, é A Festa de Babete, de Gabriel Axe. Certamente, o mais belo e sensível filme que já vi. Mexeu muito comigo também The Map of Human Heart, de Vicent Ward, que creio que não passou no Brasil. No fundo, a busca de uma filha pelo pai, um esquimó que, por circunstâncias da vida, tornou-se fotógrafo em um bombardeiro inglês durante a Segunda Guerra. Comovente.

Mash, de Robert Altman e A Vida de Brian, de Terry Jones, até hoje me fazem rir, particularmente este último. É a mais ferina sátira já feito pelo cinema ao cristianismo. Palombella Rossa, de Nanni Moretti, ataca os comunistas. (Só passou no Brasil quase clandestinamente, em um festival no Rio). Louve-se o engenho do cineasta: consegue fazer um filme dinâmico e divertido que se passa praticamente o tempo todo dentro de uma piscina.

Morri de rir vendo East Side Story, produção alemã da romena Dana Ranga. (Passou em um cinema escondido nos confins de São Paulo. Quando fui ver, tinha apenas três espectadores). Outro filme belíssimo que vi foi Lepota Poroka (em francês, La Beauté du Peché), do iugoslavo Zivko Nikolic, com uma atriz divina, Mira Furlan. Uma moça que vivia nas montanhas da Iugoslávia, vai trabalhar em uma colônia de nudismo na costa montenegrina. O conflito cultural é inevitável.

Em Estocolmo, lá por 71, vi outro belo filme que jamais deu as caras por aqui, The Bus, do turco Tunç Okan. Um grupo de imigrantes turcos clandestinos é jogado dentro de um ônibus, que é abandonado em plena T-Centralen, a estação central do metrô de Estocolmo. Foi o primeiro filme que vi sobre a condição do imigrante na Europa.

Ultimamente, os melhores que vi foram Adeus Lênin, do alemão Wolfgang Becker, e Slogans, do romeno Gjergj Xhuvani, uma sinistra comédia situada nos dias da ditadura de Nicolae Ceaucescu. Muito Além do Jardim, de Hal Ashby é outro filme importante. Nos remete imediatamente a nosso Primeiro Magistrado, o Supremo Apedeuta.

Fora isto, tenho vivido relativamente longe do cinema. Difícil encontrar algo novo nesta idade, dizia. De qualquer forma, com alguma paciência, sempre se cata alguma obra-prima perdida na televisão. Foi o que aconteceu nesta madrugada. Vi Hula Garu (Um Paraíso Havaiano), comovente surpresa do cinema japonês, filme do qual jamais havia ouvido falar, dirigido por Sang-il Lee.

O relato é inverossímil. Estamos em 1965, na pequena cidade mineira de Iwaki, no Japão. Ante a iminência do fechamento das minas, a Joban Coan Mining Company resolve construir um Centro Havaiano. Sob protesto dos moradores, é colocado um anúncio convidando moças que desejem aprender hula, a dança típica do Havaí. O encarregado Yoshimoto convida a senhorita Madoka Hirayama para dar aulas às interessadas.

Reação violenta da comunidade, que acha que todo mundo deve mourejar nas minas e que corpo de baile é coisa de prostitutas. Contra tudo e contra todos, Madoka insiste em seu projeto e vence. Acaba tendo a adesão dos mineiros. Suas garotas provam que se pode criar um mundo onde se pode trabalhar e ao mesmo sorrir.

A história é inverossímil, afirmei. No entanto, as resenhas do filme me informam que o relato é verídico. Que o Parque Havaiano Joban foi inaugurado em 15 de janeiro de 1966. Esperava-se um público de 1000 pessoas durante a semana e umas 3000 nos fins-de-semana e dias de festa. A realidade é que o empreendimento se converteu num sucesso que atraiu 1,5 milhão de pessoas no ano. Em 1990, trocou o nome para Spa Resort Hawaiians e continua evoluindo, embora se mantenha como manancial termal integrado na estrutura social da região.

Madoka Hirayama teria hoje mais de 70 anos e ensinou 318 bailarinas. A demonstração mais cabal de que a grande arte enobrece e é capaz de comover uma aldeia de mineiros, que só viam na vida um sentido, a extração de carvão.

Lindo e comovente. Recomendo vivamente.


23 de junjho de 2012
janer cristaldo

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