"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 23 de junho de 2012

O INÍCIO DE UMA NOVA ESTAÇÃO PARA O MUNDO CIVILIZADO

 

A ideia de que uma só obra pode mudar a história começou a preocupar, ainda jovem, o hoje consagrado crítico literário, historiador e professor da Universidade de Harvard Stephen Greenblatt. Ele é um expoente do new historicism (novo historicismo) e vai à próxima Flip debater Shakespeare (leia texto abaixo). Greenblatt procurava leituras para as férias de verão no sebo da Universidade de Yale e se sentiu atraído pelo erotismo da capa de um volume de poesia com o preço desejável de US$ 0.10. O verão que passou mergulhado em Da Natureza, o longo poema escrito 2 mil anos antes pelo romano Lucrécio, inspirou A Virada - O Nascimento do Mundo Moderno, o livro de Greenblatt contemplado com o último Prêmio Pulitzer e o National Book Award de 2011, lançado agora no Brasil.

A Virada narra a redescoberta, em 1417, do poema de Lucrécio dado como perdido por mil anos. O livro é um tratado visionário sobre a natureza de tudo e foi encontrado num monastério alemão pelo italiano Poggio Bracciolini, então recém-demitido como secretário de um papa corrupto e deposto.

Bracciolini, erudito à caça de obras perdidas da era clássica, no estilo dos humanistas da época, salvou Da Natureza do esquecimento, mandando seu copista reproduzir o livro, que logo se espalhou pela Europa. O efeito dessa decisão tomada antes mesmo de Bracciolini compreender a importância do que tinha nas mãos, se fez sentir, narra Greenblatt, muito além da escuridão do monastério, através da Renascença - e apontou para a modernidade.

Há 2 mil anos, Lucrécio descreveu em Da Natureza um mundo formado por um número infinito de átomos, um mundo sem Deus, onde a busca do prazer deve se dar na Terra pelo homem. Era uma tentativa de nos liberar do medo da morte, interpretou, desde o início, o estudante Greenblatt.

Mas Lucrécio abre o poema com um belíssimo hino a uma deusa, Vênus:
Ó mãe dos Enéadas, prazer dos homens e dos deuses, ó Vênus criadora,
que por sob os astros errantes povoas o navegado mar e as terras férteis em searas, por teu intermédio se concebe todo o gênero de seres vivos e, nascendo, contempla a luz do sol: por isso de ti fogem os ventos, ó deusa
Greenblatt não vê incongruência nesses versos. "Lucrécio queria se apegar ao poder da imaginação como força erótica", diz ele.

Por que decidiu mergulhar na história da perda e recuperação do poema Da Natureza?
Não conhecia a história quando encontrei o livro por acaso, com 18 ou 19 anos. Mas, como passei minha vida profissional estudando a Renascença, me tornei interessado no que chamo de mobilidade cultural. O que acontece quando as coisas são deslocadas e precisam interagir com novo ambiente? Esse é tema recorrente da Renascença e ótimo exemplo é História de Uma Viagem Feita na Terra do Brasil, do Jean de Léry, em 1578. É um livro maravilhoso sobre um encontro em que uma cultura é forçada a interagir com outra, totalmente estrangeira.

Temos exemplos dessa mobilidade em Shakespeare, que quase nunca criava uma trama do nada, adaptava narrativas clássicas.
A recuperação de Lucrécio é emblemática desse tema, da obra fazendo uma reentrada em nova cultura.
O senhor nota que a primeira versão do poema que encontrou tinha uma tradução apenas correta e acredita que mesmo as obras mal traduzidas retêm seu impacto, quando descobertas em outro contexto.

Sim, acredito nisso. Uma antiga fonte de frustração para mim é não poder ler originais em línguas que não domino, especialmente o grego clássico. Mas isso não me impede de sentir a força da Ilíada e da Odisseia. Muito depois de ler a primeira tradução de Da Natureza, consegui ler o original em latim e aí o poder do poema cresceu para mim. Eu tive de ler Os Lusíadas em inglês, sei que não senti o mesmo como se dominasse o português, mas fui tocado pelo poema de Camões e entendo sua importância. Afinal, a tradução repousa sobre a convicção de que algo vai ser transmitido.
A virada do título se refere, na verdade, a múltiplas viradas e começa com a noção epicurista de clinamen, exposta por Lucrécio.

Sim, e você tem em português a palavra declinar, que usa a raiz latina para a virada. Eu destacaria pelo menos três viradas. Para Lucrécio, o Universo é um mundo material, onde não há deuses ou causas misteriosas. O que existe é o acaso e a incerteza com o fato de que os átomos se movimentam a qualquer momento e é impossível localizá-los.
Só a física quântica do século 20 retornou a essa questão, que era considerada uma ideia ridícula, tanto quando Lucrécio escreveu, quanto depois, na Renascença. A segunda virada acontece com os acontecimentos inesperados que levam à redescoberta do livro por Poggio Bracciolini. E a virada maior se dá na mudança lenta do mundo medieval para a modernidade. O conteúdo do livro, que era estrangeiro e até bizarro na Renascença, foi instrumental na evolução para a modernidade.

E como o senhor distingue a progressão dessa mudança, entre a Renascença e o mundo moderno?
Para mim, há o distúrbio fundamental da Renascença, nesse dia do inverno alemão, há 600 anos, quando alguém encontra um manuscrito do tempo de Cícero e Júlio Cesar. Aquela era se define em parte pela redescoberta dos clássicos. Essa foi a tarefa a que se dedicou Poggio Bracciolini, um homem que servia à corte de um papa corrupto, e sua empreitada é a quintessência do Renascimento.

Todo o ser nasce. A natureza experimenta incessantemente. Se uma criatura é capaz de se reproduzir e encontrar alimento, pode estender a vida de sua espécie. E será extinta quando o ambiente se tornar hostil. Lucrécio entendia a extinção das espécies há 2 mil anos, algo viria a violar os preceitos do cristianismo. Esta era uma noção radicalmente moderna, e não podia ser aceita na Renascença.

Por falar em espécies, não acha estranho ler um poema de 2 mil anos, ligar a TV, no século 21, e ouvir um conservador como Rick Santorum, que foi candidato sério a presidente, falando do assunto?
(Risos) É verdade, os Estados Unidos são de uma piedade incomum no mundo contemporâneo. Acredito que haja vários motivos pelos quais os americanos se agarram tanto ao fundamentalismo e me pergunto se um deles não tem a ver com uma reação a deslocamentos provocados pela tecnologia. Uma pesquisa de opinião recente mostrou que 75% dos pastores protestantes acreditam que Adão e Eva são personagens literais.

Como você pode acreditar nisso e ao mesmo tempo acreditar nos últimos 200 anos da ciência? A alternativa da imaginação oferecida por Lucrécio continua encontrando grande resistência no nosso tempo. E veja que ele não estava reagindo ao cristianismo, reagia ao culto de Diana e Apolo. Nossos atletas, quando marcam um gol, olham para os céus, como se alguém lá em cima tivesse chutado. Esse tipo de pensamento mágico traz conforto.
Foi frustrante não encontrar mais fatos sobre a vida de Lucrécio, já que nada emergiu após a recuperação do manuscrito, no século 15?

Não havia informação confiável. O relato de seu tormento erótico após tomar uma "poção do amor" e o suposto suicídio aos 44 anos, feito por São Jerônimo, em 94 a.C., veio de um polemista interessado em lançar luz negativa sobre um filósofo pagão. Sabemos mais sobre Cícero e Ovídio. Compensei essa lacuna mergulhando sobre a vida de Bracciolini, sobre quem conhecemos bastante.

O senhor escreve que Shakespeare foi só uma faceta espetacular de um movimento cultural mais amplo, que incluiu Rafael, Montaigne, Cervantes, dezenas de artistas e escritores. Mas lembra que Da Natureza se reflete na arte primeiro.

É o que é mais interessante, na minha perspectiva. O poema volta ao mundo em 1417, num momento em que suas proposições eram profundamente inaceitáveis. E por quê? O poema poderia ter desaparecido, mas como sobreviveu? Porque foi abraçado por intelectuais, cientistas, mas, acima de tudo, inicialmente por artistas. Ele aparece na Primavera de Botticelli.

Nas obras do excepcionalmente estranho Piero di Cosimo, de Florença. Foi acolhido nos Ensaios de Montaigne, que cita diretamente Da Natureza em mais de cem passagens, ainda que discorde de Lucrécio. É fascinante notar essa aceitação estética do poema, que não depende da tolerância a suas ideias. É uma apreensão de significado que precede em muito o momento, no século 17, quando Galileu se volta para os átomos ou outros cientistas cujo trabalho depois vai desaguar em Isaac Newton.
E isso mostra como a arte tem o poder de antecipar a nossa compreensão do mundo?

Sim, esquecemos como a arte faz avançar ideias que o presente ainda não pode aceitar. Os artistas que compreenderam Lucrécio sabiam que a arte não se opõe à ciência. Lucrécio produziu um dos grandes textos visionários sobre esse encontro. Hoje, podemos olhar para ele e pensar como devemos curar essa divisão entre o artista e o cientista.
Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo
23 de junho de 2012

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