Apartamento pequeno, mobiliário pouco e modesto. O ambiente recendia a
gordura de galinha, entranhado nas paredes manchadas. Chega uma figura baixinha,
ar severo, pouco à vontade. Dirige-se ao Pai: “Esse menino sabe falar ídish?”
(*) O Pai do Menino triste não titubeia: “Claro ! É ótimo aluno”.
Nessa altura, o menino magrela e dentuço empalidece. Aflito, se encolhe. Era dele que aqueles dois estavam falando!
O velho professor franze a testa, tira os óculos e, entre irônico e sádico, dispara: Então, como se diz o ano atual em ídish ? Pronto. Foi a senha para o Apocalipse. Pânico, suor, branco total. O menino ensaia uma resposta, mas ela sai em … inglês.
Sorriso meio debochado, o professor recoloca os óculos e sentencia: “Não dá. O tempo é curto, além disso ele ainda vai precisar das aulas para ler a Torá. Como vai decorar um discurso em ídish?” O Pai insiste (o menino ouve a resposta quase em desespero): “Ele consegue, pode acreditar”. O silêncio da rua dos Artistas foi testemunha do pacto entre aqueles adultos, que cumpriam a obrigação milenar de formalizar a maioridade religiosa do adolescente. A tentativa seria feita.
Durante meses, o mestre, que parecia ter saído de um shtetl(**) imemorial, foi construindo um discurso, rapidamente digerido pelo menino, que o decorava e repetia sem hesitações. Estava gostando da brincadeira, o professor era aguardado com ansiedade.
A rudeza inicial se transformara numa quase amizade. Ante o espanto do professor, o texto aumentava cada vez mais. Por fim, tudo estava pronto para o ritual. Família atenta, amigos engessados em roupas de adulto, duros como a solidão de sua metamorfose mal compreendida, o menino repetiu frases sagradas e discursou por inacreditáveis 15 minutos, numa língua que não dominava, com palavras que pouco ou nada significavam em seu mundo triste e assustado.
Para os adultos, o rebanho ganhava um novilho, carimbo de maioridade religiosa. Para o menino, sobraram, além de alguns prendedores de gravata e livros que lhe presentearam, uma sensação de maior proximidade com o Pai e a certeza de ter ganho a Maratona.
Meses depois, um novo teste. O Dia do Perdão(***). Um grupo ruidoso, solene, se acotovelava numa pequena sala, entoando cantos e preces, flexionando a coluna para trás e para a frente, ensaiando autocríticas e rogando para que o Imaterial, o Impronunciável, lhes garantisse mais um ano de vida.
O menino não conseguia entender por que as mulheres ficavam separadas dos homens.
Seriam pecadoras abomináveis e estavam sendo castigadas? Sua silhueta, tentadora, desviaria olhares e intenções redentoras? Se ser homem era passar vinte e cinco horas em jejum, o menino seguiria os mais velhos, abraçaria a causa e aguentaria a provação. E então …
Num intervalo, o menino sai da sala e desce a rua. Meio zonzo de fome e sede. No boteco da esquina, a imagem que jamais se apagaria. O Pai e o avô batiam um papo ameno e comiam um sanduíche. Um sanduíche !
Mas que jejum era aquele ? Toda a preparação, o discurso, as rezas, as promessas de respeito às regras ancestrais, tudo, absolutamente tudo, em vão. As historinhas que lhe contaram foram implodidas por uma boa média-com-pão-e-manteiga.
Para quebrar o jejum de fantasia, a família se reúne. O menino está triste, pensativo. Mandam-lhe comprar uma pizza. Está fraco, mas, como sempre, obedece. Com a fome dos desesperados, ataca aqueles pedaços triangulares, tão desejados e incomuns em sua mesa frugal. O castigo não demora.
Estômagos vazios são sensíveis a gordura. Põe para fora a iguaria rara e, junto com ela, a cordialidade e a ilusão na sabedoria e na sinceridade dos mais velhos.
22 de setembro de 2012
Jacques Gruman
(*) Idioma falado pelos judeus ashquenazitas.
(**) Aldeia da Europa Oriental.
(***) Yom Kipur. Data que marca o final do Ano Novo judaico.
Nessa altura, o menino magrela e dentuço empalidece. Aflito, se encolhe. Era dele que aqueles dois estavam falando!
O velho professor franze a testa, tira os óculos e, entre irônico e sádico, dispara: Então, como se diz o ano atual em ídish ? Pronto. Foi a senha para o Apocalipse. Pânico, suor, branco total. O menino ensaia uma resposta, mas ela sai em … inglês.
Sorriso meio debochado, o professor recoloca os óculos e sentencia: “Não dá. O tempo é curto, além disso ele ainda vai precisar das aulas para ler a Torá. Como vai decorar um discurso em ídish?” O Pai insiste (o menino ouve a resposta quase em desespero): “Ele consegue, pode acreditar”. O silêncio da rua dos Artistas foi testemunha do pacto entre aqueles adultos, que cumpriam a obrigação milenar de formalizar a maioridade religiosa do adolescente. A tentativa seria feita.
Durante meses, o mestre, que parecia ter saído de um shtetl(**) imemorial, foi construindo um discurso, rapidamente digerido pelo menino, que o decorava e repetia sem hesitações. Estava gostando da brincadeira, o professor era aguardado com ansiedade.
A rudeza inicial se transformara numa quase amizade. Ante o espanto do professor, o texto aumentava cada vez mais. Por fim, tudo estava pronto para o ritual. Família atenta, amigos engessados em roupas de adulto, duros como a solidão de sua metamorfose mal compreendida, o menino repetiu frases sagradas e discursou por inacreditáveis 15 minutos, numa língua que não dominava, com palavras que pouco ou nada significavam em seu mundo triste e assustado.
Para os adultos, o rebanho ganhava um novilho, carimbo de maioridade religiosa. Para o menino, sobraram, além de alguns prendedores de gravata e livros que lhe presentearam, uma sensação de maior proximidade com o Pai e a certeza de ter ganho a Maratona.
Meses depois, um novo teste. O Dia do Perdão(***). Um grupo ruidoso, solene, se acotovelava numa pequena sala, entoando cantos e preces, flexionando a coluna para trás e para a frente, ensaiando autocríticas e rogando para que o Imaterial, o Impronunciável, lhes garantisse mais um ano de vida.
O menino não conseguia entender por que as mulheres ficavam separadas dos homens.
Seriam pecadoras abomináveis e estavam sendo castigadas? Sua silhueta, tentadora, desviaria olhares e intenções redentoras? Se ser homem era passar vinte e cinco horas em jejum, o menino seguiria os mais velhos, abraçaria a causa e aguentaria a provação. E então …
Num intervalo, o menino sai da sala e desce a rua. Meio zonzo de fome e sede. No boteco da esquina, a imagem que jamais se apagaria. O Pai e o avô batiam um papo ameno e comiam um sanduíche. Um sanduíche !
Mas que jejum era aquele ? Toda a preparação, o discurso, as rezas, as promessas de respeito às regras ancestrais, tudo, absolutamente tudo, em vão. As historinhas que lhe contaram foram implodidas por uma boa média-com-pão-e-manteiga.
Para quebrar o jejum de fantasia, a família se reúne. O menino está triste, pensativo. Mandam-lhe comprar uma pizza. Está fraco, mas, como sempre, obedece. Com a fome dos desesperados, ataca aqueles pedaços triangulares, tão desejados e incomuns em sua mesa frugal. O castigo não demora.
Estômagos vazios são sensíveis a gordura. Põe para fora a iguaria rara e, junto com ela, a cordialidade e a ilusão na sabedoria e na sinceridade dos mais velhos.
22 de setembro de 2012
Jacques Gruman
(*) Idioma falado pelos judeus ashquenazitas.
(**) Aldeia da Europa Oriental.
(***) Yom Kipur. Data que marca o final do Ano Novo judaico.
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