"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 22 de setembro de 2012

SALMAN RUSHDIE: "ODEIO O FUNDAMENTALISMO"

Salman Rushdie: “Odeio o fundamentalismo”

O escritor condenado à morte pelo aiatolá Khomeini – que viveu 12 anos escondido – fala dos temores e descobertas da clandestinidade e da necessidade de combater o fanatismo
O escritor Salman Rushdie nas ruas de Nova York em 2010. Ele revela como se livrou da pena de morte dos extremistas que o identificaram como um ser diabólico (Foto: David Howlls/Corbis)


Foram doze anos e meio de solidão. O escritor inglês de origem indiana Salman Rushdie, de 65 anos, resolveu contar tudo e dizer tudo o que pensa sobre um episódio ocorrido no fim do século passado que, além de ter mudado a vida dele, foi também o primeiro sinal de uma onda de fanatismo e intolerância muçulmanos que até hoje reverbera mundo afora.

Em 14 de fevereiro de 1989, uma sentença de morte (fatwa, em árabe. Lê-se fá-tu-a) divulgado pela rádio estatal de Teerã, assinado pelo aiatolá Khomeini, então o líder máximo do Irã, convocava os muçulmanos a perseguir e matar Salman Rushdie por ter escrito um livro contra o Islã, intitulado Os versos satânicos. No original inglês o livro chamou-se The satanic verses, ou “versículos satânicos”, pois se referem a dois versículos colocados e depois retirados do Corão pelo profeta Maomé.

O livro de Rushdie era um romance fantástico, lançado em Londres em 26 de setembro de 1988, sobre dois personagens – o demoníaco Chamchma e o angelical Gibreel. Eles se engalfinham durante um voo transatlântico, provocam o acidente e sobrevivem.

Rushdie quis representar com a dupla de oponentes as duas forças culturais do mundo: a intolerância islâmica e a democracia ocidental.
Em várias passagens, referiu-se ironicamente ao profeta Maomé. “Era uma obra de ficção”, diz, enquanto recebe ÉPOCA na sala da agência literária Wiley, no bairro de Bloomsbury, centro da vida literária londrina. “Eu não sabia das consequências da minha escrita.”

Rushdie foi perseguido simbolicamente por fanáticos muçulmanos de todo o mundo e, na prática, por vários grupos terroristas que começaram a planejar seu assassinato. Recebeu proteção policial da Scotland Yard, a polícia britânica encarregada de combater o terrorismo, e permaneceu clandestino durante os 12 anos seguintes.

O caso Rushdie tornou-se mundialmente famoso, mas nunca foi contado em detalhe.
Nesta semana, ele lança o livro Joseph Anton – no Brasil, pela Companhia das Letras (616 páginas, R$ 54,50, tradução de Donaldson M. Garscagen e José Rubens Siqueira).
O livro conta como foi a sua vida de fugitivo e como escapou de diversos atentados. “Chegou a hora de contar tudo”, diz.
 
+Leia um trecho de Joseph Anton
 
Vestindo um elegante terno cinza escuro, com as pernas levantadas sobre uma poltrona e bebendo um cálice de vinho tinto, Salman Rushdie discorreu sobre o que sentiu enquanto sua cabeça esteve a prêmio – e como conseguiu superar a perseguição.
Ele comenta também a violência islâmica recente no norte da África e revela seus planos para escrever uma série de ficção científica para a televisão.
 
ÉPOCA– Como a fatwa emitida pelo aiatolá Khomeini mudou sua vida e seu trabalho?
Salman Rushdie –
Passei por momentos difíceis, que alteraram minha forma de agir. Meu trabalho, curiosamente, não sofreu mudança. Uma das coisas que aprendi foi ter confiança no que pensava e escrevia.

 
ÉPOCA – Como é manter um método de trabalho literário e, ao mesmo tempo, enfrentar uma perseguição sangrenta?
Rushdie –
Sou um sujeito disciplinado. Escrevo o tempo todo. Isso me ajudou a ficar concentrado durante os anos em que vivi sob proteção policial. Apesar de toda a tensão e dos problemas que enfrentei, consegui fazer umdiário detalhado. Ele me permitiu voltar aos acontecimentos de 1989 com facilidade.

 
ÉPOCA – O senhor diz que não há segurança absoluta, mas graus de insegurança. Pode-se dizer o mesmo sobre a liberdade?
Rushdie –
A liberdade é a questão maior de nosso tempo. Não há segurança nem liberdade total. É preciso lutar por elas e conquistá-las. Pode soar paradoxal, mas a liberdade depende
da segurança das instituições.Não existe outro caminho, senão regimes de direito que garantam o exercício da liberdade – e aqui entram a liberdade de expressão e a criação artística.

 
ÉPOCA – Na clandestinidade, quando o senhor teve mais medo?
Rushdie –
Conto no livro o pavor que senti quando meu filho, Zafar, desapareceu (leia o relato na edição 749 de ÉPOCA – nas bancas ou
no tablet). Não estava mais em casa, minha (ex-)mulher saiu com ele e deixou a casa aberta, com as luzes acesas. Isso fez soar o alarme da polícia. Ela simplesmente esqueceu de me avisar. Na situação em que me encontrava, acuado e escondido, aquilo pareceu uma tragédia. Felizmente, não aconteceu nada. Meu estado de espírito, naqueles 12 anos em que vivi escondido, não era de medo, e sim de depressão. Senti-me o pior dos homens. Passei a me alimentar e me vestir mal. Ainda bem que os amigos me ajudaram a sair da depressão.
 
ÉPOCA – Uma das coisas que o ajudaram parece ter sido o videogame. O mundo explodindo lá fora, seu retrato representado como diabo sendo queimado, e o senhor jogando Super Mario...
Rushdie –
Foi engraçado. Estava isolado, e, apesar de a solidão ser o sonho de qualquer escritor, não é possível escrever e pensar o tempo todo. Então, para relaxar, eu jogava. Tornei-me um dos maiores especialistas em Super Mario do planeta. Hoje estou enferrujado, embora goste de jogar games estúpidos. Sou um admirador de Angry birds. Quando começo a jogar Angry birds no celular, não consigo parar!

 
ÉPOCA – O que o senhor sentiu quando tentou usar uma peruca para passar incógnito nas ruas de Londres?
Rushdie –
Foi patético. A polícia me convenceu de que eu não seria reconhecido com uma peruca da cor do meu cabelo. Aceitei. Foi só descer do carro para notar que todo mundo
apontava, dizendo: “Olha lá o babaca do Salman Rushdie de peruca! Ele está tentando passar despercebido!”. Voltei para o carro morrendo de vergonha. E caí na gargalhada.

 
ÉPOCA – Dois colaboradores seus foram atacados: seu editor norueguês, William Nygaard, quase foi morto a tiros. Seu tradutor japonês, Hitoshi Igarashi, foi assassinado a punhaladas. O senhor procurava saber dos detalhes desses atentados?
Rushdie –
Eu vivia acompanhado por uma equipe de proteção. Era natural que eu quisesse saber tudo o que acontecia em torno de mim e o grau de perigo que corria. Foi chocante
saber que as pessoas que trabalhavam comigo eram aterrorizadas e até mortas. Insistia em perguntar, mas só me falavam do perigo quando ele era iminente e eu tinha de trocar de
esconderijo, às pressas. De resto, não falavam nada. Até para preservar um pouco de minha lucidez.

 
+Entrevistas publicadas em ÉPOCA
 
ÉPOCA – O senhor afirma que foi responsável por ter unido a polícia e o mundo literário de Londres. Foi uma paixão mútua?
Rushdie –
Até o caso de Os versos satânicos, o meio policial desconfiava do literário, e vice-versa. Foi então que as coisas começaram a mudar. Os policiais ficaram amigos dos
intelectuais, e hoje todos vivem em harmonia. As mulheres de letras se sentiram imediatamente atraídas por aqueles rapagões atléticos, bem vestidos e portando armas. Era tudo muito sexy. Rolou muito namoro.

 
ÉPOCA – No livro, o senhor revela ações, táticas, comportamento e até mesmo particularidades da vida privada dos policiais. Isso não é perigoso?
Rushdie –
De forma alguma. Conversei com os policiais sobre o que eu ia contar, e eles não viram problemas. Na verdade, todos os detalhes que eu contei estão em qualquer romance policial sobre a Scotland Yard ou de espionagem. Eu quero que o leitor tenha essa sensação ao ler Joseph Anton, a de mergulhar em uma trama de suspense. Porque foi isso mesmo que eu vivi.

 
ÉPOCA – Sua vida virou um caos, com troca de endereço e fugas à noite, rumo a lugares desconhecidos. Como o senhor lidou com filhos, amigos e amores?
Rushdie –
Meus amigos me ajudaram, emprestaram suas casas, me deram apoio e criaramumcinturão de segurança em torno de mim. Permitiram que eu conseguisse ser eu mesmo, que continuasse a ter afeto, a ver meus filhos e a ter certa dose de vida sentimental. Sou feliz por ter tantos amigos de verdade.

 
ÉPOCA – Por que o senhor escolheu o codinome Joseph Anton? E por que dar esse título ao livro de memórias?
Rushdie –
O nome soa mal. Os policiais me orientaram a adotar um pseudônimo e uma profissão fictícios para tocar a vida com segurança. Recorri a meus escritores preferidos e
fiz listas. Finalmente, me ocorreu acasalar Anton Tchékhov e Joseph Conrad, nascendo assim Joseph Anton. Fiquei aliviado quando o perigo de morte diminuiu em 2002 e o descartei. Quase ninguém conhecia esse codinome. Aí me ocorreu intitular minhas
memórias com ele. Sempre achei bonito livros cujos títulos são nomes: David
Copperfield, Daniel Deronda...

A polícia me convenceu a usar uma peruca. Mas foi só descer do carro para notar que todo mundo apontava para mim: 'Olha o babaca do Rushdie de peruca"
Salman Rushdie
 
ÉPOCA – O senhor afirma que o livro Os versos satânicos é um texto premonitório sobre o mundo da intolerância islâmica em que vivemos. Até que ponto o livro também antecipou o 11 de setembro?
Rushdie –
Os versos satânicos pode ser lido como um prólogo à nova era que começou a surgir em 1989, quando o planeta começou a encolher, e as fronteiras culturais começavam a se abrir. Ele foi publicado um pouco antes da queda do Muro de Berlim e da dissolução
do império soviético. Serviu como faísca para a emergência do radicalismo islâmico no Irã e no Afeganistão e para o surgimento de grupos terroristas, como a al-Qaeda.

 
De alguma forma, meu romance profetiza o 11 de setembro. Queria escrever um livro sobre como o novo entra no mundo. Dois fatores são importantes para a chegada do novo: a migração e a transformação. Escolhi dois personagens antagônicos, ambos atores, o angelical Gibreel Farishta e o diabólico Saladin Chamcha (reminiscência sonora de Gregor Samsa, o protagonista inseto de A metamorfose, de Kafka). Os dois brigam por questões de fé a

 bordo de um avião, provocam um desastre aéreo e são os únicos que sobrevivem a ele. Ora, isso prefigura os atentados aos aviões em 11 de setembro de 2001, quando se exacerbou o conflito entre forças culturais contraditórias, o Ocidente e o islã. O texto
do livro ganhou vida própria. Hoje, ele me diz coisas que eu não sabia quando o escrevi. Obras de ficção em geral escapam das intenções de seu autor.

 
+Tom Holland: “A religião deve ser investigada”
 
ÉPOCA – Que avaliação o senhor faz do radicalismo islâmico recente, como o episódio da perseguição ao filme sobre Maomé que resultou no assassinato dos diplomatas americanos na Líbia?
Rushdie –
Não conheço direito o assunto do filme, então não posso dizer nada. Deixo ao Mitt Romney a tarefa de falar sobre o que não conhece. Odeio o fundamentalismo. É um
movimento de resistência às mudanças históricas. Os fanáticos querem manter o mundo paralisado em crenças mortas. E isso, naturalmente, não é possível. A juventude do Egito, da Líbia, da Síria e da Tunísia iniciou uma onda transformadora. Eles desejam liberdade e melhores condições de vida. Essa mudança não tem nada a ver com religião. O islamismo só sobreviverá se conseguir se reinventar a partir dos princípios democráticos de liberdade de expressão, tolerância religiosa e paz. Enquanto existirem focos de totalitarismo como o
Paquistão, isso vai demorar.

 
+Mohamed ElBaradei: "O Egito virou uma bagunça total"
 
ÉPOCA – O senhor acha que o Paquistão abrigou Osama Bin Laden?
Rushdie –
O regime militar do Paquistão é uma das coisas mais perversas do mundo, porque mantém boas relações com os Estados Unidos, e pratica o radicalismo quase às escondidas. O regime paquistanês se baseia no controle total da vida das pessoas. Bin Laden morava dentro de um complexo militar próximo a Islamabad. Não dá para acreditar que o governo paquistanês não soubesse disso, e não o acobertasse.

 
ÉPOCA – Por que a cultura está no centro dos conflitos entre Ocidente e islamismo?
Rushdie –
Porque acontece um choque de visões de mundo. Uma tende a negar a outra. Trata-se de um conflito menos religioso do que cultural. O problema está na regressão cultural que estamos vivendo, por causa de noções idiotas. O relativismo cultural é uma noção imbecil. É desprezível a ideia de que tenho de respeitar os preconceitos e ideias infames do outro só porque é outro. Se uma comunidade acredita numa religião baseada no assassinato dos inimigos, não tenho de respeitá-la. O relativismo cultural ignora a existência das diversas multiculturas. Todas as culturas do mundo são multiculturas: a europeia, a indiana, a brasileira. É preciso encontrar um modo de convivência de acordo com princípios básicos, o estado de direito e a igualdade.


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ÉPOCA – O senhor mudou sua opinião sobre as mulheres durante esses anos de crise? Elas o decepcionaram?Rushdie – Eu troquei três vezes de mulher durante aqueles anos. As minhas três primeiras, Clarrissa (Luard), Marianne (Wiggins) e Elisabeth (West) foram mais fortes do que eu. Elas me deram apoio e me ajudaram a resistir no momento mais difícil da minha vida. Minha relação com Padma (Lakshmi, modelo e atriz indiana) foi diferente, foi de paixão por uma mulher bem mais nova, da idade de meu filho. Não deu certo, embora tenhamos vivido muitos anos como um casal normal. Hoje, aos 65 anos, estou mais tranquilo nesse aspecto.
 
ÉPOCA – O que aconteceu quando o senhor descobriu que era célebre? E o que mudou desde que sua fama se tornou planetária?
Rushdie –
Comecei a escrever em 1973, e em 1981 eu fiquei famoso porque ganhei o Man Booker Prize pelo romance Os filhos da meia-noite. Não era uma fama mundial como a adquirida com Os versos satânicos, um livro mais comentado do que lido de fato. Eu já estava acostumado a andar e ser notado, assim como acontece hoje, se saio para passear em Londres ou em Nova York. Não é ruim ser famoso. A celebridade mundial que me foi dada pela fatwa me deu acesso a pessoas importantes. Poucos artistas conseguem falar diretamente com um presidente americano, por exemplo. Talvez só meu amigo Bono e eu. Esse privilégio me forneceu material para escrever um romance, Shalimar, o equilibrista (2005), que aborda o ambiente dos superfamosos.

 
ÉPOCA – Como o senhor vive hoje?
Rushdie –
Como um cidadão normal, no vaivém entre Nova York e Londres, onde moram meus dois filhos. Posso andar na rua como um cidadão famoso, mas não perseguido. Posso escrever e dizer o que quero. Meu sonho, para o fim de 2013, é me isolar para escrever um romance. Gosto de revezar vida social intensa com isolamento.

 
ÉPOCA – Um dos aspectos que o senhor levanta no livro é a constatação de que os escritores perderam a importância como figuras públicas – e a ficção deixou de ser relevante. Qual o papel do escritor hoje? Existe um espaço para o ativismo?
Rushdie –
Os escritores foram fundamentais nos movimentos políticos do século XX. Basta lembrar de George Orwell durante a Guerra Fria e Pablo Neruda na resistência à ditadura chilena. Hoje em dia, os escritores foram substituídos por outras classes de artistas. Os atores, por exemplo, têm muito mais prestígio. O Brad Pitt e a Angelina Jolie, com suas campanhas pela erradicação da fome na África, fazem hoje o papel que nós escritores fazíamos nos anos 70 e 80. Vivemos um tempo em que a literatura deixou de ter importância. A ficção é a mais prejudicada. Os editores me dizem que hoje os livros de não-ficção vendem muito mais que os de ficção. Ora, isso é uma mudança cultural. Sou do tempo em que romances vendiam mais que biografias – e que livros de ficção provocavam escândalos.

 
ÉPOCA – O romance Os versos satânicos retira o título de dois versículos do Corão sobre divindades femininas que Maomé havia considerado legítimas, mas logo depois removeu-os do livro sagrado, afirmando que haviam sido colocados em sua boca por Satã. O senhor acha que as mudanças no mundo árabe estão relacionadas de certa forma ao que dizem esses versículos, e que hoje as mulheres muçulmanas estão reclamando um papel importante para si próprias?
Rushdie –
Eu venho de uma família secular, nutrida na cultura islâmica, mas sem fanatismo. Meu pai era ateu, eu também sou. A minha casa sempre foi repleta de mulheres. E elas deram e continuam manifestando seu anseio de liberdade, algo que vai de encontro ao islamismo radical. O islamismo é uma religião machista que oprime as mulheres: esconde o corpo delas, destrói sua sexualidade e as obriga a se manter mudas e passivas. Naturalmente, essa situação terá de mudar. Os movimentos de protesto da Primavera Árabe têm mostrado que as mulheres estão sobressaindo. A grande mudança no mundo árabe virá com a revolução das mulheres.

 
ÉPOCA – O senhor abriu caminho para críticos bem mais violentos da intolerância muçulmana, como Michel Houellebecq, bem como para militantes ateístas. O senhor nunca se manifestou violentamente sobre esses temas, pelo menos até Joseph Anton...
Rushdie –
Atacar o Isã seria dar um tiro no pé. E intelectualmente desonesto. Afinal, minha cultura secular tem raízes na cultura muçulmana. Eu não poderia renegar o que sou. Fico feliz que outros autores tenham coragem para ir além nas questões da intolerância e da sexualidade no mundo muçulmano. Quanto ao ateísmo, não vejo necessidade de militar nesse campo.

 
ÉPOCA – Se vivemos, como o senhor diz, na era da aceleração, como se espalharia hoje a campanha contra o seu livro? As redes sociais teriam um papel importante?
Rushdie –
No fim dos anos 1980, a alta tecnologia então à disposição estava sendo posta a serviço da disseminação de uma visão de mundo preconceituosa e atrasada. Hoje acontece a mesma coisa. Imagino que eu teria mais problemas hoje com a fatwa do que naquele tempo, com a moda das redes sociais. O mundo encolheu ainda mais.

 
ÉPOCA – O senhor é avesso às redes sociais?
Rushdie –
Tenho um perfil no Facebook. Mas só uso para manter contato compessoas próximas. Outro dia publiquei uma declaração e me assustei com a repercussão. De repente, estava com milhares de “amigos”. Nunca mais vou publicar nada ali. A gente
não prevê as consequências do que escreve.

 
ÉPOCA – O e-book vai matar o livro de papel?
Rushdie –
Não acho que o livro digital acabe com o livro em papel. Gosto de ler livros no meu tablet. O e-book é apenas mais um meio de difusão da leitura. Só faz bem à literatura.

 
ÉPOCA – Seu contato com o Brasil tem sido constante. O que o senhor conhece da literatura brasileira?
Rushdie –
Sou sortudo de ter um editor no Brasil que me apresentou a muitas pessoas importantes nas duas vezes em que estive no Brasil para participar da Flip. São os casos de Caetano Veloso e Chico Buarque. Acho Budapeste, de Chico, um romance interessante. Gosto da imaginação e do suspense de Rubem Fonseca. Na verdade, sou até bem informado sobre literatura brasileira. O maior escritor brasileiro é Machado de Assis. Sua trilogia – Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro – é um dos marcos da literatura universal. Machado é um precursor do romance atual. Na juventude, interessei-me muito pelas histórias de Jorge Amado. Cheguei a me encontrar com ele quando ele veio a Londres em um encontro de literatura brasileira. Eu me impressionei com Dona Flor e seus Dois Maridos. Jorge Amado escrevia histórias com a arte de Charles Dickens. David Copperfield, de Dickens, lembra um romance de Jorge Amado.

 
ÉPOCA – A literatura latino-americana influenciou o senhor de alguma forma?
Rushdie –
Sim, muito. Nos mesmos anos de formação em que li Jorge Amado, também me interessei por Jorge Luis Borges e Gabriel García Marquez. Eu fiquei fascinado pela fantasia dos dois, narrada com rigor realista. Na verdade, sou interessado pela linhagem surrealista, de Laurence Sterne, Franz Kafka e Mikhail Bulgákhov. Essa linhagem tem a ver com minha imaginação, que é fantasiosa. Busquei criar um estilo próprio de narrar que fugisse do modelo realista, que hoje está na moda pelo talento de amigos meus como Martin Amis e Ian McEwan.

 
ÉPOCA – O governo iraniano retirou a sentença de morte contra o senhor no fim do século passado, mas, vez por outra, aparece um sheik para fazer mais uma oferta por sua cabeça. A fatwa ainda o prejudica?
Rushdie –
Não. Ela foi promulgada por um homem moribundo no início de 1989, Khomeini, mas ninguém conseguiu encontrar o documento, que foi ditado ao filho e não teve lacre oficial. Em 2002, a polícia secreta me informou que o nível de perigo era baixíssimo e que eu não precisaria mais de escolta. A fatwa foi sumindo aos poucos e hoje é praticamente nula. Não sinto mais perigo.

 
ÉPOCA – No livro o senhor se mostra crítico e distanciado daqueles fatos, daí o uso da terceira pessoa para falar de si próprio. Hoje o senhor se sente mais livre para falar?
Rushdie –
Chegou a hora de falar tudo, de ser mais crítico do que nunca. Até porque estou me retirando da militância literária e política. Quero viver o resto da minha vida escrevendo e contando histórias.
ÉPOCA – O que falta na sua carreira, um prêmio Nobel, talvez?
Rushdie –
Bem... Acho que vocês, jornalistas e leitores, é que têm de dizer se isso coroaria a minha carreira.


22 de setembro de 2012
LUÍS ANTÔNIO GIRON, DE LONDRES

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