Muito mais importante que essa baboseira de aquecimento global causado pela ação do homem é o desperdício de comida, este sim, um absurdo global de autoria humana que daria para alimentar um bilhão de famintos!
Veja matéria de hoje no
Globo:
Dentro de uma
lixeira da Central de Abastecimento (Ceasa) do Rio de Janeiro, há pouco mais de
uma semana, a dona de casa Elizabeth de Moraes separava cebolas inteiras,
batatas menos machucadas, cenouras sem raiz. Limpava tudo com um papel e punha
em um carrinho. Em vez de percorrer barracas, é ali que ela faz a feira da
família. Uma vez por semana, sai de Santa Cruz, onde mora com o marido, uma
filha e três netos, e vai até a Ceasa, em Irajá, onde, segundo a Embrapa
Agroindústria de Alimentos, nada menos do que dez toneladas de alimentos vão
parar no lixo diariamente. Assim Elizabeth diz ter criado seus dez filhos,
contando, semanalmente, com os alimentos descartados por feirantes no local. A
cena carioca é um retrato de proporções mundiais alimentada pelo desperdício,
que, se fosse atacado, abriria espaço para saciar a fome de um bilhão de pessoas
mundo afora, sendo que 19 milhões no Brasil — mais do que os 13 milhões de
brasileiros com fome.
O cálculo
famintos versus desperdício é de pesquisadores da Universidade finlandesa de
Aalto e foi publicado, este mês, na revista americana “Science”. Para outros
especialistas, porém, a conclusão sobre a redução da fome pode ser precipitada,
uma vez que não leva em conta o tipo de alimento descartado e a qualidade do
produto, além da forma de acesso das populações mais pobres aos produtos
agrícolas, considerados commodities. As Nações Unidas cravam que 870 milhões de
pessoas passam fome, seja porque não têm terra — o que dificulta a agricultura
de subsistência — ou porque não têm dinheiro para pagar o preço de
mercado.
Estamos jogando
fora não somente alimentos, mas também água potável (27 metros cúbicos por
habitante do mundo), energia, terra (0.031 hectares de área agricultável),
trabalho e fertilizantes (4,3 quilos).
— As perdas
ocorrem em toda a cadeia produtiva. O consumidor paga por isso — diz Antônio
Gomes, pesquisador da Embrapa.
Só no Brasil,
26,3 milhões de toneladas de alimentos têm o lixo como destino. Deste total,
cerca de 10% se perdem ainda no campo. O maior desperdício, 50%, ocorre no
transporte e manuseio. E 10% vão para a lixeira após a chegada do produto ao
supermercado, quando ele perde qualidade na prateleira, ou simplesmente, quando
comprado em excesso, não é consumido. As centrais de abastecimento espalhadas
pelo país ajudam a engordar a conta: mais de 30% das perdas em toda a cadeia
alimentar acontecem nesses locais.
Um passeio
matinal na Ceasa do Rio é um cenário privilegiado para presenciar comerciantes
descartando caixotes cheios de alimentos no chão. Há produtos que perderam
qualidade no transporte, alguns ao serem embalados, outros por causa do
armazenamento e até na própria disposição nas barracas. Na correria, os
feirantes jogam alimentos uns por cima dos outros, e os estragam. As cenas se
repetem em todas as semanas em feiras livres do Rio de
Janeiro.
Em Botafogo, na
semana passada, um comerciante carregava quatro caixas cheias de alfaces para o
lixo, no fim da feira. Ninguém quis comprar porque o produto murchou demais.
Sobre a perda, ele deu de ombros. Está acostumado, já entra na conta. E, como
ele, muitos outros fazem do alto índice de descarte parte do
cotidiano.
— Dez anos atrás,
fizemos um cálculo da cadeia de alimentos, e concluímos que havia 37 quilos de
hortaliças não consumidas por cada habitante do país. Ainda não refizemos as
contas, mas acompanhamos o cenário e já sabemos que o número quase não se
alterou. Não é à toa que na Ceasa do Rio há, até hoje, uma comunidade do entorno
que se alimenta do lixo que é descartado — analisa
Gomes.
Banco de
alimentos
A Ceasa do Rio
alega dispor de um programa de Banco de Alimentos, em Irajá. A instituição doa,
mensalmente, de 40 a 50 toneladas do que não pode mais ser vendido nos boxes
para 60 instituições cadastradas. Os estoques próprios para consumo, mas sem
valor comercial, vão para o banco, onde são selecionados e separados. Dentro do
projeto do Banco de Alimentos, a central de distribuição também oferece cursos
de reaproveitamento integral do alimento para os responsáveis pelas cozinhas. A
empresa reconheceu, no entanto, que nem todos os comerciantes da Ceasa buscam
rotineiramente o Banco de Alimentos para doar.
Como parte da
tentativa de erradicação da fome, Bancos de Alimentos proliferaram por todo o
país. Mas há uma série de entraves para as doações, que amedrontam empresas.
Segundo a legislação brasileira vigente hoje, as companhias respondem
judicialmente se o alimento causar algum mal à pessoa que o consumir. Sendo
assim, há estabelecimentos, como restaurantes e supermercados, que preferem
descartar produtos em bom estado no lixo a doá-los. Por outro lado,
nutricionistas criticam possíveis mudanças na legislação atual, já que há
empresas dispostas a se livrar do lixo.
O professor da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Renato Maluf, está convencido de
que é preciso separar o joio do trigo para entender a complexidade do problema.
No caso, distinguir as perdas do desperdício. As primeiras se referem ao
cultivo, à colheita, manipulação dos alimentos, embalagem, distribuição etc. Ou
seja, acontecem em algum momento da cadeia produtiva. Já o desperdício acontece
em casa. O especialista acaba de deixar a presidência do Conselho Nacional de
Segurança Alimentar (Consea):
— As perdas podem
ser reduzidas com investimentos em técnicas. Há agricultores que perdem alface
por não saberem manejar o pé da forma correta. Tem também a aparência, o cuidado
na hora de expor o alimento. Outra coisa é o desperdício. Ele é questão de
educação alimentar, tem a ver com excesso de compra, má gestão dos alimentos em
casa, não aproveitamento integral dos talos, cascas, entre outros. E isso não se
muda da noite para o dia. Há muito preconceito
envolvido.
Mal do
século
Maluf não
concorda com a relação direta feita pelo estudo de Aalto entre desperdício e
redução da fome, pois ressalta que o problema não é relacionado à quantidade de
alimentos disponíveis, mas ao acesso. A grande pergunta para ele é: se houvesse
mais alimento disponível, ele iria parar nas mãos das camadas pobres? Nesse
ponto, como o professor ressaltou, é necessário pensar em muito mais do que
doação de alimentos, mas também na possibilidade de compra de cada habitante do
planeta sustentar sua dieta alimentar.
Em pleno século
XXI, 870 milhões de pessoas vão dormir diariamente com fome. Isso significa que
12,5% da população mundial estão subnutridas, segundo a Organização das Nações
Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês). A propósito da
divulgação dos novos números, seu diretor-geral, o brasileiro José Graziano da
Silva, escreveu: “não há escassez de oferta ou deficiência tecnológica que
justifique esses indicadores”.
Há de se
ressaltar, ainda de acordo com o relatório da FAO, intitulado “O Estado da
Insegurança Alimentar no Mundo”, que o número total de pessoas famintas no mundo
diminuiu em 132 milhões entre 1990 e 2012. E o Brasil aparece no documento como
exemplo, já que o percentual no país caiu de 14,9%, no período de 1990 a 1992,
para 6,9%, nos anos de 2010 a 2012.
Se o país viu a
fome diminuir quase à metade nos últimos anos, o fenômeno teve pouco a ver com a
redução do desperdício e mudanças na cadeia produtiva em solo brasileiro. E,
quando elas ocorrem, segundo especialistas, é, na maior parte das vezes, por
exigências feitas pelo mercado externo. São condicionantes que passam por
exigências fitossanitárias, regras de embalagem, formas de acesso a mercados. Há
casos em que os mesmos produtores de agronegócio têm uma cadeia de embalagem e
de distribuição mais cuidadosa para a exportação, e um padrão menos exigente
para os produtos vendidos no mercado interno.
Uso incorreto dos
recursos
Além do
consumidor pagar o preço da ineficiência do mercado, o desperdício se traduz em
mau uso dos recursos naturais do país, como ressaltou o professor
Maluf:
— A grande
questão do desperdício e das perdas é que temos sobreuso dos recursos naturais
para uma produção que se perde. Poderíamos ter uma produção maior, pressionando
menos o meio ambiente, gastando menos energia, com áreas
menores.
O pesquisador
defende a ideia do circuito curto, no qual pequenos produtores fazem a
distribuição voltada para uma área mais próxima. O modelo encurta distâncias e
diminui as perdas. A opinião é compartilhada por uma das mais respeitadas
autoras da área de Segurança Alimentar no mundo, a indiana Vandana
Shiva.
— As longas
distâncias e a distribuição centralizada também contribuem para o desperdício. O
modelo industrial que destrói ecossistemas e impõe a monocultura só agrava o
problema. Além disso, é preciso lembrar que apenas 2% da soja produzida nos
Estados Unidos é para fins alimentares. Fenômeno parecido acontece no Brasil —
afirma Shiva. — O primeiro passo para acabar com o problema é trazer de volta a
diversidade de produção para as fazendas. Assim, também se garante geração de
renda para os agricultores, reduzindo a fome.
Há, por um lado,
mudanças que dependem de empresas, políticas públicas e mais cobrança do poder
público. Por outro, há atitudes que dependem da sociedade. Pensando nisso, a ONG
internacional Oxfam acaba de lançar um manual sobre o desperdício para os
consumidores. Entre as dicas, estão ações como aproveitar ao máximo os
alimentos, pensar em receitas específicas para usar os que estão prestes a
estragar na geladeira e consumir produtos de acordo com a estação. Segundo um
dos coordenadores da campanha no Brasil, Rafael Georges, o objetivo é
conscientizar as pessoas de que um terço dos alimentos se perde em toda a
cadeia:
— O consumidor
precisa pensar na origem do produto. Alimentos distribuídos por pequenos
produtores, frescos e não processados, exigem muito menos energia, fertilizantes
e são mais diversos.
Filme
verdade
O documento
ganhou o título de “A transformação do sistema alimentar: utilizando o poder do
consumidor para criar um futuro alimentar justo” e pode ser baixado na internet,
pelo endereço eletrônico http://issuu.com/campanhacresca. A pesquisa ressalta
também o excesso de consumo, que acontece nos países desenvolvidos. A maioria
dos alimentos do mundo está no Norte e no Ocidente, sendo insuficiente em outros
lugares. Na Europa, os mercados e estabelecimentos comerciais têm alimentos em
quantidades suficientes para oferecer mais de 3 mil calorias por dia a toda e
qualquer pessoa. Nos Estados Unidos, esse número gira em torno de 3.600
calorias. Em média, uma pessoa precisa ingerir por volta de 2 mil calorias por
dia.
No Brasil, os
excessos são menores, os maiores problemas são de fato as perdas da produção até
o consumo. E não é recente. Há 17 anos, uma produção cinematográfica, de 1989,
que fez a cadeia produtiva de um tomate se tornar protagonista de um
curta-metragem, foi eleito, pela crítica europeia, como um dos cem mais
importantes do século.
O documentário
“Ilha das Flores”, de Jorge Furtado, mostrava a problemática da sociedade de
consumo, a riqueza e a desigualdade. O filme ajudou a refletir sobre o estágio
em que chegou o ser humano em busca de alimento, e diante da abundância que há
nas prateleiras dos supermercados. E ainda mostrava as perdas na cadeia de
produção de alimentos, da colheita até chegar ao supermercado, e o desperdício
que ocorre na hora do consumo. Por fim, o tomate apodrece e acaba no lixão, onde
pessoas disputam os restos de comida, mas só depois de rejeitados pelos porcos
criados no local.
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