"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 5 de maio de 2012

A NOVA E ÚLTIMA RELIGIÃO


Há uns bons dez anos, escrevi que quem viu muito bem o vazio de fé que assolaria o Ocidente foi o cineasta italiano Nanni Moretti, em Palombella Rossa. O filme é de 89, significativamente o ano em que caiu o Muro de Berlim. A história tem como personagem principal um deputado comunista que, do dia para a noite, perdeu a memória.

A cena final é emblemática: em uma auto-estrada, centenas de jovens correm para saudar o sol. Está inaugurada a nova religião, o culto da natureza. Não por acaso, o interlocutor privilegiado do Dalai-lama - palavra que modestamente significa Oceano de Sabedoria - no Brasil é Fernando Gabeira, ex-guerrilheiro marxista que trocou sua fé na História pela militância ecológica. Gyatso intuiu rapidamente esta virada ocidental e sempre insiste, do alto de seus parangolés, na defesa do meio ambiente.

Leio no El País de hoje: "O câmbio climático mobilizou cientistas que o estudam, engenheiros que buscam soluções tecnológicas e economistas que as medem. E começa também a tomar uma dimensão espiritual que o está convertendo, na opinião de alguns, na nova religião do século XXI. Uma nova espiritualidade ecológica. A linguagem messiânica e os instrumentos quase religiosos que se utilizam rompem os esquemas discursivos e calam em uma opinião pública mais cética ante causas do passado".

Que o digam os ornitólogos que me bicam. Seu zelo é religioso. Ante a hipótese de extinção do macuquinho do banhado, brandem o apocalipse. Sem pretender analisar o tal de aquecimento global - já que não tenho instrumentos para tanto - desconfio do dito. Pois é pregado com a mesma ira sagrada de João de Patmos. Apostar no apocalipse é aposta confortável. Pois apocalipse não é pra já. É sempre mais adiante. Assim, enquanto não ocorre, seus profetas não são desmentidos.

Em fins do anos passado - conta o jornal - Al Gore desembarcou em Sevilha para falar de seu movimento contra o câmbio climático. Em seu afã de chegar aos interlocutores, Gore, que é profundamente religioso, usa frases como: "A Noé foi dito que salvasse as espécies vivas e isto hoje continua sendo nossa obrigação. Antes de pregar aos embaixadores ou discípulos que fazem parte de seu movimento, 1.700 em todo o planeta, lhes pede uma "conexão espiritual".

Para o biólogo Miguel Delibes de Castro, "a estrutura que Gore organizou é quase religiosa, com discípulos que transmitem a boa nova, como Jesus Cristo". Para Miguel Ferrer, biólogo, "as correntes ecologistas integristas têm muitas características comuns com escolas baseadas em crenças religiosas. Cada vez se ouve mais o discurso de que o homem é o ser malvado que provoca destruição e deve ser expulso dos últimos paraísos".

Um dos 200 embaixadores de Al Gore na Espanha é Juan Negrillo. Interrogado sobre a conexão entre seu discurso e o sentir religioso, disse: "Todas as religiões têm suas raízes na fé, e nesse sentido se pode confundir a mensagem ecologista e a defesa do clima como uma mensagem religiosa, porque como não podemos tocar, cheirar, pesar ou ver o CO2, é quase uma questão de fé na comunidade científica". Quem não ouviu falar da hipótese Gaia, de James Lovelock **, que considerava a Terra como um ser vivo? Aqui no Brasil, tivemos um maluco que ganhou fama como ecologista, o José Lutzenberger, que acreditava profundamente nessa teoria mística.

"Mas o que vamos fazer primeiro: desvendar esta Maravilha, ou vamos continuar como um câncer no organismo de Gaia, devastando, fazendo extinções em massa, toxificando até que não haja volta?" - escreveu Lutzenberger - . E continuou:

"Quando daquela ameaça mortal que foi a crise da poluição do oxigênio, que quase extinguiu as formas de vida então existentes, Gaia, em vez de sucumbir, soube tirar proveito. Transformou um inimigo feroz em poderoso aliado, fator de mais vida, de vida mais complexa, mais perfeita, mais diversificada, mais harmônica - uma estonteante transcendência!"

Claro que não podia faltar a ameaça do apocalipse, com uma esperança de redenção para o ser humano: "Entretanto, a continuar a cacofonia atual, o desastre será total. Para nós! Talvez nem tanto para Gaia. Gaia tem muitos recursos, tem muito tempo. Com novas formas de vida encontrará saída. Sobram-lhe ainda uns cinco bilhões de anos até que o Sol, em sua penúltima fase evolutiva, ao tornar-se "gigante vermelho", venha expandir-se até aqui, antes de apagar-se lentamente. Gaia será recirculada nos gases incandescentes do Sol, assim como cada um de nós seremos recirculados no solo".

A maluquice dos ecologistas chegou a tal ponto que houve quem visse na Internet - talvez o próprio Lutzenberger, agora não lembro - a consecução da existência de Gaia. A Web seria Gaia estabelecendo sua rede de neurônios.

Volto à reportagem do El País. Para o escritor José Antonio Marina, "a segunda metade do século XX contemplou o auge de múltiplos movimentos religiosos, espirituais e espiritistas, caracterizados por uma mistura de elementos diversos. Um deles prolongou o fervor ecológico dos últimos decênios. Nasceu possivelmente do movimento hippy, de sua volta à natureza, uniu-se com um certo panteísmo, que se voltava para a Terra como um ser vivo, com o qual se estabelecia uma relação mística. Admirou-se a relação com a natureza das antigas culturas, a Pacha Mama, o respeito das tribos americanas. Teorias como a Deep Ecology exaltaram o valor do mundo vegetal, a ponto de comparar o corte de um bosque com o assassinato de judeus em um campo de concentração".

Decididamente, o ser humano não tem cura. Deus morto, Deus posto. Se um deus está em declínio, criam-se outros. Explorando sempre aqueles elementos constitutivos de toda religião, o medo da morte e a esperança de salvação. Para amedrontar os novos crentes, brande-se o apocalipse.

Nada de novo sob o sol.

* Quinta-feira, fevereiro 14, 2008
** Em recente entrevista ao site Msnbc.com - 23 de abril - Lovelock diz ter sido alarmista: "cometi um erro". Os devotos de Al Gore e Lutzenberg podem retirar os santos do andor.

05 de maio de 2012
janer cristaldo

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