Já no Êxodo, o Senhor castiga os egípcios com uma praga:
Então disse o Senhor a Moisés: Quanto aos gafanhotos, estende a tua mão sobre a terra do Egito, para que venham eles sobre a terra do Egito e comam toda erva da terra, tudo o que deixou a saraiva. Então estendeu Moisés sua vara sobre a terra do Egito, e o Senhor trouxe sobre a terra um vento oriental todo aquele dia e toda aquela noite; e, quando amanheceu, o vento oriental trouxe os gafanhotos. Subiram, pois, os gafanhotos sobre toda a terra do Egito e pousaram sobre todos os seus termos; tão numerosos foram, que antes destes nunca houve tantos, nem depois deles haverá. Pois cobriram a face de toda a terra, de modo que a terra se escureceu; e comeram toda a erva da terra e todo o fruto das árvores, que deixara a saraiva; nada verde ficou, nem de árvore nem de erva do campo, por toda a terra do Egito.
Mais tarde, no Apocalipse, gafanhoto continua sendo praga: quando o quinto anjo toca sua trombeta, “da fumaça saíram gafanhotos sobre a terra; e foi-lhes dado poder, como o que têm os escorpiões da terra”.
Mas antes do Apocalipse, no Novo Testamento, mais precisamente em Mateus, gafanhoto em vez de ser praga vira alimento: “Ora, João usava uma veste de pelos de camelo, e um cinto de couro em torno de seus lombos; e alimentava-se de gafanhotos”.
Tudo que se move é comestível, dizem as gentes. Lemos nos jornais de ontem que a FAO (Organização da ONU para a Agricultura e a Alimentação) está defendendo o consumo de insetos para combater a fome. Pelo jeito, três mil ou mais anos depois, voltamos aos tempos de bíblica penúria.
“Nossa mensagem é: comam insetos, os insetos são abundantes. Eles são uma fonte rica em proteínas e minerais” – diz Eva Ursula Müller, diretora do departamento de política econômica das florestas. O estudo da FAO defende a importância dos insetos como fonte de proteínas tanto para a alimentação humana quanto para a produção de ração para gado. Segundo a agência, existe um potencial inexplorado na criação de insetos, que é de baixo custo e ecológica.
A FAO estima que mais de 1.900 espécies de insetos já são consumidas em diferentes culturas. Os mais comuns são besouros, lagartas, abelhas, vespas, formigas, grilos e gafanhotos - que, por exemplo, têm maior concentração de ferro que a carne bovina. “Um terço da população mundial come insetos porque eles são deliciosos e nutritivos – explica Eva -. Eles podem ser comidos com todos os molhos, inteiros ou reduzidos a pó ou pasta e incorporados a outros alimentos”.
Pode ser. Pessoalmente, continuo preferindo bovinos, ovinos e suínos. Mas já comi alguns moluscos que nem todo mortal enfrenta, como navajas e percebes. Em verdade, conheço muita gente que sequer ousa degustar escargots. Nos pagos onde nasci, camarões sempre foram vistos com certo asco. Ostras, nem pensar. A propósito, Santa Catarina é talvez o Estado que mais produz ostras no país. Mas os nativos não ousam comer ostras em seu melhor estado, ou seja, cruas. Comem-nas ao bafo ou cozidas. Ou seja, reduzem um molusco nobre e sofisticado à vulgar condição de molusco na panela.
De minha parte, sou curioso em matéria de gastronomia e, por curiosidade, já degustei até formigas. No caso, as culonas da Colômbia, trazidas por uma boa amiga. Ou seja, as bundudas. Não sei se serão as mesmas içás brasileiras, em todo caso se assemelham. São crocantes e não têm gosto algum.
Suponho que o nosso homem urbano vai resistir à dieta proposta pela FAO. Ou talvez não. Minha filha, que já entendeu São Paulo, costuma dizer: “se oferecerem merda ao paulistano e cobrarem caro pela merda, ele a come com gosto”. Nestes dias em que a FAO propõe insetos, o suplemento Paladar, do Estadão, conta que o badalado chef Alex Atala exportou para a Escandinávia a idéia do consumo de içás.
Os caçadores de ingredientes do Nordic Food Lab, responsáveis pela descoberta de sabores para o restaurante Noma, de René Redzepi, o segundo melhor restaurante do mundo no ranking da revista Restaurant, foram mordidos pela idéia. Ninguém come inseto na Escandinávia, mas o sabor de capim-limão da içá amazônica inspirou o grupo de Mark Emil Hermansen. Resultado: neste ano, o laboratório recebeu financiamento de 3,5 milhões de coroas dinamarquesas para pesquisar insetos comestíveis. Diz o Estadão:
Certa vez uma porção de maniuara, a saúva que ferra, foi oferecida em forma de caldo a Alex Atala no restaurante de dona Brazi, filha de índia baré e faladora de nheengatu (a língua geral dos índios), em São Gabriel da Cachoeira (AM). "Que erva tem aqui?", perguntou o chef. "Formiga", respondeu a cozinheira. "Não, tem alguma coisa parecida com capim-limão. O que vai nesse caldo?", ele insistiu. E ela, sem perder o rebolado: "Formiga!"
Pouco tempo depois, um pacote de formiga e a própria dona Brazi chegaram a São Paulo, a convite de Atala, para a edição de 2009 do Paladar - Cozinha do Brasil. No mesmo ano, dona Brazi voltou para servir um jantar no restaurante Tordesilhas, de Mara Salles. Deixou lá uma porção de formiguinhas e a feitura do chibé (caldo com farinha que ficou bastante tempo no cardápio da casa). O Cozinha do Brasil nunca mais seria o mesmo. As maniuaras, que fazem parte da dieta das tribos indígenas do Alto Rio Negro (AM), deram volta ao mundo, foram parar no laboratório do Noma, na Dinamarca, e aportaram com força no evento deste ano. Cantadas em prosa e verso pelos chefs, foram servidas sobre abacaxi na aula de encerramento de Alex Atala; no molho com tucupi preparado por Paulo Yoller e transformado em maionese de acompanhar hambúrguer, além de pousarem na maminha grelhada de Leo Botto. A convite dos chefs, as formigas perambularam pela cozinha brasileira, que parece assimilar aos poucos sua forma de trabalho coletivo, trocando receitas, ingredientes e idéias.
Se no Noma formiga é plat de resistance, em breve será coqueluche em São Paulo. Mas se a FAO acha que insetos podem ser a solução para a fome no mundo, que vá tirando o cavalinho da chuva. Dentro em pouco, comer formigas será permissível apenas a uma clientela abastada.
15 de maio de 2013
janer cristaldo
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