Mais irritante que o intelectual, só mesmo o intelectual militante. Seja de esquerda, seja de direita, se é que estas palavras ainda têm algum sentido – escrevi ontem. Marco Antonio quer saber:
- Por que diabos, caras do nível do Janer Cristaldo insistem em dizer que não há mais sentido em se falar em "direita e esquerda"?
Ora, quando nos anos 70 a China inaugurou um monumento a Pinochet em Pequim, e Moscou apoiava Idi Amin Dada em Uganda, já não tinha mais sentido falar em direita e esquerda. Quando escrevi sobre isto, um colega de Filosofia, guerrilheiro urbano, veio preocupado me perguntar: de onde tiraste isto?
Eu havia tirado de uma entrevista no Jornal do Brasil, com o chanceler da China. Na verdade, as idéias de esquerda e direita – a esquerda vista como do bem e revolucionária, a direita como encarnação do mal e avessa a todo progresso – há muito vinham desmoronando.
Marco Antonio volta à carga:
- Quem está aproveitando muito bem esse pensamento consagrado é a própria esquerda. Devem adorar ver os poucos seres pensantes que ainda existem alegar que eles não existem e que não faz sentido algum entabular raciocínios dirigidos aos polos. Nesse meio tempo, terreno é tomado e políticas são enfiadas goela abaixo sem que ninguém perceba, afinal, não existe mais esse negócio de esquerda e direita, não é mesmo?
Sei. Quando as esquerdas defendem as falcatruas da direita, as esquerdas continuam sendo esquerdas. Mas não é bem assim. Que o diga Clóvis Rossi. Em crônica de 2005, afirmou: "É um caso de estudo para a ciência política universal. Já escrevi neste espaço uma e outra vez que o PT fez a mais radical e rápida guinada para a direita de que se tem notícia na história partidária do planeta".
Isto é: se o PT se revela corrupto, ele não é mais esquerda. É direita, porque só a direita é corrupta. Mesmo que o PT seja hoje o mesmo desde que nasceu, mesmo que os grandes implicados na corrupção - Genoíno, Mercadante, Zé Dirceu, Lula - sejam seus pais fundadores. Segundo Rossi, o PT guinou para a direita. E por que guinou para a direita? Porque suas falcatruas foram trazidas à tona. Permanecessem submersas, o partido continuaria sendo de esquerda. Quem nasceu de sangue azul, jamais será plebeu.
Se bem que, para as esquerdas, elas existem, sem dúvida alguma. É fácil ouvir: “nós, esquerdistas”. Já a direita é mais pudenda. Jamais ouviremos “nós, da direita”. Neste sentido, ao menos para efeitos de argumentação, cabe falar em direita ou esquerda. Mas seus conceitos de berço há muito se perderam na poeira da História.
Triste sina a da direita no Brasil – escrevi em 2005 –. Em países mais civilizados, ser de direita é apenas não concordar com as propostas da esquerda, direito legítimo de todo cidadão. No Brasil, direita significa portar toda a infâmia do mundo. A afirmação de Clóvis Rossi é o que os franceses chamam de glissement idéologique – escorregão ideológico. O conceito de esquerda sempre muda, à medida em que se corrompe. A direita é a boceta de Pandora, o repositório de todos os males do mundo, inclusive os das esquerdas. Pois quando as esquerdas cometem crimes - ou "erros", como preferem seus líderes - é que não eram de esquerda, mas de direita.
As esquerdas jamais cometem crimes. Segundo Dona Dilma, apenas malfeitos. Para o Tarso Genro, são desvios. O stalinismo, costuma dizer o Genro, foi apenas um desvio do marxismo. Esta é a defesa de muitas das viúvas do Kremlin, para as quais até hoje nenhuma nação atingiu a excelsa condição do comunismo. Por isso afundaram. É preciso, pois, continuar lutando pela Idéia, como se dizia então. Pelas manhãs que cantam.
O PT, partido que nasce do ventre de uma mentira secular, mesmo ao tentar reerguer-se continua mentindo. Ainda em 2005, em sabatina organizada pela Folha de São Paulo, Tarso Genro, então presidente fresquinho do partido, foi buscar situações análogas em outros partidos de centro-esquerda no mundo, como os democratas cristãos italianos e o partido socialista espanhol. "Isso tem algumas explicações que são de natureza histórica e que diz respeito a questões filosóficas, teóricas, profundas e questões relacionadas com responsabilidades individuais", disse o mago das palavras.
Em verdade, não disse nada, sua explicação e explicação nenhuma são a mesma coisa. Mas conseguiu um milagre de retórica: mesmo sem dizer nada, mentiu. As situações análogas às do PT não devem ser buscadas nas sociais-democracias européias, pois nelas não estão nem nunca estiveram as origens de seu partido.
Pergunta a quem interessar possa: Quando os EUA combatem a tirania de Bashar al-Assad e Putin a defende, quem é de direita e quem é esquerda? Quando o PT defende os mensaleiros? É ainda um partido de esquerda ou virou direita? Sou todo ouvidos.
As origens do PT estão nas ideologias que empestaram o século passado, no bolchevismo, maoísmo, trotskismo, polpotismo, no comunismo albanês. Todas elas de esquerda. Os quadros do partido eram egressos destas doutrinas e sempre condenaram as sociais-democracias, às quais atribuíam a pecha de revisionistas. O que está sendo derrubado, hoje, no Brasil, é o muro de Berlim mental das esquerdas tupiniquins, 24 anos após a queda do muro de concreto. A estrela vermelha, hoje cadente no Brasil, nunca foi símbolo de social-democracia alguma, mas insígnia do Exército Soviético. Nos anos 90, foi arrancada de todos os prédios do poder na ex-URSS. Mas permaneceu pregada no peito das sedizentes esquerdas latino-americanas.
O glissement ideológico é muito usual na França, país onde surgiu a expressão. Que é a extrema direita? Extrema direita é um partido de direita que adquiriu projeção e ameaça a hegemonia das ditas esquerdas. É o caso de Le Pen. Quando o Front National começou a despontar nas pesquisas, o líder da direita francesa de repente foi promovido à extrema-direita. Quando não a nazista. O mesmo está acontecendo hoje na França, com as manifestações contra o casamento das neobichas. Quando o movimento adquiriu proporções de sete dígitos, virou imediatamente extremam direita.
Enquanto isso, François Mitterrand até hoje é cultuado como socialista. Há uma história pouco conhecida no Brasil - et pour cause - que gosto de contar. A eleição de Mitterrand é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês.
Defensor de uma Argélia francesa, Mitterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: "Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política". Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: "A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra".
Um golpe de imprensa empanava sua trajetória, o falso atentado nas cercanias do Luxembourg. Na noite de 15 de outubro de 59, ao sair da brasserie Lipp, Mitterrand, então senador pela Nièvre, sentiu-se perseguido por um carro. Ele faz um desvio pela avenue de l’Observatoire, pára sua 403, pula uma cerca viva e se joga de bruços na grama. Uma rajada de metralhadora é disparada sobre seu carro.
No dia seguinte, o fato está na primeira página de todos os jornais, do Le Monde ao Humanité. Este último, jornal oficial do PC francês, pede a dissolução das "quadrilhas fascistas". O que não deixa de ser surpreendente. No ano anterior, como candidato às eleições em Nièvre, Mitterrand se apresentava como um baluarte contra o comunismo: "Posso afirmar, sob o controle dos nivernais, que fiz o comunismo recuar neste departamento. Eu lutarei sem fraquejar para economizar à França os horrores de uma ditadura coletivista".
Aos 43 anos, o político ambicioso vira herói. A glória é efêmera. Três dias depois, o jornal Rivarol, entrevista um dos agressores de Mitterrand, que afirma ter sido o próprio Mitterrand que encomendara o atentado, para fazer subir sua cota de popularidade. O desmonte da farsa caiu no vazio. Processado por ultraje à magistratura, após a cassação de sua imunidade parlamentar, Mitterrand será beneficiado por um non-lieu, como também seus "agressores".
Ex-colaborador de um governo pró-nazista, condecorado por este mesmo governo, mentor da guerra na Argélia e responsável pela tortura de milhares de argelinos, anticomunista ferrenho numa França que sempre nutriu simpatias pelo regime soviético, farsante vulgar capaz de forjar um atentado para ganhar votos, nada disto impediu Mitterrand de derrotar Giscard em 81, com 52,22% dos votos expressos, e de eleger-se por mais um setenato em 88. Seu ar bonachão lhe valeu o apodo de Tonton (titio). Seu estilo e suas obras faraônicas mudaram um pouco o simpático apelido. Passou a ser chamado, por obra do Canard Enchainé, de Tontonkhamon. Como faraó viveu e como faraó morreu, dando-se ao luxo de organizar o cerimonial de sua própria morte, dispondo até mesmo a posição, na foto oficial das exéquias, da mulher e da filha de uma amante.
Mas o nazista horrendo da extrema direita continua sendo Le Pen – que nunca foi condecorado pelos nazistas - e agora sua filha, Marine, que assumiu a liderança do Front National. Mitterrand, até hoje, continua sendo cultuado como líder socialista.
É o glissement ideológico em ação. Os conceitos de esquerda e direita mudam conforme o rumo dos ventos. Hoje, são os trotskistas do PSOL e símiles que pretendem empunhar a bandeira da vraie gauche. Até o PT está virando direita. Exceto para os pais fundadores do partido. Que só admitem, no máximo, malfeitos ou desvios.
30 de maio de 2013
janer cristaldo
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