“Eu sou um cão imperialista; eu sou o verme dos arrozais”! — assim começava a autocrítica de um alto dirigente chinês, creio que Peng Dehuai, por ousar criticar a Revolução Cultural de Mao Tsé-tung, que exterminou milhares de inocentes.
Talvez eu seja mesmo um “cão imperialista” porque, outro dia, eu errei. Sim. Errei na avaliação do primeiro dia das manifestações contra o aumento das passagens em SP. Falei na TV sobre o que me pareceu um bando de irresponsáveis pequenos burgueses fazendo provocações por 20 centavos. Era muito mais que isso, apesar de parecer assim. Pois eu, “lacaio da direita fascista”, fiz um erro de avaliação.
Este movimento que começou outro dia tinha toda a cara de anarquismo inútil. E (quem acredita?), critiquei-o porque temia que tanta energia fosse gasta em bobagens, quando há graves problemas a enfrentar no Brasil. Eu falei em “ausência de causas”, em “revolta sem rumo”.
Mas, a partir de quinta-feira, com a violência maior da polícia, ficou claro que o movimento expressava uma inquietação que tardara muito no país pois, logo que eu comecei a escrever em 1992 (quando muitos manifestantes estavam nascendo), faltava o retorno de algo como os “caras pintadas” — os jovens derrubaram um presidente.
Mas, não falo por justificar-me. Erros se explicam mas não se justificam, como diziam no serviço militar. Portanto, errei.
Mas agora peço atenção (e uma pausa nos esculachos contra mim) aos jovens que me leem, para algumas linhas sobre este fenômeno que surgiu nas redes sociais e em milhares de “sacos cheios” por tanta paralisia política no Brasil e no mundo.
Hoje eu acho que o movimento Passe Livre expandiu-se como uma força política original, até mais rica do que os “caras pintadas”, justamente porque não tem um rumo, um objetivo certo a priori. Assim, começaram vários fatos novos em países árabes, na Europa e USA. E volto a dizer que essa ausência de rumos é muito dinâmica e mutante. Como cantou Cazuza: “As ideias não correspondem mais aos fatos”, que são hoje muito mais complexos do que as interpretações que eram disponíveis, entre progressistas e reacionários.
Como bem escreveu Carlos Diegues: “O movimento é importante porque talvez o mundo tenha perdido a esperança em mudanças radicais. Talvez porque a ‘revolução’ tenha perdido prestígio para a mobilidade social. Talvez por não nos sentirmos mais representados por nenhuma força política (...) os jovens do Movimento Passe Livre trazem agora para Rio de Janeiro e São Paulo e outros estados esse novo estilo de contestação, típico do século XXI — uma contestação pontual, sem propriamente projeto de nação ou de sociedade.” É isso.
Não vivemos diante de “acontecimentos”, mas só de incertezas, de “não acontecimentos”. Na mídia, só vemos narrativas de fracassos, de impunidades, de “quase vitórias”, de derrotas diante do Mal, do bruto e do escroto.
O mundo está em crise de representatividade. Essa perplexidade provoca a busca de novos procedimentos, de novas ideologias, de uma análise mais cética diante de velhas certezas. E toda essa energia tem de ser canalizada para melhorar as condições de vida do Brasil, desde o desprezo com que se tratam os passageiros pobres de ônibus, passando pelo escândalo ecológico, passando pela velhice do Código Penal do país que legitima a corrupção institucionalizada. O importante nessas novas manifestações é que elas (graças a Deus) não querem explicar a complexidade do mundo com umas poucas causas onde se trancam os fatos.
Eu sei, eu sei que é difícil escapar do “ideologismo; sei que a ideia de complexidade é vista como “frescura” e que macho mesmo é simplista, radical, totalizante. Mas, no mundo atual, a inovação está no parcial, no pensamento indutivo, em descobrir o Mal entranhado em aparências de Bem.
Sei também que é muito encantador uma luta mais genérica, a “insustentável leveza do ser revolucionário”, que cria figuras como os “militantes imaginários” que analisei outro dia. Estes jovens saíram da condição de torcedores por um time ou um partido e estão militando concretamente. O perigo é serem esvaziados, como foi Occupy Wall Street.
É fundamental que o Passe Livre se amplie e persiga objetivos concretos.
Tudo esta parado no país e essa oportunidade não pode ser perdida. De um fato pequeno pode sair muita coisa, muito crime pode estar escondido atrás de uma bobagem. Os fatos concretos são valiosos. Exemplo: não basta lutar genericamente contra a corrupção. Há que se deter em fatos singulares e exemplares, como a terrível ameaça da PEC 37 que será votada daqui a uma semana e que acaba na prática com o Ministério Público, que pode reverter as punições do “mensalão,” pode acabar até com o processo da morte de Celso Daniel; fatos concretos como a posse do Feliciano ou o extraordinário Renan em suas duas horas de presidente da República. Se não houver “núcleos” duros dos fatos, dos acontecimentos presentes e prováveis, as denúncias caem no vazio abstrato tão ibérico e tão do agrado dos corruptos e demagogos.
Por isso, permito-me sugerir alguns alvos bons:
Descobrir e denunciar por que a Petrobras comprou uma refinaria por 1 bilhão de dólares em Pasadena, Texas, se ela só vale 100 milhões? Por quê?
Por que a Ferrovia Norte Sul, que está sendo feita desde a era Sarney, ainda quer mais 100 milhões para mais um trechinho. Saibam que na época, há 27 anos, a “Folha de S. Paulo” fez uma denúncia genial: botou na página de classificados um anúncio discreto onde estava o resultado da concorrência dois dias antes de abrirem as propostas. Claro que a concorrência era malhada. Foi um escândalo mas continuou até hoje, comandada pela Valec, de onde o ex-diretor Juquinha, indescritível afilhado do Sarney, supostamente teria tascado 100 milhões.
Por que as obras do Rio São Francisco estão secas?
Por que obras públicas custam o dobro dos orçamentos?
Por que a inflação está voltando? Por que a infraestrutura do país está destruída?
Por quê?
19 de junho de 2013
Arnaldo Jabor é Cineasta e Jornalista.
Arnaldo Jabor é Cineasta e Jornalista.
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