- Reprodução de vídeoBruce Springsteen canta "Chimes of freedom" para uma multidão em Berlim Oriental, em 1988
Quem derrubou o Muro de Berlim? Foram os sindicalistas poloneses, Mikhail Gorbachev e sua perestroika, Ronald Reagan e seu programa Guerra nas Estrelas, os alemães-orientais comuns que se manifestaram nas ruas e encheram a embaixada da Alemanha Ocidental em Praga e, é claro, Gunter Schabowski, o membro do Birô Político que leu a nota legendária que cancelou as restrições de viagens - "com efeito imediato" - na noite de 9 de novembro de 1989.
Um novo livro publicado esta semana se aventura a acrescentar um nome àquela lista - o do astro do rock Bruce Springsteen, que realizou o maior show da história da Alemanha Oriental, em 19 de julho de 1988, e cuja apresentação excitante e apaixonada naquela noite acendeu uma chama nas centenas de milhares de jovens que o assistiam.
Springsteen atraiu um público estimado em 300 mil pessoas de toda a República Democrática Alemã - a maior multidão para a qual o músico tocou. Eles estavam famintos por mudança e liberdade, e ver um dos principais astros do Ocidente os deixou ainda mais famintos, afirma o jornalista veterano Erik Kirschbaum em seu livro "Rocking the Wall" [Abalando o muro].
"Podemos dizer com segurança que praticamente todo alemão-oriental entre 18 e 35 anos esteve no concerto de Springsteen ou o viu pela TV", disse Kirschbaum, que trabalha para a agência Reuters em Berlim há quase duas décadas. "Foi um momento incrível, inebriante para eles - muitos nunca tinham vivenciado uma reunião tão maciça de pessoas se divertindo."
Kirschbaum entrevistou os organizadores, o empresário de Springsteen, Jon Landau, e dezenas de testemunhas que lembraram com a pele arrepiada e olhos brilhantes como seu herói atravessou o muro para tocar "Born to Run", "Badlands" e "Born in The USA" - apenas para eles.
Uma tentativa fracassada do governo
Kirschbaum está convencido de que foi o concerto de rock de maior importância política já realizado. Seu livro defende a tese de que os historiadores deveriam explorar o impacto de Springsteen para instigar a revolução. No entanto, se o fizerem, também deverão dedicar um pouco de atenção ao papel exercido por David Hasselhoff, cuja canção pop "Looking for Freedom" [Em busca da liberdade] foi número 1 nas paradas da Alemanha Ocidental na primavera de 1989.O braço jovem do Partido Comunista, Freie Deutsche Jugend (FDJ), tinha convidado Springsteen como parte de uma iniciativa oficial para acalmar a juventude cada vez mais inquieta do país.
Em 1987, a polícia, usando cassetetes e armas elétricas, havia agredido centenas de berlinenses que chegaram perto demais do muro porque queriam escutar os concertos de David Bowie, Genesis e Eurythmics que se realizaram do outro lado, em Berlim Ocidental, a poucas centenas de metros de distância, em um terreno diante do prédio do Reichstag. Alguns alto-falantes estavam apontados para o leste, para que os berlinenses-orientais pudessem ouvir a música.
Durante apresentações de Pink Floyd e Michael Jackson um ano depois, em junho de 1988, o regime comunista mobilizou milhares de soldados da polícia secreta Stasi junto do muro para manter os fãs afastados.
Fileiras cinzentas de homens armados confrontando jovens que só queriam ouvir um pouco de música pop decente - para os alemães-orientais, essas cenas apenas reforçaram a ideia de que eles estavam trancados em um país profundamente entediante.
Reconhecendo o problema, a FDJ organizou concertos de artistas ocidentais como Bob Dylan, Depeche Mode, Bryan Adams e Joe Cocker no final de 1987 e 1988, para dar à população um pouco da liberdade que tanto desejava. Springsteen foi seu maior golpe - uma tentativa de aliviar um pouco a pressão que se acumulava na sociedade da Alemanha Oriental. Mas o tiro saiu pela culatra.
Bandeiras americanas feitas em casa
"Várias pessoas me disseram que podiam sentir que os líderes do Partido Comunista estavam perdendo o controle e que o show de Springsteen foi como um recurso de última hora para mudar isso, mas foi muito pouco e muito tarde", disse Kirschbaum. "Springsteen só os fez querer mais liberdade."Muitos que foram ao show disseram que suas vidas mudaram naquela noite cálida de verão. O grande terreno vizinho a uma pista de ciclismo no bairro de Weissensee estava tão lotado que as pessoas não podiam se mexer, e as dezenas que desmaiaram tiveram de ser erguidas sobre as cabeças para chegar às equipes de socorro.
Criados desde a infância para ser bons comunistas, os alemães-orientais se viram acenando bandeiras dos EUA feitas em casa e acompanhando a canção "Born In the USA" [Nascido nos EUA], enquanto as autoridades observavam atônitas.
O concerto, segundo Kirschbaum, ajudou a convencer milhares de pessoas de que a mudança não apenas era possível, como iminente. O livro descreve o que muitos consideraram um momento profundamente simbólico, quando os organizadores da Alemanha Oriental, impotentes diante da multidão que avançava em sua direção, simplesmente abriram as barreiras e deixaram todo mundo entrar, mesmo quem não tinha ingressos.
"Um dia todas as barreiras serão derrubadas"
Enquanto isso, Springsteen se conectava com a multidão não apenas por ser um ícone da classe trabalhadora e fazer ótima música, mas porque abriu seu coração no palco naquela noite - ao contrário de Bob Dylan, que tinha feito uma apresentação morna e pouco inspirada na cidade em setembro de 1987.Depois de tocar 12 das 32 canções que apresentou naquela noite, Springsteen surpreendeu o público com uma mensagem que transmitiu em alemão: "Não estou aqui a favor de ou contra qualquer governo. Vim tocar rock-and-roll para vocês na esperança de que um dia todas as barreiras sejam derrubadas."
A multidão irrompeu em uma ovação delirante. "Todos entendemos a mensagem, foi eletrizante", disse Jörg Beneke, um agricultor que atravessou a Alemanha Oriental de carro para ver o concerto, segundo Kirschbaum.
Para reforçar a mensagem, Springsteen começou a tocar "Chimes of Freedom" [Sinos da liberdade]. "Você não podia estar naquele show e não sentir a esperança de mudanças", disse Landau, o empresário de Springsteen, para Kirschbaum.
"O efeito que aquele discurso e depois a canção "Chimes of Freedom" tiveram sobre o público foi espetacular. Foi um momento que nenhum de nós jamais esquecerá. Springsteen saiu do palco depois do show e nós dissemos - apenas entre nós - que tínhamos a sensação de que uma grande mudança iria acontecer na Alemanha Oriental."
"Spiegel Online" entrevistou Erik Kirschbaum no último fim de semana antes do lançamento de seu livro. Leia abaixo a entrevista:
Spiegel Online: Como o senhor teve a ideia do livro?
Erik Kirschbaum: Eu estava em um táxi voltando para casa, depois de um concerto de Springsteen em Berlim em 2002 - depois de escrever uma matéria para a Reuters sobre como ele criticou Bush por condenar a resistência da Alemanha a invadir o Iraque -, e o motorista não parava de falar sobre o concerto de 1988 em Weissensee. Eu nunca tinha ouvido falar desse concerto. O taxista disse que "o show de 88 foi o maior, melhor e mais excitante de todos os tempos e tinha abalado toda a Alemanha Oriental". Eu comecei a pesquisar sobre aquele show, e quanto mais falava com as pessoas que estiveram lá, mais plausível se tornava aquela teoria de que poderia haver uma ligação entre Springsteen e a queda do Muro de Berlim. Alguns poderiam zombar da ideia de que o show ajudou a derrubar o muro. Mas se você ler o livro, o que aconteceu lá, aposto que se tornará um crente no poder do rock'n'roll.
Spiegel Online: Que influência concreta o senhor pensa que o concerto teve sobre a queda do Muro de Berlim, 16 meses depois?
Kirschbaum: É difícil indicar uma causa e consequência direta entre o concerto de Springsteen e a queda do muro. Evidentemente, havia muitas outras coisas acontecendo naquela época antes do show, com Gorbachev na União Soviética, o Solidariedade na Polônia e depois a abertura da fronteira da Hungria com a Áustria no início de 1989, o êxodo maciço de alemães-orientais no verão e outono de 1989 e os comícios de segunda-feira em Leipzig e outras cidades. Dito isso, eu acho que está claro que o concerto foi uma fagulha importante e teve um grande efeito. Havia 300 mil pessoas naquele show e milhões o assistiram pela TV (da Alemanha Oriental) naquela noite. A FDJ esperava que o concerto de um grande astro do rock ocidental acalmasse a geração jovem, cada vez mais descontente - pesquisas na Alemanha Oriental descobriram que quase nenhum jovem do país escutava mais a rádio local, e sim a da Alemanha Ocidental. Mas o concerto de Springsteen teve o efeito contrário - em vez de tranquilizar os alemães-orientais, só os fez sentir-se mais famintos de liberdade e da diversão que Springsteen parecia personificar ali no palco.
Spiegel Online: Foi um dos concertos mais importantes politicamente de todos os tempos? Como ele se compara a Woodstock, por exemplo, ou o Live Aid?
Kirschbaum: Sim, definitivamente, na minha visão foi o concerto de rock mais importante de todos os tempos e lugares. Acho incrível que ninguém mais tenha escrito sobre ele no contexto das mudanças monumentais que derrubaram a Alemanha Oriental em 1988 e 89. Como jornalista, foi quase bom demais para ser verdade eu tropeçar nesse concerto sísmico, mas ninguém havia ligado os pontos antes. Felizmente, havia bastante material disponível, filmes, relatórios da polícia secreta, registros e outros materiais sobre o concerto, e milhares de testemunhas que gostaram de falar sobre ele. Woodstock certamente teve um efeito profundo nos EUA, e o ambiente em Berlim Oriental talvez possa ser comparado um pouco com Woodstock. Mas se você examinar o que aconteceu depois do concerto em Berlim Oriental, acho que o show de Springsteen é o mais importante de todos. O taxista estava certo!
Spiegel Online: As autoridades alemãs-orientais permitiram que Springsteen se apresentasse porque queriam uma válvula de escape para a juventude cada vez mais frustrada do país. Por que isso não funcionou?
Kirschbaum: A liderança da Alemanha Oriental parecia cada vez mais preocupada por estar perdendo o controle da geração jovem, que estava consciente das reformas inspiradas por Gorbachev e das mudanças que ocorriam em outros países do Leste Europeu. Os líderes alemães-orientais se dispuseram a fazer coisas antes impensáveis, como permitir que um astro do rock americano se apresentasse para a juventude. Isso teria sido inimaginável alguns anos antes. Você precisa lembrar que a música rock foi por muito tempo desprezada oficialmente pelo regime da Alemanha Oriental; era considerada uma exportação americana decadente, criada para corromper os jovens e seduzi-los contra o comunismo. E agora, aos olhos de muitos alemães-orientais, jovens que cresceram seguindo essa linha do partido contra o rock, os líderes comunistas estavam convidando um dos maiores astros do rock americano? Foi simplesmente estranho demais para muitos deles.
Spiegel Online: Qual foi a importância de Springsteen em tudo isso? O senhor pensa que o impacto teria sido o mesmo se Queen, David Bowie ou algum outro mega-artista tivesse ido para Berlim Oriental naquela época?
Kirschbaum: Acho que é justo dizer que Springsteen é um caso especial, e sua forma especial de rock e sua ética da classe trabalhadora se transmitiram muito bem para os alemães-orientais. Ele se apresentou durante cerca de duas horas e revelou seu coração. Isso é algo que muitas testemunhas disseram com ênfase. Eles realmente sentiram que Springsteen estava se expondo. Mesmo que alguns tenham dito que sentiram dificuldade para ouvir a música, por causa da má qualidade do sistema de som - e porque o lugar estava tão lotado -, todos afirmaram que foi uma noite mágica. Muitos alemães-orientais eram grandes fãs dos Rolling Stones, e eles provavelmente também teriam tido um impacto maciço. Mas os Rolling Stones queriam muito dinheiro e na verdade só foram a Berlim Oriental no verão de 1990 - depois que os alemães-orientais tinham trocado seus Ostmarks por marcos alemães, e apenas algumas semanas antes da reunificação. Foi um ótimo show, mas o público era menor e o muro, é claro, já tinha caído cerca de dez meses antes. Acho que foi uma combinação de ser Springsteen, quem ele era e o que ele representava, assim como sua disposição a tocar basicamente de graça em Berlim Oriental e seu desejo de tocar ali, juntamente com seu discurso em alemão contra o muro.
24 de junho de 2013
David Crossland
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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